A Jornada
Os Stankovie não comentaram a chegada de Elizabeth, apesar de não a estarem esperando. Como não o telefone não estava funcionando, Ellyus não os avisou, mas poderia ter mandado um telegrama ou mesmo um bilhete lhes explicando toda a situação.
Ela caiu na rotina que já começava a estabelecer antes de viajar, mas, com Natasha ocupada com seus afazeres normais, o tempo custava a passar. Antes, quando os Stankovie recebiam visitas, a chamavam imediatamente. Agora, dois ou três rapazes haviam estado lá, Elizabeth escutara as conversas animadas, mas não fora convidada a tomar parte. Não que eles estivessem esquecendo a hospitalidade generosa. É que tratavam de assuntos com os quais ela não tinha nada a ver. Pela primeira vez, sentiu-se deslocada.
Mas desconfiou que Oliver havia entrado em contato com a sua agência de segurança e ordenado a pedido dos pais de Ellyus que colocassem os três no encalço do filho por acreditarem que ele estivesse em perigo.
Elizabeth só piorava sua solidão, ao lembrar, obsessivamente, seu relacionamento com Arnold. Não conseguia controlar esse vício de ficar lambendo antigas feridas.
Quais seriam as semelhanças de seu amor por seus ex-noivo e o que sentia por Ellyus agora? Depois de muito pensar, além de não encontrar a resposta, achou que não fazia diferença.
Mas como esquecer aquele amor não retribuído por um homem casado? Procurou as respostas no passado.
Quando rompeu o noivado com Arnold, Lydia tentou consolá-la dizendo-lhe diversas vezes. Mas só agora lhe parecia fazer algum sentindo aquelas palavras.
— "Para cada porta que se fecha, Deus abre uma."
Naquela época, entendeu o que a irmã disse com a cabeça, mas não com o coração. As palavras ficavam indo e vindo, martelando seu inconsciente como uma canção de infância. Conhecia a melodia mas qual a verdade que a letra lhe poderia revelar?
Um dia, a mensagem ficou nítida. Compreendeu. Ninguém abriria porta nenhuma, a não ser que ela se preparasse para isso. Daí em diante, começou o processo de cura.
Fez planos de abrir portas, certo; mas não para o mundo, e sim para se fortalecer psicologicamente: tornar-se invulnerável, auto-suficiente, livre. Não iria mais depender de homem nenhum. E achou que, tinha conseguido.
No primeiro teste, falhou completamente. O que fazer, quando Ellyus voltasse?
Conseguiria adotar uma atitude profissional, ou suas emoções explodiriam outra vez, impossibilitando-a de ficar no país por mais tempo?
A única coisa de que tinha certeza absoluta era que precisava fazer algo mais do que simplesmente matar o tempo. Não era saudável remexer em assuntos mortos e enterrados. Era hora de acabar para sempre com seu amor por Ellyus Lancellotti. Tinha mais o que fazer do que ir à praia ou passear pela feira. Nenhuma dessas atividades a ajudava a esquecer Ellyus, nem por cinco minutos. Sua presença a acompanhava, de manhã à noite, quando caía num sono conturbado. E os sonhos se intensificavam cada vez mais. Sonhos esses que iam ao passado, passavam pelo presente e brincavam no seu futuro.
É verdade que ele podia voltar a qualquer momento, mas, como não tinha avisado nada, ela resolveu sair daquela apatia e ir a Danica sozinha.
Numa parte do porto, alugavam-se barcos de todos os tamanhos e gostos. Estava animada, até que lhe deram o preço da viagem a Danica. Não fazia sentido. Sabia que podia ir até ilhas bem mais afastadas de Verica, num bom barco, com tripulação e tudo, por uma quantia muito menor. Mas, ou pagava o que o barqueiro pedia, ou não ia.
Tentou pechinchar, mas ele ficou firme. Era pegar ou largar. As marés daquela área não eram de confiança e já estava ficando tarde Pelo menos, foram essas as desculpas dele. Que ela resolvesse logo porque, para ele, tanto fazia que fosse ou ficasse. Se quisesse ir tinha que ser já.
Elizabeth entrou no barquinho, e lá se foram os dois.
A caminho, tentou se convencer de que era uma aventura interessante. O dia lindo, o mar tão manso como a lagoa de patos do fundo de sua casa. Sua consciência a perturbava, dizendo que estava desafiando Ellyus mais uma vez. E o que responderia, se ele perguntasse se havia teimado em ir a Danica?
Deveria ter pensado nisso antes, pois a viagem acabou num minuto. O barqueiro mereceu o dinheiro, ao ancorar. Danica não tinha um cais nem sequer parecido ao de Verica.
A ilha poderia ser pequena, comparada a Danica e seus diversos vilarejos, que parecia os restos de um naufrágio, boiando no mar. Amedrontadora. Um decrépito muro romano circundava a cidade, construído à beira da água. Nada de praias bonitas. Só um pedaço de areia suja e cheia de detritos marítimos.
A ilha não mostrava a atividade de Verica, que era construída sobre pedra calcária, o que se tomava um problema para a vegetação, mas dava estabilidade.
Aqui, só havia areia para se pisar, e a cidade era suja e mal cuidada. Antes de entrar e atravessar os muros romanos, Elizabeth passou um sermão em si mesma. Coragem!
Estava sentindo falta do espírito alegre de todos os outros lugares da Iugoslávia.
Aqui todos eram calados e tristes. Havia muitos olhares de desconfiança!...
Olhou as lojas. Poucas, quase sem mercadorias. Se havia algum mercado ou feira, estava escondido. Quem sabe, sentia falta de árvores e flores! Não. O que a incomodava eram as pessoas, encarando-a como se nunca tivessem visto coisa parecida. Ia ser difícil parar e perguntar onde morava Mayra Broz.
As afirmações feitas por Ellyus sobre o povo da ilha Danica, que lhe pareceram preconceituosas na época, vieram atormentá-la. Tinha razão. Sentiu-se péssima, com todo aquele dinheiro na bolsa. Quando passou por um restaurante razoável, pediu para ir ao banheiro. Pôs toda a pequena fortuna dentro do sutiã e ficou aliviada.
Tinha que ficar andando.
Faz de conta que ninguém está me olhando. Mas cedo ou mais tarde, vou encontrar alguém a quem possa perguntar sobre Mayra Broz.
Parou várias pessoas, que, ou não entendiam mesmo, ou fingiam não entender. Outras, nem paravam. Uma cidade tão pequena devia ter pelo menos um correio; seguiu pela rua principal, até achá-lo. Bem diferente do de Verica, onde as pessoas se acotovelavam, faziam um pouco de tudo, conversavam, negociavam, batiam papo com amigos. Aqui, só havia uma pequena fila, e todos tinham cara de pressa e preocupação.
Elizabeth estava chegando ao guichê, quando uma mocinha se aproxime e disse, em voz baixa, em inglês.
— Você quer selos, eu dou selos para você.
Ia agradecer e dizer que não precisava, quando percebeu a intensidade da voz penetrante da moça. Ou estaria imaginando coisas? Não sabia. Tinha que prestar muita atenção para descobrir o que a moça dizia, pois a voz era baixa, confidencial. Pediu a Elizabeth que a seguisse, sem falar nada, nem mencionar o que procurava.
Elizabeth resolveu obedecer por puro instinto.
— Estou atrás de selos, mesmo. Gostaria de ver os seus.
Será que era isso que devia dizer? Esperava que sim.
A garota começou a sair do correio. Usava o mesmo tipo de roupa que a mulher da feira de Verica; aliás a roupa de todas as mulheres daquela ilha. Mas havia uma diferença: ela andava com elegância uma postura orgulhosa e olhava Elizabeth nos olhos. Os outros evitavam encará-la, quando balbuciavam alguma resposta.
Pegou Elizabeth pela mão e foi andando depressa pela cidade, sem perder tempo e sem prestar atenção nas pessoas. Passaram por um viela, subiram um morro e, quando iam atravessar um campo aberto, a moça parou.
— Estava procurando Mayra Broz, não?
Elizabeth concordou. Surpreendeu-se que ela tivesse descoberto sua missão com tanta facilidade, mas, pelo jeito com que os habitantes a observavam, devia chamar a atenção, como um elefante branco fora do circo. Era óbvio que vinha da América do Norte. Provavelmente aquela moça sabia que Júlia tinha parentes no Canadá e nos EUA.
Levou um susto, quando ela disse com firmeza.
— Eu sou Mayra Broz. Mas só diga o que quer comigo quando eu chegar em casa. Não estamos seguras ainda.
Elizabeth maldisse a hora em que inventou aquela novidade. Tanto drama para entregar um lenço e uma carta! Onde estavam os ruídos tão confortáveis de Verica, barulho de vida, de gente?
Mayra atravessou com ela uma horta bem cuidada e chegaram a uma casinha caindo aos pedaços. O que diria a grã-fina Sra. Látima, se visse sua parenta morando num lugar daqueles...
Mayra levantou a tranca e entraram. Do silêncio sepulcral passaram ao barulho de uma creche. Um bando de crianças de quatro a dez anos começou a gritar pedindo alguma coisa, no minuto em que Mayra pôs os pés dentro de casa. Ela mandou um para a padaria outro amarrar a cabra que estava lá fora, um terceiro levar a irmãzinha para passear e o quarto ver se havia alguma fruta para colher.
Num minuto, sumiram todos e ela e Elizabeth ficaram sozinhas.
A primeira impressão que Elizabeth teve da casa foi que era apertadíssima e cheia de coisas amontoadas e velhos em cada cômodo, mas isso porque as crianças tinham acabado de fazer uma bagunça incrível abrindo algumas caixas. Agora, só queria sentar-se, tomar fôlego, conhecer Mayra Broz e descobrir quanto tempo tinha, antes que a maré complicasse sua saída de Danica. Havia pedido ao barqueiro para esperá-la. Mas nem tinha certeza dele cumprir com a palavra.
Pegou uma cadeira para sentar-se e viu que a casa era só uma sala, onde havia de tudo: botas sujas, cestas, umas sobre as outras, brinquedos, maçãs meio comidas, roupas para lavar, garrafas vazias, gatinhos. Como era possível viver numa confusão daquelas?
Mayra mostrou o embaraço com um sorriso tímido.
— É difícil para mim tomar conta de todos... e de meu padrasto, que é muito implicante... E da casa, da comida, dos negócios. As crianças ainda não conseguem me ajudar!...
Elizabeth concordou que devia ser uma luta, realmente. E ficou indignada ao perceber que a moça fazia isso tudo só com uma vassoura e um fogão a lenha.
Basicamente, a sala estava limpa. A atmosfera é que transmitia opressão. Sentiu alívio, quando Mayra a levou para um canto escondido da sala e acendeu a luz. O cantinho estava imaculado. Apesar da simplicidades, havia até uma mesa com três flores em frente a uma estátua de madeira. Provavelmente um santo de devoção da religião.
Tentou esconder a surpresa, mas a outra explicou, imediatamente.
— É aqui que trabalho. Meu padrasto e as crianças não podem chegar perto, porque, se alguma coisa sai do lugar, é difícil pôr em ordem de novo.
Olhou orgulhosamente à sua volta, e Elizabeth achou que tinha toda a razão. As paredes pareciam forradas de madeira escura, mas, ao olhar de perto, percebeu que eram gavetas sobre gavetas, como o fichário de uma firma importante.
— Mas que organização!
Não podia acreditar na diferença de um canto da sala para o resto. Mayra sorriu, compreendendo perfeitamente.
— As gavetas vêm da cidade. Para selos e coleção de moedas. Gostaria de ver?
— Espere um pouquinho só. Deixe eu me apresentar. Sou Elizabeth O"Donnell, estou em Verica e sou do Canadá.
Falou devagar, mas Mayra não reagiu. Enquanto falava, a moça tinha tirado uma gaveta de moedas e agora, outra.
Será que está achando que quero comprar, mesmo?, pensou.
— Minha cidade se chama Ferry May. Já ouviu esse nome?
Mayra continuou o que fazia e sussurrou com serenidade.
— Continue falando e não se preocupe com o que estou fazendo.
— A Sra. Látima... — Começou Elizabeth, e parou para encarar outra.
A moça estava parada, atenta, tensa, com a atenção na porta.
— Sim, sim... — Murmurou. Parecia interessada em que Elizabeth continuasse.
— A Sra. Látima me pediu que lhe trouxesse um presente. Dinheiro. Para sua educação no Canadá.
Nada de reação.
— Você conhece a Sra. Látima, não?
Já estava achando que havia batido na porta errada. Mas um olhar foi suficiente para que soubesse que aquela era mesmo a moça que procurava. Os enormes olhos castanhos se iluminaram, à menção do nome. Instantes depois, estavam parados novamente, como mortos. Havia alguma coisa errada. A garota encarou Elizabeth.
— Por favor, não temos muito tempo mais.
— Sua tia mandou uma carta. É sobre uma quantia que sua avó juntou para que você vá para o Canadá estudar e depois voltar para a Iugoslávia.
Outra vez, o brilho apareceu nos olhos de Mayra e desapareceu completamente. Ficou mais tensa. O coração de Elizabeth deu um pulo.
Bateram na janela. Olharam para fora ao mesmo tempo. O menino mais velho apertou a boca no vidro e disse.
— Papai.
Mayra retesou o corpo, feito bicho acuado, como esperando apanhar! Devia ser sua condição de vida, pois a reação foi súbita e automática!
O menino, no vidro, levantou cinco dedos. Mayra fez o mesmo sinal: Elizabeth entendeu. Só tinham cinco minutos mais para conversar.
— Tenho uma carta. Posso entregar? Como resposta, Mayra fez uma coisa incrível. Jogou no chão uma bandeja de moedas, que se espalharam por todos os
lados.
— Rápido, rápido. Ajude-me a pegar. Não se preocupe com as que caíram longe.
Fingindo estarem a cata das moedinhas, podiam conversar com mais segurança.
— Quer a carta?
— Já, já. Dê para mim. Leio depois.
Elizabeth começou a explicar o conteúdo da carta, mas Mayra interrompeu, ávida por outras informações. Como era a Sra. Látima? Quando é que sua tia tinha visto sua avó? Mayra se parecia com a Sra. Látima? A Sra. Látima tinha uma foto de Mayra pequena?
Elizabeth interrompeu o fluxo de perguntas. Ficou de coração partido, mas o tempo corria.
— Por que você não responde às cartas que a Sra. Látima manda?
Mayra deixou cair as moedas que segurava. Raiva, medo, ressentimento passaram por seu rosto.
— Nunca vi essas cartas. Ele deve ter... — Parou.
A porta se abriu e um homem muito bonito entrou na sala. Ao atravessar a soleira e chegar perto delas, Elizabeth mudou de opinião, tinha sido um homem bonito.
Usava pesadas botas cobertas de areia molhada. Mayra teria que limpá-las, com certeza. Ele nunca faria nada. Elizabeth odiou-o imediatamente por causa de seu olhar.
Ele não falou nada e a garota tomou a iniciativa.
— Esta moça é do Canadá. Tem interesse em moedas.
— Ah, tem? — Disse ele, sarcástico, desafiando-a. — E o que estava fazendo no correio?
2322 Palavras
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro