Capítulo 58 - O Dragão do Mar.
As guerras consumiram terras, lares, famílias inteiras, vidas culpadas e vidas inocentes. Os campos foram banhados em sangue e a água havia coberto quase tudo onde se podia pisar. O destino das sereias parecia já definido logo que perderam a batalha e viram suas Imperatrizes mortas. Foram deixadas sem ter para onde ir e sem ter para onde voltar. As sereias escravizadas pelos humanos passaram a ser humilhadas e subjugadas como se fosse algo normal, andando lado a lado de seus mestres em coleiras de ouro e face submissa. Ninguém diria que elas foram inocentes, já que muitas vidas humanas foram tiradas por seus arpões e espadas de aço perolado, mas receber um castigo eterno sem nenhum tipo de direito não parecia certo para Jane, nenhum povo deve ser condenado por lutar por sua própria vida.
Daquele tempo para os dias do Alma Negra em alto mar, não havia mudado muita coisa. As sereias ainda estavam em suas coleiras douradas e o mundo ainda as tratava como peças de luxo para serem exibidas ao lado dos mestres.
O mar estava virado naqueles dias, as feras dos abismos marinhos submergiam e atacavam embarcações deixando manchas de sangue flutuando sob a água, carcaças de baleias azuis e alguns cachalotes eram encontrados nas praias com marcas de mordidas que passariam o tamanho de um bote, lulas e águas-vivas rodeavam barcos de pesca e nenhum peixe aparecia nas redes. O medo do mar tornou a renascer em alguns homens que passaram a contar e ouvir histórias bizarras sobre aparições monstruosas e embates marinhos recheados de vísceras e mortes. Era como ver uma pequena revolução começando a criar asas, ou talvez seja melhor dizer, criar escamas.
Depois do dia em que Markus foi morto naquela festa, depois que os Tartarugas saíram mar a fora as coisas no navio começaram a voltar ao normal. No entanto, havia uma ideia a ser discutida e sobre ela apenas alguns podiam falar. Jane, Simon e Victhor ficaram horas discutindo na cabine da capitã. Do lado de fora ouvia-se os gritos e coisas sendo atiradas.
— Tudo isso por causa daquele bosta! – Era a voz de Simon. — Estou começando a me arrepender das coisas que disse a ele.
Jane avançou sob ele e parou bem próximo, o queixo dela batia pouco mais alto que seu peito. Não que ela fosse muito baixa, é que Simon era realmente muito alto.
— Que coisas você disse a ele, Simon? Ele já sofreu demais!
— EU NÃO TENHO QUE DIZER A VOCÊ!
— Quem é você para contestar as minhas ordens?
— Quem sou eu? – Ele a encarava. — Quem porra sou eu? – As rugas na testa dele estavam espremidas umas nas outras. — Você só pode tá de sacanagem com a minha cara, Jane!
— Não é assim que vamos resolver as coisas. – Victhor suava. — Aquilo foi arriscado, mas todo mundo foi a favor do risco. Invadimos um cargueiro de festa dos nobres, é claro que vão vir atras de nós, mas nem por isso que temos que ser imprudentes.
— Não estou dizendo nada ao contrário disso, irmão! – Simon deu um passo para trás, Jane deu outro. — Mas Jane está louca, olhe só as merdas que ela quer fazer.
— Até quando vamos ficar submetidos ao medo desses canalhas? Eles estavam lá se divertindo, comendo e bebendo à vontade enquanto as sereias estavam sendo vendidas e estupradas no meio da festa. Ou você esqueceu disso?
Esse era o tipo de coisa que ninguém ficava sabendo, as noticias que se via por ai não falavam de nada que pudesse esmaecer a honra da nobreza.
— A maioria dos nobres que estavam lá foram mortos, a sua própria besta matou metade daqueles merdas. Pra que você quer ir atras deles?
— Não de todos eles.
A cabine estava em frangalhos, moveis destruídos, livros rasgados e jogados ao chão, um cheiro terrível de mijo e sangue que ainda custava a sair desde que o navio estivera nas mãos dos homens de Markus. Victhor puxou uma das cadeiras, aquela que não parecia que iria desmontar se uma pena pousasse sob ela, sentou-se ali e esfregou os olhos com as pontas dos dedos.
— Você quer ir atras dos Maud. – Sua voz estava sofrida, cada palavra mastigada tinha um gosto amargo em sua língua.
— Mas é claro! – Jane gritou, logo após a palavra sair, arrependeu-se de tê-lo feito. Gritar com Victhor era o mesmo que atirar pedras num filhote de passarinho.
— Você esta louca! – Simon levantou as mãos para o alto.
— Vai se foder! – Com Simon ela não sentia nenhum remorso. Alias, fazia tempo que eles não discutiam assim. Desde que Jane entrou para o Alma Negra era comum ver ela gritando com Simon pelos cantos, o que foi diminuindo com o tempo. Os homens de Daniel achavam estranho Simon não fazer mais do que olhar para ela com cara feia e ela mostrar língua a ele. Mas a verdade era que ele sentia que isso deixava as coisas mais fáceis de serem ditas pelos dois. Melhor falar tudo de uma vez do que ficar remoendo pelos cantos.
— Eu entendo que os queira mortos. – Victhor não sentiu ofendido pelos gritos com ele. Na verdade, ele não ligava para esse tipo de coisa. Jane que era protetora demais com ele. – Se Benjair e Markus eram culpados, eles também eram.
— Exatamente! – Jane permanecia em pé, as vezes andando de um lado para o outro, as vezes tentando colocar alguma coisa no lugar. — Eles precisam pagar pelo que fizeram!
— Sua vingança é por causa daquele sereia e não por causa daquelas sereias que estavam lá. – Simon bufou. — Você nunca foi mentirosa, não precisa ser agora.
— E daí se for? – Os dois ficaram surpresos. — E se for tudo por causa do Lantis? E se eu quiser que toda maldita família Maud apodreça nas profundezas do mundo dos mortos?
— Então você se vingue sozinha. – A voz de Simon soou quase decepcionada. — Não foi por isso que chegamos até aqui, não foi por causa do seu romance com esse sereia que perdemos tantos dos nossos homens.
— Simon está certo, Jane. – Victhor mantinha o tom mais calmo, mas o que Jane disse também o deixou mal-humorado. — Todo esse tempo no Alma Negra tem um motivo maior do que isso, você mais do que ninguém deveria saber.
Jane olhou para aqueles seus dois amigos, na verdade eles eram como seus irmãos. Levou a mão até o rosto e desceu com ela esfregando a pele.
— Vocês sabem como é, - Ela disse. — A sensação de quase perder alguém importante demais.
— A gente sabe, Jane. – Victhor ainda estava sério.
— A gente sabe disso muito bem. – Simon olhava para ela procurando a capitã que corria atras de seu objetivo acima de qualquer coisa.
Ela suspirou, estava cansada demais daquela gritaria.
— Filhos da puta. – Jane sorriu, mas seu rosto estava contorcido. — Eles precisam pagar pelo que fizeram.
— E vão, Jane. – Victhor levantou-se e colocou a mão sob os ombros dela. — Mas não agora.
— Eu preciso que Ellyn cumpra a palavra dela. – Simon disse. — Quero ver Ana sorrir de novo.
Jane sentiu uma pontada no peito.
— Sinto muito, grandão.
Jane olhou para sua cama, seus lençóis ainda bagunçados.
— Lantis... ele esteve aqui ontem. – Simon e Victhor olharam para ela com caras de quem já sabiam. — Não conversamos muito, não sei que tipo de relação a gente tem, mas não esperem que eu o abandone, ou que finja que nada aconteceu entre nós.
— Ninguém quer isso. – Simon disse. — A gente só quer que você ponha esse navio em ordem de novo.
— As pérolas, Jane. – Victhor estava na mesma posição, olhando para os olhos castanhos mel da capitã. — Você precisa encontrar as pérolas e tudo isso vai ter um ponto final.
— Também preciso encontrar minha família, principalmente o meu pai. Não faço a menor ideia de onde a Marinha Imperial o levou.
— Devemos seguir com o plano de voltar a Ilha Esmeralda. – Victhor pegava algo dentro do bolso de trás. — Podemos descansar um pouco e pensar melhor sobre o que fazer estando lá. – Ele passou o cigarro entre os dedos, Simon tirou um isqueiro de dentro do bolso da frente e ofereceu-o aceso para o amigo. — Muitos dos que estão aqui, – Ele fez uma pausa para acender e soprar a fumaça para cima — São homens de Romualdo, outros são os que pegamos alegando uma boa quantia de prata e bordéis.
— Vão ficar frustrados. – Jane pegou o cigarro das mãos de Victhor. Ela deu um trago e passou a ele de volta.
— Mas encontrarão descanso e boa comida na Ilha.
— Até chegarmos lá vamos dando uma ajeitada no Alma Negra, - Simon acendeu o próprio cigarro. — Os ossos de Daniel devem estão sacolejando de ver como o navio está.
— Se todo mundo cooperar não vai demorar muito. – Victhor sorriu para Jane. — Lantis mesmo já estava esfregando o chão lá embaixo. Ele é um bom sujeito.
— Não é nada demais a princesa esfregar o chão, todo mundo precisa trabalhar.
Simon estava provocando Jane, ela poderia facilmente cair na provocação e ele lançaria mais de um argumento para provar que estava dizendo a verdade.
— Ele é um pirata agora. – Victhor olhou para Simon com irritação. — Ele é um de nós. Não é uma princesa indefesa, ela passou por muita coisa, coisa que a gente não faz ideia.
Simon bufou, não esperava que Victhor tomasse as rédeas e contra ele o grandão não iria comprar briga.
— Eu tô falando sério, irmão. — Victhor tocou o ombro de Simon. — Não seja tão duro com ele, Lantis está se esforçando, está tirando forças de onde eu nem imagino para suportar tudo o que aconteceu. Devemos respeitá-lo por isso.
— Que seja. – Simon tirou a mão de Victhor sem nenhuma brutalidade, o que não combinava muito com sua cara amarrada. Jane observava os dois.
Ela puxou o ar com a fadiga tomando conta de suas ações.
— Eu confesso que também o trato assim as vezes. Lantis é bem mais forte do que eu imaginava.
Victhor passou a mão pelos cabelos jogando-os para trás.
— Resolvam-se logo vocês dois, não percam tempo que problemas mesquinhos.
— Tsc. – Jane pôs a mão no colar com a chave que abria a caixinha com as pérolas e Victhor riu da reação dela. Era evidente o quanto ela também queria aquela conversa além de te-lo deitado sobre onde o pudesse tocar.
Os três ficaram na cabine ainda por mais algum tempo, entre um assunto e outro arrumavam um pouco do lugar. O mar ao redor do Alma Negra estava sereno, os ventos estavam favoráveis, o sol estava no zênite e cardumes coloridos acompanhavam a nau pelas águas.
Ao contrário do que muitos navios estariam sofrendo, o Alma Negra parecia guiado pelo sol radiante e águas calmas. Jane e sua tripulação rumavam a Noroeste, onde em uma das ilhas encontrariam seu verdadeiro lar. Os piratas foram advertidos severamente pela capitã para não se meterem com as sereiazinhas que passaram a seguir o navio. Jane reconheceu aquelas que a haviam curado da outra vez, mas algumas outras apareciam vez ou outra com seus sorrisos majestosos e olhos azuis brilhantes.
Jane as adorava.
Vê-las assim nadando livre pelo mar era tudo que ela mais queria e desejava para todas as sereias e mesmo que alguns piratas jurassem que não, ela sabia por seus sorrisos que eles também adoravam a bela visão. Cada um com seu motivo para ver, as sereias eram um encanto aos olhos.
— São fofas. – Will disse ao rapaz de óculos ao seu lado. Um sorriso travesso nos lábios buscando curtir com um ciúme que não veio. — Elas têm peitões! – Provocou. Nada veio do outro.
Victhor estava com os braços recostados na amurada, o corpo curvado, olhando as beldades dançarem na água lá embaixo. Ele encarava uma das sereias como bastante curiosidade, os olhos dela também se fixaram nele e os sorrisos tornaram recíprocos nas bocas de ambos. O que não passou despercebido pelo loiro.
— Eu prefiro aquela outra. – Ele recostou seu ombro ao lado de Victhor e mostrou a ele uma outra sereia qualquer que ele acabara de achar no meio daquelas. — O cabelo dela é mais brilhante.
E no que ele terminou as palavras aquela sereia que Victhor tanto olhava saltou alto e veio parar no meio do convés.
— Santa Mãe da Deusa! – Theodora assustou-se com a moça pousando perto de si. O mesmo aconteceu com outros homens que estavam por ali.
Vários olhos arregalados seguiram em direção da sereia que deixou a calda de lado e desfilava nua em direção a Victhor. Will já havia colocado seu corpo virado de frente para receber a sereia, mas Victhor ainda olhava para as ondas lá embaixo. Um meio círculo de homens formou-se próximo a eles, mas Theodora logo enxotou-os dali, a cena de homens exaltados pelo corpo nu de uma sereia não alegrava ninguém.
— Tenham mais respeito, seus pervertidos! – Theodora abanava as mãos como se faz com um cachorro. — Saiam, vazem fora. Deixa que eles se resolvam. – Mas como ninguém é de ferro, ela mesma permaneceu ali, recostada como se estivesse fazendo algo muito importante que não pudesse ser em outro lugar.
A sereia aproximou-se o suficiente para que quando Victhor virasse o corpo ambos pudessem sentir o aroma um do outro. E foi o que aconteceu, para o desespero de Will o rapaz de óculos pareceu bastante interessado no corpo da sereia.
"Qual seu nome?" – Ela moveu os lábios e nenhum som saiu deles.
— Victhor. – Ele respondeu.
— E William. – O loiro estendeu a mão. – Prazer.
A sereia ignorou e levou o seu rosto ainda mais próximo de Victhor como se fosse beijá-lo. Will não conseguia mover seu corpo, mesmo tentando seus músculos não obedeciam.
Victhor via aqueles olhos vítreos absorverem tudo que havia nele, os dois oceanos dentro da sereia eram tão brilhantes quantos os de Lantis e os tons de azul dentro deles dançavam harmoniosamente entre si.
As guelras no pescoço dela foram encobertas por uma fina camada de pele, como uma membrana frágil que brilhavam como se fossem furta-cor, o mesmo aconteceu com as delicadas barbatanas na parte detrás de seus braços. As nádegas eram redondinhas como pêssegos e ela andava como se estivesse desfilando sobre as ondas do mar. Sua beleza podia ser comparada de igual com a de Lantis, mas ela tinha algo selvagem a rodeando, como se nunca em sua vida tivesse usado qualquer coisa que viesse dos humanos, inclusive coleiras de ouro. Ela abriu a boca para dizer alguma coisa, mas foi interrompida por uma voz familiar.
— Hília! – A voz masculina veio da proa. — Deixe-o.
A sereia sorriu um pouco de lado, Will conseguiu soltar seu corpo de o que quer que fosse e num rompante se jogou na frente de Victhor, de costas para a sereia ele encarava o rapaz a sua frente. Que parecia não o ver.
— Assim você me magoa. – Hília, a sereia disse a Lantis que aproximava deles. Vários olhos curiosos e agora encorajados tornaram a aparecer por ali.
Lantis tocou os cabelos da sereia e acariciou seu rosto como faz-se com uma criança pequena.
— Eu não ia fazer nada com ele. – Ela sorria e olhava para Victhor que Will tentava esconder. — Eu só o achei muito bonito.
Lantis esboçou um leve sorriso.
— Aqui não é um bom lugar para vocês, - E como a sereia fez uma triste expressão de reprovação, ele completou: — Ainda. – Lantis segurou a sereia levemente pelos ombros e virando seu corpo para o mar a conduziu a amurada. — Vá, logo vocês poderão vir brincar aqui.
— Jane prometeu. – Hília sorria enquanto seu corpo com pernas era empurrado com delizadeza para frente.
— E será cumprido. – Chegaram à ponta e as outras sereias acenavam lá debaixo. – Agora vá ou elas vão subir e eu não quero que machuquem os homens daqui.
Ela esticou os braços para cima, como se livrando da tensão causada pelas mãos de Lantis, olhos para Victhor e sorriu.
— Eu não desisti de você. – E antes que Will pudesse protestar a sereia já havia lançando-se ao mar.
Ao virar em direção aos homens que os observavam, Lantis viu Jane e Simon entre eles, a capitã de braços cruzados e o grandão de cara emburrada ao seu lado. Lantis mudou o semblante calmo com o que estava para um bastante rancoroso. Jane foi a primeira a dar um passo para trás, indo em direção a cabine, ela foi seguida por Simon e o maior fechou a porta enquanto todos olhavam para eles.
O expediente no navio começava muito cedo e terminava tarde da noite, homens e mulheres cansados de esfregar, martelar, consertar, costurar, remendar. A comida servida quase não tinha gosto e o cheiro de sangue e tripas custava a sair. Foram nove dias de trabalho intenso e Jane ainda não havia conversado com Lantis depois daquela noite.
— Navio a vista. – O homem da gávea gritou. — Navio à vista!
Pela rota em que estavam havia pouca chance de encontrarem um dos navios brancos, mas havia bastante chance de confrontarem algum navio nobre querendo vingança ou mesmo algum pirata fazendo o que eles fazem de melhror: roubar.
Jane, Simon e Victhor subiram ao convés e pelo monóculo a capitã viu de quem era o navio que se aproximava. O sorriso estampado nos lábios dela.
— É o Dragão do Mar! – Ela disse. — Vamos emparelhar!
Ambos navios manobraram um pouco e fechando as velas permaneceram lado a lado, a ponte de madeira foi colocada e a Capitã foi convidada a visitar o navio conhecido.
— Capitão Soo! – Ela disse abraçando o jovem rapaz de olhos puxados. — Há quanto tempo!
O rapaz vestido de negro retribuiu o abraço apertando o corpo da capitã.
— Como você está? – Ele disse preocupado. — Ouvi muitas histórias suas por aí, não sei em qual delas acreditar.
— Bem, - Jane começou a dizer quando Lantis apareceu na amurada do Alma Negra olhando para os dois. Os olhos do tritão fixaram no capitão do Dragão Branco e a expressão em seu rosto tornou-se um pouco menos agressiva.
Capitão Soo não pode deixar de notar a forma como Jane e Lantis se olhavam, era nítido demais para deixar passar. Quando Soo ia fazer alguma piada sobre os dois, o tritão apressou-se em passar pela rampa e encontrar-se com eles.
Lantis parou a poucos passos de Jane, o tritão tinha a pele uriçada como se suas escamas fossem pelinhos arrepiados.
— Ele tem uma delas.
— Uma o ...? – Ela não precisou terminar a pergunta para obter a resposta. — Oh!
Soo tinha o costume de fazer expressões divertidas, quando ele sorria não havia alguém que pudesse manter a expressão séria e seus olhos tinham o brilho do entardecer. A mensagem foi subentendida.
— Na verdade esse é o motivo de eu ter vindo até você.
Jane não sabia como, mas o Capitão Soo sempre encontrava o Alma Negra, a verdade é que ele sempre encontrava aquilo que procurava.
Lantis põe-se ao lado de Jane, cruzou os braços, não sabia o motivo, mas não confiava naquele homem à sua frente. A capitã, por sua vez, tinha alguma história com ele e ao contrário do tritão, tinha segurança no capitão do Dragão Branco.
— O que você quer em troca? – Jane questionou e viu o sorriso do capitão surgir novamente em seus lábios.
Lantis olhava para ela, havia muito trabalho a ser feito no Alma Negra, haviam os novatos no navio que apesar de saberem muito sobre os manuseios de ferramentas ainda precisavam ser orientadas sobre as regras e a forma de estarem naquele navio. Mais de uma vez Lantis e Jane tentaram ficar sozinhos, mas sempre alguma coisa acontecia, hora algum homem machucava a mão e alguém gritava Pyra e entravam pela sala afora com sangue escorrendo, a cabine da Jane estava um caos, ela estava dormindo improvisada numa parte do porão do navio junto com outros e Simon deitava-se bem ao lado dela e era como uma muralha. Os dias estavam passando e a conversa foi postergada e o clima foi ficando estranho entre os dois.
O Capitão Soo acompanhou Jane e Lantis até o Alma Negra, no navio os homens e mulheres trabalhavam arduamente no convés, eles esticavam cordas, prendiam velas e esfregavam o chão, Theodora viu quando os três entraram na cabine da capitã e ficou curiosa sobre o que iriam fazer lá.
— Não seja enxerida, Théo. – Pyra apareceu ao seu lado quando ela tentou espiar pela brecha da porta.
— Ai que susto, Pyra! – Ela levou a mão ao coração. — Não estou sendo enxerida, - Ela recebeu um olhar irônico da outra. — Mas o que esses três estão fazendo aí? Se o Capitão Soo apareceu não deve ser atoa.
— Tome conta das suas próprias tarefas.
— Eu já as terminei! – Theodora disse colocando a mão na cintura. — Eu só trabalho com eficiência, meu amor.
Pyra levantou uma sobrancelha e sorriu.
— Ótimo, estava mesmo precisando de alguém para me ajudar na cabine sala médica. – Pyra segurou, com pouca força, Theodora pelo braço e saindo levando-a para outra parte do navio. Ela saiu bufando, mas não totalmente descontente.
Pyra e Theodora se davam muito bem, as duas entraram no navio quase na mesma época e além de Jane eram as únicas mulheres ali. Por ser um navio pirata os homens eram muito invasivos e obscenos e ter o apoio umas das outras era muito importante para manter a sanidade e a paz dentro do navio.
O Capitão Soo não estranhou o estado da cabine da capitã, apesar de já ter estado ali em épocas melhores, ele sabia o que havia acontecido ao Alma Negra e correu os olhos pelo local dando-se conta de que estava melhor do que esperava.
— Ainda estamos ajeitando aqui, vamos aos negócios. – Jane começou a abrir os botões da camisa, o Capitão sorriu e olhou para o lado oposto em respeito a ela, Lantis por outro lado não teve o mesmo bom senso. E nem queria ter.
Ela tirou o cordão do pescoço e pôs por cima da mesa capenga, Soo puxou uma cadeira e sentou-se ali aguardando Jane que tirava a caixinha com as pérolas de dentro do móvel de madeira. Ela pôs a caixinha já conhecida pelos três em cima da madeira e abriu, as pérolas brilharam mais do que antes e o capitão ficou bastante surpreso.
— Uau! – Ele disse balançando a cabeça e sorrindo. — Elas são mesmo lindas!
— É por causa dele. – Jane apontou para Lantis com um balancinho de cabeça. Ela sorriu, ter Lantis ao seu lado numa negociação assim dava a entender que eram uma equipe.
Os olhos de Lantis não saíram das pérolas e os azuis em sua íris misturaram-se a um tom avermelhado e pareceram lilases.
Jane percebeu, mas não disse nada, Soo fez o mesmo.
— Aqui está a minha. – Ele tirou um lencinho de dentro do casaco preto e pôs sob a mesa. Lantis o abriu e com a sua proximidade a pérola brilhou dourado.
— Uau! – Soo disse mais uma vez. — Isso é lindo. – Soo disse olhando para Lantis.
— Ela é real. – Jane pegou a pérola com a ponta dos dedos, entre ela e Soo não havia receio. — O que você quer em troca?
O Capitão sorriu.
— Ele! – Soo apontou para Lantis e viu o vermelho consumir o restante do azul.
Jane segurou devagar o tritão pelo braço, suas veias saltaram e ele foi para cima do Soo.
— Tsc! – Jane fechou a expressão. – Pare de brincar Soo Yang! Diga realmente o que quer!
O Capitão sorriu brincalhão, Jane ainda segurava o braço do tritão, agora com menos força, a pele dele estava quente e a sensação era boa, ela não queria soltar e deslizou seus dedos por ali.
— Preciso que ele me faça um favor. – Soo tinha duas mechas de cabelos na frente do rosto que as vezes o incomodava, ele pôs uma delas atras da orelha. — Eu mesmo tentei pegar, mas não consegui ir fundo o suficiente.
— Eu já ouvi isso antes. – Lantis se referiu a pérola que ele pegou para Jane na Ilha Vordonisi. Os dois se olharam e ele deixou os lábios num sorriso pequeno.
— Não será nada difícil para você, ouvi dizer que é ótimo mergulhador. – O sorriso de Soo era muito bonito e tranquilo, ele tinha aparência jovial e não aparentava ser uma má pessoa.
Lantis pensou em negar, ele não era um objeto para ser usado como vara de pescar, mas aquelas pérolas eram do Império da Água, eram do seu povo e deveriam ser reunidas novamente.
— Lantis. – Jane chamou e ele virou-se para ela. Os olhos dele permaneceram avermelhados, mas foram amenizando quando encontraram os castanhos dela. Jane respirou fundo, sua mente não sentia mais as invasivas reações do olhar do tritão e seu estômago mantinha-se estável, mas havia outras partes de seu corpo que reagiam a ele, sua boca estava seca. — O que você quer fazer?
— O que quer dizer? – O tritão perguntou a capitã, ele estranhava a pergunta, afinal, ele já esperava que ela fosse afirmar a Soo que Lantis faria o que ela mandasse.
— A escolha é sua, se você disser não, o capitão Soo e eu iremos conversar sobre uma segunda opção.
— Que não haverá. – Soo interviu e recebeu olhares raivosos em sua direção. — Me desculpem, mas não teremos uma segunda opção. – Ele sorriu e logo pôs a mão frente ao corpo na altura do peito, como se faz em rendição. — Tudo bem, continuem, eu vou fingir que não posso ouvir daqui.
Jane ainda segurava o braço de Lantis e o levou para uma outra parte da cabine para que tivessem um pouco mais de privacidade e que Soo não os interrompessem mais.
Ela soltou o braço dele, Lantis apoiou as costas na parede de madeira, estava gelada.
— Não ligue para ele. – Jane disse. — Isso é algo entre você e eu. – Seu perfume, o calor de seu corpo, o timbre da sua voz. Desde que voltou a frequentar o mar todas as noites Lantis tinha seus sentidos aguçados e com a proximidade dos dois tudo em Jane ganhava muito mais intensidade. — Sei que não tivemos tempo de conversar ainda sobre as coisas que aconteceram e que temos muito o que dizer um para o outro, então, eu vou começar a minha parte agora. – Ela respirou fundo, soltando o ar dos pulmões com calma. — Eu já lhe disse isso uma vez, há algum tempo, no Império Sul, na beira da praia, naquele dia as minhas palavras não tiveram nenhum sentido e nem eu mesma sabia o que estava dizendo, mas agora eu sou dize-las de novo e espero que você as aceite.
O tritão estava ansioso, por muito motivos, seu coração começava a acelerar.
— Você é livre, Lantis. – Ela disse, os olhos dele tornaram-se intensos oceanos e por uma fração de segundo Jane sentiu todo seu corpo tremeluzir como se fosse a chama de uma vela sob o vento. — Você é livre para fazer as suas próprias escolhas, caminhar sob seus próprios pés – ou calda. – Jane lembrou-se da vez que Lantis matou pela primeira vez. — As escolhas que você fez e as que fará cairão sempre às suas costas, seja forte e honre cada decisão que tomar, mas tome-as consciente de que as faz por você mesmo, pelas coisas que você acredita e pelas pessoas que você ama ou sereias. - Ela sorriu ao referir àquelas que seguiam o navio pelas águas. — Você decide, é a ultima vez que direi isso a você. Creio que depois de tanto, você é capaz de absorve-las agora.
Lantis sentiu uma vontade muito grande de abraçar Jane e ele o fez sem nenhum constrangimento.
— Obrigado, mais uma vez, obrigado por me libertar aquele dia na Ilha e obrigado por todos os dias a partir de lá. – Ele apertou u pouco mais o corpo dela.
— Não, eu não mereço depois de tudo. – Jane passou os braços ao redor dele. — Você passou por muita coisa por causa de mim também. Eu sinto muito por tudo. Eu queria ter dito isso há muito tempo.
Mesmo que na cabeça do tritão e da capita aquela conversa fosse repassada de tantas formas diferentes, a realidade era que estava tudo bem daquela forma. O que mais precisava ser dito? As coisas eram como eram e haviam acontecido daquela forma e agora poderia ser tudo diferente e o que passou ficaria para tras.
— Sobre o que o capitão Soo quer...
— Tudo bem. – Ele respondeu a ela. — Eu vou até lá.
— Excelente! – Soo respondeu levantando-se da mesa e indo até os dois Era evidente que ele podia ouvir tudo e já estava a espreita de seu momento. — É tão bom quando as coisas terminam bem. – Ele sorria grande vendo que Lantis não desgrudava os braços do abraço de Jane e ela tampouco queria sair dali.
E sem mudar a sua rota, o Alma Negra partiu para noroeste sendo seguido pelo Dragão Branco e seu Capitão, outrora chamado de General Soo Yang.
— Logo haverá mais uma peça em sua coleção, espere por mim, Wang. – O capitão vestido de preto dizia ao mar enquanto o sol se punha no horizonte.
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