Capítulo 56 - Assuntos em comum.
O Império Leste começava a sentir a queda da temperatura muito aguardada pela população, era o fim do período de calor e a diminuição da temporada de tufões que apesar de amenos ainda vinham periodicamente ao Leste. Pouco a pouco o clima quente e úmido dava lugar a dias mais agradáveis e brandos, as janelas das casas eram abertas e era possível deliciar-se com o frescor dos ventos. O Leste tinha muitas belezas a quem fosse visita-lo, e nessa época do ano a natureza não deixava a desejar, as folhas das árvores eram coloridas variando de amarelo, laranja ao vermelho e tomavam conta das paisagens de todo lugar. Haviam trilhas feitas de zelkovas, parques inteiros de bordos que as crianças adoravam amontoar e jogar para cima e ginkgos biloba que deixavam os caminhos pintados de amarelo como se fossem feitos de sol. As montanhas eram um espetáculo à parte com árvores variadas mesclando umas com as outras e exibindo uma miscelânia de tons.
Muitos festivais aconteciam nessa época para celebrar e comemorar as mudança do clima e a colheita, as vestimentas eram especiais com tecidos coloridos e principalmente estampas florais que combinavam harmoniosamente com as lanternas feitas de papel que ficavam penduradas por todo lugar. Nos festivais as apresentações de músicas locais enchiam o ambiente com sons agradáveis dos instrumentos de sopro e corda combinando com cantos harmoniosos e as pessoas aproveitavam as variadas barracas de comidas entre uma apresentação e outra.
A culinária era um dos motivos para os festivais acontecerem por todo Império, haviam lulas e peixes fritos saborosos servidos em palitos de bambu, assim como frutas mergulhadas em geleias agridoces e molhos apimentados, sacos de papel com batatas inteiras assadas e temperadas, milhos assados, batatas cortadas em espirais em palitos grandes onde duas pessoas poderiam dividir vantajosamente, tortas de maçãs, pães frescos recheados com frango desfiado ou cremes de milho e cremes de camarão. Os ensopados com legumes e verduras - principalmente espinafre, eram servidos em tigelas de madeira, haviam cogumelos quentinhos nas pontas dos palitos e as pessoas os comiam enquanto caminhavam. Em algumas barracas era possível sentar em banquinhos e comer ali mesmo os pratos feitos com carne bovina grelhada em uma placa quente sobre uma cama de cebolas fatiadas e temperadas com molho de soja doce e picante. Para quem gostasse de comidas fritas muitas barracas com pratos feitos com tentáculos de lulas picadas e vegetais que eram empanados e fritos estavam espalhadas pelas ruas movimentadas. Os muitos cheiros deliciosos eram distribuídos pelos ventos para bem longe e deixavam todos com bastante vontade de comer e se divertir. Haviam as bebidas que variavam entre sucos de frutas, licores, cervejas e vinhos que deixavam as pessoas com as bochechas coradas e mais propensas a fazerem o que tinham vontade.
Tudo que era servido nos festivais vinha dos produtores do próprio Império Leste, pode-se dizer que esta era uma regra muito bem quista por todos. As pessoas ficavam animadas em apreciar os sabores cultivados nas próprias terras e muitas outras vinham de lugares próximos e longes para degustar a boa comida e vislumbrar a natureza. Muitos aproveitavam a estadia para comprar sacos de arroz, cogumelos, maças, peras, uvas, laranjas e peixes frescos e não raro alguém passava pelas ruas levando uma porção de caranguejos amarrados em cordas.
Era uma época muito animada para todas as pessoas do Leste e era comum que a Imperatriz aparecesse em alguns festivais, recebesse cestas com frutas e ver as apresentações em homenagem aos seus pais – principalmente ao pai que era nascido no Leste. Todos ansiavam em ver Priyanka passeando pelas ruas com seu sorriso terno e elegância suave. No entanto, dessa vez a Imperatriz havia decidido em não comparecer a nenhum festival por causa da quantidade de documentos que ainda tinha para verificar.
Naquele dia, a Imperatriz caiu no chão assim que terminou seu abraço com a filha, sem forças para levantar-se sozinha. Priyanka sentia sua cabeça girar, disseram a ela que antes de acordar foram três dias na cama com espasmos, febres altíssimas e delírios e correr para os braços da filha daquela forma foi a gota d'água para seu corpo fraco. As colaboradoras haviam-na encontrado caída ao lado da cama de Ayra – agora chamada pelo nome correto, e chamaram os médicos às pressas que cuidaram minuciosamente da Imperatriz.
Priyanka reservou mais alguns dias para revigorar a saúde, não disse nada sobre o que aconteceu para ninguém, mas preparava-se para o futuro que aquele encontro com a sereia de luz iria proporcionar e aqueles documentos eram muito importantes para isso.
Reis, rainhas, nobres de várias casas iam e vinham do Palácio de Cristal todos os dias enquanto o sol ainda clareava no céu, eles entravam acompanhados das sereias e saiam de lá sem elas, muito irritados e portando uma carta com carimbo Imperial de soltura das habitantes dos mares.
— Isso é um absurdo, Vossa Graça. – Um dos reis que possuíam treze sereias dizia à Imperatriz. — Elas custaram caro! Quem vai compensar o meu prejuízo?
— Não há o que compensar, Rei Arturios. – Disse ela. — O senhor, assim como todos os outros, não estão fazendo mais do que a própria obrigação.
A indignação tomou conta do rosto do velho rei que não estava acostumado em falarem com ele naquele tom.
— Como ousa?
— Como eu ouso? – Priyanka alterou o semblante calmo e passivo para algo mais agressivo, nos últimos dias era o que mais tinha feito — O senhor que não ouse levantar a voz para sua Imperatriz novamente! – E tomando um pouco de ar ela continuou num tom mais baixo, porém ainda assertivo – Imagine que eu vá a sua casa e lhe tire uma das filhas – O rei tinha seis meninas — Então, depois de algum tempo e senhor vá as pedir de volta, como poderia eu pedir que o senhor me reembolsasse? Não foi um erro meu em primeiro lugar? Não seria eu mesma que deveria lhe dar algum valor para compensar o mal que o fiz passar por ficar longe de suas meninas e tê-los feito, a você e a elas, tamanha desgraça pela separação da família? Por tê-los privado de momentos de afeto e aprendizado juntos? O senhor haveria perdido tanto delas que provavelmente nem se lembraria de seus rostos ou o som de suas vozes. E elas igualmente não se lembrariam mais do senhor, porque além de tudo eu as teria levado à barbárie numa Ilha onde suas mentes fossem mexidas por magia perversa, e suas próprias casas seriam como todo lar estranho em que pudessem estar.
O Rei Arturios era um bom rei para seu povo e para sua família, tocar em suas filhas era algo que o fazia refletir, no entanto, comparar as sereias com sangue do seu sangue pareceu mais uma ofensa.
— Senhora, - Ele disse com o rosto tomado pelo rubor da ira — Minhas filhas jamais levantaram a espada para alguém, jamais lutaram em alguma guerra e mataram inocentes que fossem, não as compare com esses seres abomináveis que devastaram milhares de pessoas, crianças e idosos durante a terrível Guerra do Sangue.
A Imperatriz manteve o rosto firme.
— Mas elas fariam tudo isso e muito mais.
— Senhora!
— Sim elas fariam. E o senhor também faria. Se elas lutassem pelo senhor, se o senhor lutasse por elas, o que houve na Guerra do Sangue seria parte do seu legado. Ou o senhor acha que as Imperatrizes Azah e Ellyn não eram tão amadas assim pelo seu povo?
— Eu não posso afirmar nada.
— Pois eu posso. Elas eram tão amadas pelo próprio povo que quando precisaram eles estavam lá, com unhas e dentes para defender aquilo em que as Imperatrizes acreditavam.
— Isso é um ultraje!
— Sim, é. Assim como nós cometemos erros terríveis, Azah e Ellyn também cometeram ao ficarem ao lado dos demônios naquela época. Mas veja o senhor, por exemplo, não esta contra mim agora? Quem dirá qual de nós dois esta certo? O senhor tem seus motivos e eu tenho os meus, a diferença entre nós é que eu sou a Imperatriz do Leste e o senhor deve obediência a mim e não ao contrário.
O homem bufou, ela não dizia mentiras.
— Portanto, - Ela continuou. — Deixe as sereias na sala que lhes foi designada e siga em paz, Rei Arturios, os ventos estão mudando, a partir daqui muitas outras coisas serão diferentes e é apenas questão de tempo até que todos saibam disso.
Nesse instante Priya entrou no salão principal e caminhou até o lado da mãe, ela ainda tinha a figura da pequena sereia que era, mas a expressão em seu rosto não era de uma criança.
Sem ter mais o que dizer, Rei Arturios curvou bastante o seu corpo e caminhou em direção a saída, na soleira da porta olhou para trás, as duas ainda o olhavam e ele teve a impressão de ver uma mulher de longos cabelos negros atras da sereia também olhando para ele.
— Pelas deusas! – Ele disse baixo e saiu apressado do palácio de Cristal com os olhos arregalados e o rosto um pouco pálido.
Ninguém no Império Leste manteria uma sereia escravizada, os portos estavam sendo inspecionados minuciosamente para que nenhuma família deixasse as terras com qualquer sereia. O próprio Capitão Henrique e seu irmão Éric estavam incumbidos de manter a ordem no Porto principal e cumpriam fervorosamente os comandos da Imperatriz.
A agitação do palácio era refletida nas ruas e estradas, ninguém estava satisfeito em desfazer-se de uma propriedade tão cara quanto eram as sereias e por onde as carruagens passavam podia-se ouvir as reclamações em alto e bom tom misturadas as animadas falações sobre os festivais. Fugir dos olhares raivosos e das más palavras também eram um motivo para a Imperatriz não participar das festividades, apesar de uma parte no seu íntimo desejar experimentar todas aquelas maravilhas culinárias.
Na sala de chá do Palácio de Cristal haviam visitas que aguardavam a chegada da Imperatriz, a mesa estava posta e um deles ansiava pelos bolinhos com creme de baunilha. A porcelana impecável como em todas as vezes tinha desenhos de pequenos peixes e conchas verdes e azuis, a borda dourada cintilava e o líquido preto de um fumegava enquanto o esverdeado dos outros mantinha-se morno.
A porta principal foi aberta, a Imperatriz acompanhada da sereia sua filha entraram na sala de chá, ambas receberam os cumprimentos devidos e sorrisos generosos e para a surpresa da Imperatriz e do próprio convidado, Ayra sentou-se ao lado de Phillip.
— Ora, ora! – Ele disse sorridente. — Parece que a senhorita Priya já está bem melhor de saúde.
A Imperatriz recebeu um olhar da pequena e consertou a fala do amigo.
— Sim, Ayra já está bem melhor. – A cadeira na ponta da mesa foi ajustada por uma colaboradora e a Imperatriz sentou-se ali.
— Ayra? – Os três convidados questionaram em uníssono.
A sereia olhava para Phillip.
— Oh, este é seu nome agora? – Ele sorriu animado. — É um nome muito bonito, combina com você.
Priyanka sabia que sereia sorria por dentro, mas ainda não conseguia expressar, aos poucos ela fazia mais e mais gestos e expressões genuínas, mas ainda havia uma grossa camada das bruxas para romper.
— Realmente, é um belo nome. – Éric ergueu a xícara aos lábios e tomou um gole de chá, seu irmão, o capitão Henrique, fez o mesmo.
A conversa entre eles seguiu o rumo que deveria, falaram sobre a segurança dos portos envolvendo as exportações e as fiscalizações nos navios.
— Foram vistoriadas mais quatro casas essa semana. – Henrique disse depois de colocar a xícara no pires. — Em duas delas sereias ainda estavam sendo mantidas escondidas em quartos isolados das casas, foi necessário forçar a entrada, pode ser que venham se queixar mais tarde.
— Se tiverem coragem. – Éric completou, o irmão sorriu para ele de volta. Henrique podia ser bastante persuasivo quando desejava.
— E as sereias estavam bem? – Priyanka perguntou e tomou um gole de chá, o liquido morno fazia bem aos seus nervos, uma mistura de ervas verdes que deixava o ambiente bastante cheiroso.
— Difícil dizer com certeza, vossa graça. – Foi Éric quem respondeu. — Como sempre não haviam marcas ou qualquer outro sinal de agressão, a única coisa que posso listar como queixa é a magreza de ambas.
Phillip tinha sempre um pequeno bloco onde fazia anotações e ali mesmo ele já escrevia algumas linhas. Ayra mantinha sua atenção quase completamente voltada para ele, no entanto, estava também bastante atenta ao que diziam sobre as sereias.
— Ainda bem que já está conosco Phillip, - A Imperatriz sorria ao seu amigo. — Como vê, terá bastante trabalho pela frente.
— Eu vim assim que recebi sua mensagem, senhora. – Havia grande amabilidade no tom de suas palavras. — Fiquei muito preocupado com Priya, – A sereia levantou o olhar para ele, o que o fez ficar quase emocionado. — Perdão, preocupado com Ayra, mas fiquei muito contente em vê-la tão bem.
— O senhor estava no Império Oeste? – Henrique perguntou.
— Sim, já havia partido daqui há algumas semanas e havia algumas pesquisas pendentes por lá. – Como não queria preocupar Priyanka ele acrescentou. — Darei continuidade logo quando retornar, não é urgente, bem, não mais do que estar aqui.
— Temos assuntos para tratar no Oeste. – Henrique recebeu um olhar de confirmação do irmão. — Devemos partir em alguns dias.
— O que me desagrada muitíssimo. – Priyanka disse sorrindo. — Mas não posso toma-los só para mim, sei que a Marinha lhes designou uma missão importante.
— Sim, estamos atras de um navio pirata chamado "Alma Negra" e sua capitã Jane Sanches, já ouviu falar?
Foi impossível não perceber todos os olhares para cima de si, Henrique levava a xícara até a boca e parou no meio do caminho depois de terminar a pergunta.
— Eu disse algo errado?
— O que querem com essa senhora? Pode nos dizer? – Foi Phillip quem perguntou.
— O mesmo que queremos com todos os piratas e infratores da Lei.
Henrique tinha outros assuntos para tratar com Jane e alguém especifico de sua tripulação, mas não seria adequado mencionar o romance de seu irmão com Vichtor àquela altura das coisas.
— Alias, - Ele continuou. — Está sendo muito pressionada por causa do pai da capitã, não é? O que pensa em fazer com ele, Imperatriz?
Priyanka não poderia responder o que ele gostaria de ouvir, pensou durante o tempo que apreciou mais um gole do chá.
— Não gostaria de executá-lo, se é essa a opção que tem para me oferecer, já conversamos sobre isso antes.
— Compreendo.
— Vamos mantê-lo mais um tempo na prisão, tenho certeza que logo haverá uma nova alternativa para o caso. Não vejo problemas em tê-lo lá já que há tanto espaço sobrando.
A conversa continuou o seu rumo sobre os negócios do Leste, discutiram sobre os mandos da marinha em relação aos piratas, havia tido uma ordem para geral para caça e morte de todo pirata em alto mar ou em terra, mesmo que fosse aposentado dos serviços vis, Henrique falava sobre esses assuntos sem nenhuma comoção.
Depois de ouvir sobre a nova ordem vida direto da Ordem Imperial, Priyanka pensou um pouco.
— Eu gostaria de ter um tempo a sós com a tal capitã do Alma Negra, espero que a traguem para o Império Leste quando a capturarem.
Os olhos de Ayra foram em direção à mãe, ainda sem nenhum expressão aparente, no entanto a Imperatriz sabia que a sereia aprovava o ato, as duas precisavam estar com Jane sem que alguma suspeita fosse levantada e como o ato hediondo provocado pela capitã houvera sido nas águas do Leste o mais natural fosse seu julgamento pela Imperatriz Priyanka.
— Passaremos a informação adiante. – Disse Henrique.
Naquela noite, como se aquela conversa fosse um presságio sobre o destino de um homem, a cela onde o pai de Jane estava foi aberta por três homens com olhares violentos e cheiro de álcool.
— O que vocês querem aqui? – Foi apenas o que George conseguiu dizer, sua barriga foi perfurada por golpes de facas tantas vezes que num instante sua alma estaria fora do corpo.
— Quando encontrar sua filha no inferno, diga que os Maud mandaram lembranças. – Foi o que um dos homens disse, sem nenhum sorriso sarcástico no rosto, mas sim com muita amargura.
Enquanto os homens saiam da cela e cuspiam no chão, George fechava os olhos e despedia-se em pensamentos da esposa querida, da filha amada e do dragão do mar que viu apenas uma vez em sua vida.
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