Correndo Contra o Tempo
"Sem essa de 'amar demais machuca'. O que dói é amar sozinho."
Na manhã seguinte, Oliver veio convidar Elizabeth para tomar o café da manhã. Ela hesitou, pois não queria abusar da hospitalidade deles. Com certeza, a tinha visto lutando com o velho fogão e queria dar uma mãozinha.
O homem parecia cansado, quando se recusou a aceitar um não como resposta. Apesar de estar amável como sempre, aquele seu olhar malicioso havia desaparecido. Ao entrar na cozinha, ela percebeu que andava com uma certa dificuldade, própria de uma pessoa que tinha problemas em uma das pernas.
Elizabeth entendeu. Oliver não estava só sendo simpático. Precisava tanto de sua companhia quanto ela não tinha a menor vontade de estar com ele. Se mentirinhas dão um lugar nó céu, Elizabeth ganhou alguns pontos, quando disse que nada mais poderia ser melhor do que compartilhar o café da manhã com os vizinhos.
A mesa no pátio dos Stankovie havia sido puxada para baixo de uma velha figueira antiga. Era uma bonita manhã, só estragada pelo clima de tensão, que não se apagou, apesar dos esforços de todos para conversar alegremente.
Natasha disse a Elizabeth vendo ela observando a frondosa árvore. Fez as apresentações formais e Eilis ficou conhecendo a famosa bruxa Katryna que na verdade era descendente de ciganos. A jovem de cabelos ruivos com mechas negras guardava a sabedoria milenar de seu povo e ainda ganhava vendendo óleos e outros serviços a várias pessoas pela redondeza.
— Se um figo dessa figueira cai sobre você, é sinal de boa sorte. Afirmou a cigana olhando a figueira carregada de flores e frutos.
— Minha sorte foi vir para está ilha.
— Mas deve haver alguma coisa mais que você queira.
De que ela gostaria? De botar fim àquelas cartas que deixavam todos loucos.
E àqueles segredos que motivavam toda a angústia que sentiam! E o que mais?
Queria Ellyus Lancellotti. Ou, quem sabe, bastava saber mais um pouco sobre ele.
Sobressaltou-se, ao ver que Natasha esperava uma resposta, e corou, lembrando-se de que ela era a cunhada e amiga de Ellyus. Queria mesmo é que Natasha não soubesse ler seus pensamentos.
Descansando e partindo frutas, a outra não deixava transparecer os claros sinais de cansaço, tristeza e fadiga da véspera, mas Elizabeth sabia que aquela conversa de Natasha era... simplesmente conversa.
A amiga acrescentou que, por causa da brisa, talvez um ou dois figos caíssem, apesar de não estarem maduros ainda. Com um pouco de sua alegria costumeira, explicou.
— A maior sorte acontece quando eles caem no dia do aniversário de alguém.
Elizabeth lembrou-se, de repente, de que estava chegando o dia de seu aniversário. Como tinha esquecido? Andava tão absorvida ultimamente, que dava para entender.
Natasha inclinou-se para ela e falou baixinho, como de uma conspiradora para outra.
— O aniversário de nosso papai vai ser logo e ele não está muito animado a fazer uma festa. — Suspirou, — Mas, quem sabe, muda de opinião? Eu e Oliver estamos tentando fazê-lo mudar de ideia quanto a festa, mas... — Olhou para a árvore, — Vamos esperar o que a figueira nos vai trazer de novidade.
Elizabeth, como sempre, se encantava com a mistura de pragmatismo de Natasha e seus escorregões pelas crenças populares. Seu pai chegaria daqui uma ou duas semanas, o mesmo vivia em outro local por causa do difícil acesso a tratamentos o qual ele estava fazendo por causa de uma queda. Estava na casa de alguns parentes e um de seus sobrinhos netos estava a sua disposição.
A bebida da manhã geralmente era uma mistura de leite e café em pó fervidos juntos, que Elizabeth não apreciava muito. Nesse dia, Natasha serviu o turska kava, a primeira coisa que Elizabeth havia provado na Iugoslávia, e insistiu que Katryna deveria ler os restos de pó de café na xícara em que ela havia bebido.
Elizabeth olhou a mulher em silêncio e ficou intrigada, pois a mesma era muito quieta. Estaria só matando tempo, ou se interessava realmente pela sorte? Elizabeth achou a leitura tão interessante, que estava a ponto de acreditar que iam mesmo descobrir seu futuro.
Primeiro, Katryna colocou o pires sobre a xícara. Com um movimento rápido, virou os dois, de modo que o pó de café excedente ficasse no pires. Virou a xícara três vezes para a direita, duas para a esquerda, e insistiu que ela precisava descansar pelo menos por dez minutos.
Elizabeth teve que fazer força para se convencer de que era tudo pura bobagem. Enquanto isso Natasha havia conseguido finalmente arrancar seu irmão do escritório. O jovem pediu desculpas pois estava discutindo a vinda do pai, e o senhor Stankovie estava irredutível. O patriarca se recusava a comparecer na ilha caso a família realizasse uma comemoração sem a sua permissão.
Desejou sorte aos convidados e hóspedes, deixando Oliver sem jeito. Pois era difícil enganar o velho Stankovie, ele parecia ter um sexto sentido bastante aguçado. Com seus 89 anos de existência e uma vitalidade de dar inveja a um jovem de 25 anos.
Mas a cerimônia impressionava e a seriedade com a qual Natasha e Katryna a levava adiante deixava todo mundo convencido.
Katryna retesou o corpo, silenciosa. Querendo interpretar a mensagem da xícara, segurou-a bem perto do rosto. Olhou lá dentro, para as manchas e riscas de café. Desviou os olhos; olhou de novo.
Que coisa!, pensou Elizabeth. Já, já estou acreditando até em bruxas!
A amiga andava muito triste, depois de receberem aquela carta; com certeza, estava fazendo aquilo só para alegrá-la. Estender o convite a sua outra amiga Katryna só poderia ser um meio de afastar as energias ruins. Era isso que Elizabeth estava pensando. Assim mesmo, Eilis resolveu entrar no espírito da coisa e imitou o estilo dramático da outra, que fazia as coisas parecerem verdadeiras e misteriosas.
Katryna pôs a xícara na mesa e afastou umas imaginárias migalhas de pão.
— Logo você saberá, Elizabeth. Tenha paciência.
Que tudo que Katryna disser, Elizabeth pensou, fazendo uma figa, seja parte de um dia calmo e feliz, que, espero, traga melhores notícias para Ellyus do que ontem. E para mim também, acrescentou.
Lembrou-se, com remorso, de que não o tinha ajudado. Em vez disso, o magoara, a última coisa que queria fazer na vida.
Mas, por que Katryna continuava a olhar dentro da xícara? Por que não dizia nada? Estava exagerando aquele momento teatral. Elizabeth tentou arranjar um jeito para que ela começasse logo a ler seu futuro. E Natasha fez sinal que ficassem em silêncio e quieta enquanto sua amiga se concentrava na leitura.
— Katryna, e se eu fizesse perguntas, você responderia?
— Não, não.
Pôs a xícara na mesa de novo e cruzou as mãos sobre ela. Elizabeth admirou os dedos compridos, com vários anéis antigos, de filigrana. As unhas longas pintadas de vermelho escuro, as pulseiras em ouro e prata.
— Minha querida Eilis... — Começou ela, e sacudiu a cabeça. — Tantas mudanças... tantas! Tantas decisões a serem revistas!
Elizabeth estava absorta e impaciente. Quase quis arrancar as palavras da cigana.
— Mas... que mudanças? Boas? Que espécie de mudanças, Katryna! Não aguento esse suspense!
A outra olhou para ela, que, a essa altura, já estava curvada sobre o pó de café para ver se descobria ela própria os segredos. Com uma risada alegre, Katryna virou a xícara sobre o pires. Perdera-se a mensagem para sempre.
— Não está na hora. Você está enfeitiçada. E só posso dizer que vai trazer grande felicidade aos outros. Não digo mais.
— Nada mais? — Elizabeth se espantou por ficar tão desapontada. — Mas você nem começou! Vamos, Katryna, jogue o jogo até o fim. Assim não tem graça!
Sua voz se elevou, e, danada da vida, Elizabeth olhou em volta. A não ser Oliver e Natasha, que vinha vindo se juntar a elas, não havia mais ninguém presente. E a cara deles não era a de quem queria saber de bobagens e adivinhações.
Os dois se sentaram e ficaram em silêncio sem entender a tensão que ficou entre as duas mulheres.
— Está tudo bem?
— As deixamos sozinhas por apenas cinco minutos e... Disse Oliver parando de falar ao olhar na direção do portão.
— Papai! — Natasha sorriu para o velho.
— Eu sabia, ele nos enganou outra vez. Era o tio Elon que o estava imitando.
— Vocês dois são fáceis de enganar. Então essa é a encantadora jovem que...
— Papai, essa é a assistente pessoal de Ellyus e...
— Isso até as pedras do porto daqui sabem! Afirmou se sentando e se servindo de café e pão.
— Nossa Billie vai passar por momentos difíceis. Mas nem sabe quanta felicidade a espera... Exclamou Katryna enigmática.
O Sr. Stankovie também sorriu, carinhoso.
— Quer que leia sua sorte? — A moça passou uma xícara para ele. — Beba, e vamos ver o que o futuro lhe reserva.
O velho não aceitou e disse que esperaria os figos caírem, antes de pensar no futuro. Queria mais era saber por que Ellyus estava demorando tanto. Com certeza já imaginava o sermão enorme que o mesmo lhe daria.
Elizabeth também começava a se preocupar com Ellyus. Nunca tinha se atrasado daquele jeito. Será que era bom dar uma olhada no hotel, para ver o que estava acontecendo?
— Não, ele já chega, já, já. — A cigana foi firme.
O turska kava estava muito forte, e Elizabeth já havia tomado o suficiente, mas quase aceitou outra xícara, para se distrair, quando viu que Ellyus chegara. Não parecia ter dormido muito. Não cumprimentou ninguém e avisou que tinha que ir para uma viagem de negócios.
O Sr. Stankovie suspirou. Aos ouvidos de Elizabeth, aquele suspiro englobava a filosofia paciente de todas as épocas do mundo.
Ellyus esfregou o queixo. Aquele homem, sempre imaculado, não tinha tido tempo nem de se barbear. Para falar a verdade, Ellyus havia deixado de se barbear a mais de oito meses, seu cabelo estava mais longo.
— Não se preocupe! — Disse ao velho. — Volto para o seu aniversário. Só vou ficar uns dias.
Natasha comentou pensativa.
— Ele está teimando que não quer festa.
Ellyus, apesar de cansado, não perdeu a paciência com o sogro. Elizabeth queria um pouco daquela delicadeza para ela. Ele nem sequer a tinha cumprimentado.
Ellyus aceitou uma fruta e disse a Natasha depois de ficar alguns segundos em silêncio. A família parecia entender muito bem os motivos dele e o seu jeito silencioso de ser.
— Sei como seu pai se sente. Mas você vai inventar alguma comemoração para ele, não vai?
O Sr. Stankovie começou a falar sobre aniversários na sua idade, que não queriam dizer nada. Parecia a Elizabeth que se desculpava por estar tão triste.
Natasha e Oliver mudaram de assunto, virando-se para Elizabeth rápido demais assim que a cigana lhe fez a pergunta.
— O seu aniversário também está perto, não?
Será que ela tinha visto na xícara? Elizabeth não se comprometeu. Não falou sim nem não.
— Acho que vi alguma coisa na xícara de café! — A cigana brincou.
Elizabeth arregalou os olhos. Se podia ler tão bem, o que mais teria visto no pó?
Estava morrendo de curiosidade para descobrir, mas seus problemas empalideciam diante dos de Ellyus. Só Deus sabia o que havia passado pela cabeça dele, naquela noite! Nada tão trivial como aniversários. Estava tão triste, à beira do desespero! Perdido em pensamentos distantes nem havia tocado nos alimentos direito. Elizabeth também havia notado que o mesmo tinha emagrecido, suas roupas estavam mais folgadas.
Talvez o seu novo destino, perto ou longe, fosse a chave para todos os seus problemas.
Elizabeth era uma parte pequenina daquilo tudo. Afinal, o que podia fazer era ser útil a ele. Ofereceu-se para ajudar a providenciar a viagem.
Ele não prestou atenção às suas perguntas, nem aceitou o convite de Natasha para provar uns dos biscoitos de nozes. Tornou-se óbvio para Elizabeth que qualquer esforço seu seria inútil.
O Sr. Stankovie comentou também sentido o clima tenso e triste.
— Sinto muito que isso seja necessário.
— Tudo bem. — O rosto cansado de Ellyus desmentia sua naturalidade. — Alguém teria que fazer alguma coisa. E é melhor que seja eu. Eu prometi e vou até o fim!
Natasha tentou disfarçar.
— Está procurando material para o filme... certo, Ellyus?
Ele não respondeu. Natasha mentia mal e Elizabeth, grata por pequenos favores, ficou feliz por Ellyus não a ter encorajado.
Todos sabiam que as circunstâncias que o forçavam a ir para outro lugar não tinham nada a ver com o roteiro do filme, mas, sim, com sua mulher.
Uma mulher que estava se tornando um verdadeiro mistério. Além de deixar Ellyus sem chão a maior parte do tempo.
— Elizabeth. — A voz dele estava neutra e impessoal, e seu próprio nome soava como uma ordem. — Espero que arrume suas coisas em quinze minutos. Temos pouquíssimo tempo para chegar ao outro lado da ilha, pegar a balsa e sair imediatamente.
Ela também iria? Continuou sentada, imóvel.
— Não leve nada de muito elegante! — Ele continuou, sem notar seu espanto.
— Só uma muda de roupa. Mas não se preocupe com mais nada. Se precisar irei providenciar o que você precise assim que nos chegarmos.
Ela ainda tentou perguntar onde ficava Slavica. Era importante saber, para levar o que fosse mais adequado. Ele interrompeu seu pensamento, antes que pudesse falar.
— Preciso que você venha junto, para tomar os ditados enquanto dirijo. Não posso parar meu trabalho apesar de tudo! — A voz excluía toda e qualquer pergunta.
Exatamente quinze minutos depois, ele já estava lá embaixo, esperando por ela, que tinha feito as malas de qualquer jeito. Juntara algumas roupas que sabia que não iria usar e se esquecera de outras, das quais, com certeza, precisaria. Por mais que quisesse parecer bonita para aquele homem, o importante era não fazê-lo esperar.
O carro estava pronto, esperando do outro lado do morro. Atravessaram a cidade depressa, e daí a pouco pegavam a estradinha sinuosa que levava ao caís.
Aos solavancos, Elizabeth tirou o bloco e se preparou para começar a anotar. Ellyus sacudiu a cabeça.
— Espere até a balsa, Elizabeth. Enquanto isso, aproveite a vista.
Via uma ilha muito estreita, paisagem coberta de pedras ou marcada por pinheirinhos teimosos. Alguns não eram maiores do que ela. Olhou para Ellyus, curiosa.
— Por que esta parte da ilha é tão diferente de onde moram os Stankovie?
Qualquer pergunta, intelectual ou impessoal, sempre provocava uma resposta completa daquele homem taciturno.
— É porque, até uns vinte anos atrás, essa região nunca tinha sido cultivada. A história dos invasores, tomando pedaço por pedaço dela, vai longe. Milhares de anos. O que teria podido crescer naqueles campos cheios de pedra? Ellyus continuou sem tirar os olhos da estreita estrada de terra. O som das pedras nos pneus era algo estranho de se ouvir misturado ao vento vindo do mar e a voz preocupada que ele emitia sem querer.
— As florestas originais foram roubadas pelos venezianos.
Elizabeth começou a repassar suas lições do colégio. Quando foi que Veneza dominou o Mediterrâneo e o Adriático? Uns quinhentos ou seiscentos anos atrás?
Para Ellyus, parecia ter sido ontem. Pois apontou na direção da floresta.
— Os venezianos pareciam civilizados e elegantes. Mas, na realidade, saquearam toda a arte e as riquezas dos povos que dominaram. Usaram estas florestas para construir seus navios. Os antigos e imponentes trocos de milhares de anos viram madeira para suas casas e navios. Mataram a flora e fauna desta ilha. Sem falar em seus outros diversos crimes.
Elizabeth olhou-o, cética.
— Sei alguma coisa a respeito de pinheiros. Por que usá-los, se podiam construir os barcos com madeira mais resistente?
— Precisavam do pinho para calefação. Mas isto é só detalhe. — Encerrou o assunto. Virando o carro e aumentando a velocidade.
Típico dele, pensou ela. Não adiantaria querer que falasse mais. Tinha que ficar satisfeita com as migalhas que lhe lançava do alto de sua sabedoria. Olhou as árvores lutando para crescer e teve que admirá-las, assim como admirava o povo que tinha a força de replantar na pedra, depois de viver na aridez por tantos anos.
O carro deles foi o último a entrar na balsa. Quase não coube. Ficaram espremidos entre um caminhão cheio de criancinhas em férias e uma perua da Holanda. Ellyus preferiu ficar no carro, mas sugeriu que Elizabeth desse uma volta. Na verdade ele queria ficar sozinho.
Era melhor descer do que ter que aguentar seu silêncio. Ela saiu, o viu abaixar a cabeça no volante. Ellyus não queria que ela vi que ele estava desesperado. Por isso, Elizabeth deu apenas uma volta em torno da balsa e voltou logo. Todos pareciam estar acompanhados, e sentiu-se incomodamente solitária.
Antes junto dele calado, do que sozinha. Se pelo menos pudesse ajudá-lo! Se tivesse o direito! Mas esses direitos não eram dela.
2747 Palavras
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