Capítulo 35 - Ilha Pavão I
Quando chegou à noite Lantis foi ao quarto de Jane. Ela estava debruçada sobre mapas e anotações por cima da mesa, em sua mão um lápis com a ponta gasta. Haviam rascunhos numa letra difícil de entender e algumas palavras num idioma que Lantis não conhecia. A noite quente lá fora, a lamparina acesa do lado de dentro. Ele aproximou-se dela e abraçou-a por trás beijando sua bochecha enquanto ela sorria.
— Você deveria estar descansando.
— Não queria que me encontrasse na cama.
— Não seria de todo ruim. – Ele ergueu o queixo dela e beijou-a. Lantis queria aprofundar o beijo, mas Jane afastou o rosto.
— Sente-se aí.
E assim ele fez. Um pouco a contra gosto.
— Hoje mais cedo...
— Me deixe falar primeiro, por favor.
Ela fez sinal para que ele seguisse.
— Eu pensei sobre o que falei, sobre como agi. – Lantis a olhava sem desviar. — Isso de poder agir por conta própria, ser responsável pelas minhas ações e poder decidir por mim mesmo... ainda é um pouco novo para mim e há alguns sentimentos que ainda não consigo controlar.
— Certo. – Ela concordou para que ele continuasse.
— Eu não me arrependo de tê-la beijado.
— Eu também não me arrependo dessa parte. – O sorriso de Jane foi um alivio para ele. — Você saberia se eu não concordasse com isso.
Lantis pensou um pouco e concordou. Ele realmente saberia.
— Mas me arrependo de ter agido com imprudência, nas palavras dos homens daqui, eu fui um completo idiota. – Ele pareceu sentir um pouco de vergonha. — Aquela hora, Simon não estava procurando você. Eu fiquei com ciúmes porque vocês dois estavam muito tempo lá dentro e menti. E ele ainda estava tirando as roupas daquele jeito... Eu sinto muito, Jane, eu agi por puro ciúmes saindo daquele jeito, no fundo eu realmente queria que você fosse atras de mim.
— Eu entendo que algumas emoções são novas para você, assim como você diz, mas há alguns limites que não devemos ultrapassar mesmo que nossos sentimentos possam ser usados como justificativa. O que nós temos... Bem, isso que nós temos...
Jane não conseguia dizer o que era.
— Podemos continuar tendo? – Lantis olhava para ela e isso era o suficiente para deixa-la desconsertada.
Até quando esse negócio de sereia vai fazer efeito em mim?
Jane não respondeu.
— Eu acredito que aos poucos você possa ajustar esses sentimentos que você for conseguindo nomear, nem sempre entender o que a gente sente é fácil, mas saber identifica-los é o que ajuda a lidar com eles nas próximas vezes que eles aparecerem. - Ela respirou fundo e soltou o ar pelo nariz. — Acho que tô falando isso para mim mesma também. Eu entendo o que você sentiu. Acho que se fosse comigo eu sentiria a mesma coisa ou algo parecido e talvez não tivesse uma boa reação também. Eu sempre fui livre para agir como quisesse com quem quisesse, é só agora que alguns limites estão sendo colocados. – Jane lembrou-se de Simon em relação à Lantis e de Lantis em relação à Thomas. — Acho que nós dois podemos adequar as coisas para que nenhum de nós saia machucado.
Lantis gostava quando Jane falava esse tipo de coisa, sabia-se lá de onde ela tirava isso, mas ele gostava.
Jane sorriu para ele e os dois se olharam por um instante, assentindo um com o outro.
— O que acha de aprender um pouco sobre essas coisinhas aqui? – Jane mostrou a ele os mapas, os rascunhos que escrevia. O sereia olhava tudo com bastante atenção.
— Tipo esses desenhos de minhocas aqui? – Lantis mostrou a ela um desenho meio tosco feito próximo a uma ilha.
Jane limpou a garganta.
— Não são minhocas. – Ela apontou o dedo para o local que além do desenho das "minhocas" também era feito à mão. — Aqui é Vordonisi e essas são as serpentes que encontramos lá. Quando não tem o local no mapa ou quando encontramos algum animal pelo caminho, eu faço esses desenhos ou anoto nesse livro aqui. – Ela mostrou a ele um livro de capa colorida, era verde ou azul.
Lantis passou os olhos no mapa, realmente tinham alguns locais desenhados com tinta diferente e alguns animais feitos de lápis. Ele segurou a vontade de rir, parecia que uma criança de cinco anos havia ilustrado um mapa e dado para os piratas usarem.
Quando os marinheiros – ou piratas, se lançavam ao mar para mais uma empreitada, seja em terras conhecidas ou desconhecidas, um temor constante os assolava, o medo dos monstros marinhos. Dessa forma vários mapas eram vendidos com ilustrações em suas rotas. Nem sempre aquelas rotas podiam ser confiáveis, principalmente porque o mar ia e vinha de suas mudanças depois da Inundação de Azah, então depois de adquirir um mapa que fosse o mais próximo da realidade possível, o ideal era que o capitão fizesse suas próprias interferências e o tornasse o mais fácil de ler possível.
— Este é o próximo ponto? – Lantis mostrou uma ilha com o nome "Ilha Esmeralda" no mapa. Esta ilha era uma das feitas a mão.
— Sim, mas antes vamos dar uma pausa aqui, - Mostrou uma ilha no meio de outras. — E aqui, a Ilha Flutuante de Romualdo. – Ela mostrava no mapa. — As pérolas estão apontando para esta ilha, - Voltou a apontar a primeira. — Devemos partir para lá amanhã.
— Achei que tínhamos urgência em ir para a Ilha Esmeralda.
— Fica no meio do caminho, não vai atrasar tanto.
— Espero poder ajudar melhor dessa vez.
— Você vai. Não se preocupe. – Jane tocou e acariciou a mão de Lantis por cima da mesa, depois voltou a apontar para a ilha. - O "dono" desta ilha é um colecionador de objetos exóticos e supostamente mágicos, acho que vai ser fácil encontrar a pérola se ela estiver numa sala exposta dentro de uma redoma de vidro.
— E os guardas?
— Vamos com um grupo maior e damos conta deles.
Lantis desejou que fosse fácil assim, depois disso Jane explicou para ele algumas coisas sobre aquele lugar para onde iam e os dois ficaram ainda mais tempo falando sobre mapas, suas ilustrações engraçadas e outras mais realistas. Lantis achava que aquelas bestas marinhas eram superestimadas pelos humanos, mas não disse nada já que ainda não havia visto nenhuma. Pela manhã Lantis colocou Jane em sua cama e a cobriu com um lençol fino. Ela havia dormido enquanto ele falava sobre as cores de corais que havia encontrado. Lantis não ficou chateado, sabia que ela não o fez por mal e quando ela adormeceu tinha um sorriso nos lábios. Mais uma manhã se iniciava no Alma Negra, quando saiu da cabine o sereia viu os piratas mais novos que esfregavam o chão do navio enquanto outros se ocupavam com as cordas. Haviam meia dúzias de galinhas no porão e dois homens discutiam qual delas iria para a próxima refeição. Respirou fundo o ar da manhã e sentiu-se satisfeito pela rotina que tinha ali, pouca e satisfatória.
O navio navegava a favor do vento, velas içadas iam levando-o para frente e os homens organizavam o que fosse preciso para seguir as novas ordens da capitã. Simon estava num canto fumando um cigarro quando Victhor parou ao seu lado.
— Está ansioso.
Simon não disse nada.
— Ela está bem, apesar de ser uma mulher doce é muito forte. – Ele tirou um cigarro do próprio bolso. — Você devia dar mais credibilidade a Ana.
Simon colocou o próprio cigarro entre os dedos e aproximou para que Victhor acendesse o seu.
— Jane quer fazer mais uma parada antes de ir para a Ilha de Romualdo.
— Ah. – Victhor pensou um pouco. — Isso te deixou aborrecido? Você tem que falar com ela se tiver deixado. Entre a gente não tem isso, você sabe.
— Eu sei. – Simon soltou fumaça pelo nariz, ela subiu em direção ao céu e foi levada a favor do vento. — Mas não vou dizer nada a ela agora. – Victhor juntou as sobrancelhas. — Ela está num momento bom.
— Você não quer incomoda-la... está bem, se isso é o que você quer fazer.
— Hm.
— Não fique muito ansioso. – Victhor tirou mais um cigarro do bolso, acendeu e passou para Simon que já tinha terminado o dele.
— Hm. – Ele deu mais um trago e deixou a fumaça um pouco mais de tempo dentro dos pulmões antes de soltá-la mais uma vez em direção ao vento.
As invasões piratas eram sorrateiras e sangrentas. Os piratas se aproveitavam de fatores climáticos, como a névoa, para atacar. Eles praticavam atos bárbaros sem dó e nem piedade e o grupo do Alma Negra não ficava atrás. Para quem visse Jane ou Victhor talvez fosse um pouco difícil de acreditar no que eles eram capazes de fazer, mas se primeiro Simon fosse visto, bem, então tudo mudava de figura.
A ilha apontada pelas pérolas era conhecida de muitos ali, ouvia-se falar dela nas manchetes de jornais e o nome de seu benfeitor Rafael Hernandez vinha sempre em negrito, o homem era nobre e honroso conseguindo desde muito cedo atrair a cobiça de muitos para suas terras através da sua intensa produção do açúcar contando com vários engenhos em sua propriedade. A Ilha do Pavão antes se chamava Ilha Pelicano, pelo seu formato, mas depois de tanto dinheiro investido e o gosto de Hernandez em criar tais aves e encher as terras com elas, a ilha passou a ter o nome de Ilha do Pavão, uma joia encravada em solo argiloso. Uma ave por outra e ninguém reclamou.
Rafael exercia grande influência e tendo muito capital, seu litoral passou a ser alvo de sucessivas atuações de piratas, o que lhe causa prejuízos homéricos. Por conta disso, o sistema de defesa era uma das grandes preocupações de Hernandez que acabava por traçar planos que visavam combater os ataques e, consequentemente, criar barreiras ao embarque de navios suspeitos no porto principal. No entanto, proteger um território com essas proporções era uma tarefa extremamente difícil que implicava em grande investimento e mesmo contando com pessoal eficiente, sempre ficava uma ponta para trás e era com isso que o Alma Negra contava.
— O navio vai ficar aqui, - Jane mostrava no mapa, Pyra e Theodora olhavam atentas. — Nós vamos entrar por este lado, - Agora ela olhou para Victhor. — Sem reféns, quem estiver no caminho será morto.
— Com as exceções de sempre? – Simon questionou.
— As de sempre. – Jane sorriu para ele.
— Essas rochas tem difícil acesso, já ouvi falar de homens que tentaram passar por aqui e morreram. Muito pontiagudas e cheias de repteis venenosos.
— Exatamente por isso vamos entrar por aqui. – Jane continuava com o dedo apontado para a área. O mapa a sua frente era do antigo capitão. Jane não sabia o motivo por ele ter esse mapa, mas Daniel era um homem caprichoso e Hernandez tinha muito dinheiro para satisfazer esses caprichos.
— Como tem essa barreira natural, o tal Hernandez não espera que alguém entre por ali e o lugar pode ser menos vigiado. – Theodora sorria de canto a canto. – A mansão fica mais perto se formos por aqui também.
— Exato.
— Vai levar quantos homens? – Victhor tinha que organizar as coisas.
— Todos que tiverem condições de ir. Não posso sair de lá sem o que quero. Vamos nos preparar durante o dia e entrar a noite. Pyra da conta de manter o navio no curso? As ondas daquele lado não são fáceis de lidar.
— Deixa comigo. – A mulher de pele preta e olhos escuros também sorria. – Vê se traz um pouco de açúcar pro navio.
Simon olhou para ela e ela sorriu de volta.
— Presente pra esposa? – Victhor fez a pergunta.
— Ela gosta de coisas doces. – Pyra respondeu.
Por fim no navio tudo seguia conforme o plano, armas eram verificadas e Victhor ia listando quem estava apto a ir até a ilha.
— Por que eu não posso ir? – Um homem alto de pele queimada bufava raivoso..
— Por que quer ir? Nós vamos invadir lá assim como invadimos a sua, não vai ser algo bonito de ver.
— Eu aceitei ser deste navio, não posso ficar só esfregando o chão o dia todo.
— Pode sim e vai, até que se mostre de confiança vai esfregar chão e descascar batatas, senhor Benicio.
— Pai... – Aquele menino da Ilha do Circo puxou a barra de sua calça.
— O que foi Brenner?
— O senhor vai morrer se for lá.
Victhor suspirou.
— Por isso que não gosto de crianças a bordo. – Victhor abaixou-se na altura do menino. — Ouça aqui Brenner, nesse navio não podemos dizer a palavra "morte" ou "morrer" enquanto estamos nos organizando para invadir um lugar.
— Atrai o azar? – Disse o menino depois de pensar um pouco.
— Você não é tão bobo, então siga as regras.
O menino escondeu a cabeça mais uma vez atras das calças do pai, mas Victhor viu quando ele fez que sim acenando a cabeça.
— Fique mais um pouco por aqui, olhe as crianças que estão no depósito de cargas enquanto estamos na Ilha. Logo chegaremos ao destino de vocês.
— A tal ilha de Romualdo?
— Já disseram a você? – Victhor levantou as sobrancelhas.
—Um rapaz loiro me contou. Aquele que fala sem parar.
— Ah.
— Ele não fez por mal, eu estava nervoso sem saber o que iam fazer com as crianças do circo, ele só me consolou... Ou tentou, pelo menos.
— Não se preocupe, eu sei lidar bem com ele.
Quando o sol se pôs no mar, o Alma Negra já estava próximo às grandes pedras por onde eles deveriam seguir. De fato, a travessia não seria fácil, Pyra recostou o navio no areal da enseada de modo que a fuga fosse o mais rápido possível, mas ainda teria estabilidade para manter o navio por ali o tempo que Jane precisasse manter. Os homens desceram por cordas com as armas acima da cabeça, as ondas levavam e traziam os corpos pesados e com água acima da cintura eles chegaram até a praia.
— Odeio ficar com os sapatos molhados. – Will disse ao homem ao seu lado. Ouviu apenas um grunhido irritado vindo do alto.
Na Ilha Pavão fogueiras eram acesas nas praias e nos locais mais elevados da costa para se vigiar o mar durante o dia e durante a noite, e se fosse preciso serviria como um alerta através de sinais de fumaça produzido por fumo. Também haviam os guardas que patrulhavam e vigiavam as praias, o que daria trabalho aos homens do Alma Negra, já que se algum deles escapasse poderia avisar os outros.
— Vamos evitar que eles usem a fogueira, não queremos essa atenção para nós. – Jane disse ao grupo que verificava as armas.
O caminho pelas pedras realmente era árduo, grandes formações de rochas espremiam os homens e Simon tinha muita dificuldade em passar entre elas tendo arranhões nos braços e pernas. Escorpiões e aranhas por todo lado, dois homens foram picados e tiveram que ser levados às pressas para o navio – o que na verdade se adiantava pouco. O mato era alto e haviam muitos insetos, o tempo todo picadas de mutucas, lacraias e o risco de cobras aumentava a cada passada, Will quase pisou em uma, mas os braços de Victhor envolveram sua cintura e o puxaram para trás bem a tempo.
Sorte minha Lantis ter ficado no navio dessa vez. – Jane pensava enquanto suas botas afundavam num lodo terrível.
— Cuidado com o vidro. – Ela sussurrou ao homem mais próximo a si e ele passou a mensagem para trás. Havia cacos de vidros espalhados por todo lugar, provavelmente foram jogados ali de proposito, Simon percebeu que ela enrolava um tecido na palma da mão que pingava sangue. Havia vários buracos cobertos com grades de palha agindo como armadilhas cheio de estacas, um dos homens caiu num desses e morreu na hora, outro que caiu teve a perna perfurada pela madeira pontiaguda e se Pyra conseguisse salvar sua vida ele teria a perna amputada.
A noite caiu por completo quando eles finalmente avistaram o forte da praia. Estavam cansados e descansaram em qualquer lugar por poucos dez minutos, com a luneta Jane via os guardas fazendo a ronda.
— Vamos passar pela pior parte agora.
— Fique perto de mim dessa vez. – Simon disse a ela.
Cordonetes foram usados para amarrar as bocas das calças, nenhum buraco deveria ficar exposto, com as mangas das blusas foi feito o mesmo e as armas mais uma vez foram erguidas sob as cabeças. Os passos em terra enlameada ficaram mais profundos e à medida que o grupo avançava a lama, o lodo, o barro, a água subia até a altura de seus peitos. O grito de um homem foi abafado pela mão de outro que cobriu sua boca.
— Fique quieto, você não amarrou bem as calças?
Will não conseguia responder, algo esgueirava-se por suas pernas, era gelado e passava em sua coxa.
Victhor não teve escolha, enfiou a mão dentro da calça de Will e suas mãos passearam por aquela região, de frente um para o outro, os olhos não desviaram por nenhum minuto.
— Ah! – O som que saiu da boca de Will deixou-o um pouco sem graça, o que era bem difícil de acontecer. Suas orelhas ficaram vermelhas com o olhar que recebeu de Victhor a poucos centímetros do próprio corpo.
— Desculpe, foi sem querer. – Disse Victhor divertido depois de soltar algo que havia nas mãos.
Passando mais um pouco para o lado, Victhor conseguiu pegar o animal que havia infiltrado-se ali, puxou num rompante e jogou-o para longe.
— Sorte a sua que não foi picado. Agora torça para que isso não aconteça de novo.
Por algum motivo Will estava mudo e assim ficou até o final do caminho.
— Verifiquem suas roupas e as armas. – Jane disse depois que deixaram o lamaçal.
Depois que todos estavam aparentemente bem, um grupo de cinco homens seus saiu para dar conta dos guardas que viram mais cedo. Jane e Victhor subiram numa rocha maior, do alto ela os viu escondidos entre o mato alto, esgueirando-se devagar como se fossem sombras pertencentes àquele lugar, os guardas foram asfixiados com cordas envolvendo seus pescoços e quando já estavam desmaiados foram levados mato adentro e suas gargantas foram cortadas. O assovio veio detrás de uma grande rocha, o sinal para que o grupo pudesse prosseguir.
Com o mapa da Ilha do Pavão em mãos, Jane seguiu por um caminho que cortava o meio da ilha e de pouco em pouco eles avançavam mata adentro. Demorou algumas horas até que chegassem na cerca de arame farpado e não demoraria muito mais para que sol almejasse sair debaixo das nuvens escuras do céu.
— Corte aqui. – Victhor apontou o local e com uma ferramenta um outro pirata separou o arame em várias metades.
— Passem devagar. – Jane disse depois de ser a primeira a passar para o outro lado.
O canavial ainda estava crescendo, a cana de açúcar era tradicionalmente colhida nos meses de inverno e o vento quente trazia insetos e fazia o corpo suar. As folhas da cana cortavam a pele e quando não o faziam pinicavam por onde tocavam. O bando pirata ia devagar, encolhidos para não serem vistos pelos vigias que andavam de um lado para o outro conversando sobre os dias e fumando seus cigarros. Simon era o segundo a passar e tinha dificuldade em esconder o corpo quase sendo visto pelos vigias, mas apesar de cochicharem sobre o movimento no meio da plantação, os dois homens de chapéu e arma na mão continuaram caminhando e falando sobre jogo de cartas.
— Essa cana não termina nunca?
— O homem não seria tão rico se fossem apenas alguns metros de plantações, Will. – Theodora disse atras dele.
— Não falem tão alto. – Victhor que estava na frente de Will olhou bravo para trás.
— Tem suor escorrendo do seu pescoço. – Will passou o dedo no local e Victhor bateu de leve na mão dele.
— Pare com isso.
Ao final da plantação chegaram até as casas da vila que tinham o telhado feito de palha da cana de açúcar e ladeavam a casa principal, não haviam muitas pessoas na rua e a maioria das casas estavam no escuro. Todos ali eram funcionários de Hernandez.
— Vamos entrar na casa principal e depois que Hernandez tiver com a faca no pescoço a gente pega o que quiser. Antes disso ninguém invade casa nenhuma.
Depois que todos assentiram o grupo continuou. Jane tinha pensado em invadir com tudo, colocar o navio de frente a ilha e deixar que os canhões falassem por si, mas Victhor a convenceu que aquele povo não tinha nada que fosse do interesse deles e o forte, apesar de pequeno, ainda tinha boa artilharia e causaria danos desnecessários ao navio.
A frente da casa tinha muitos homens, as laterais eram patrulhadas de dez em dez minutos, o muro alto cercado de arame não combinava com a construção luxuosa do lado de dentro.
— Não percam tempo, vamos logo.
Os ganchos foram presos e após conferirem as cordas eles passaram a subir como aranhas para o outro lado do muro, os piratas iam se separando e cada um tomava seu posto. Homens com seus uniformes brancos iam caindo manchados de vermelho, evidente que alguns piratas também morriam no embate, mas para a sorte do grupo de Jane, nenhuma arma foi disparada e eles ainda contavam com o elemento surpresa. A porta da cozinha da grande casa foi arrombada por Jane e depois de conferirem se não havia ninguém ali, todos entraram devagar. No corredor eles ouviram um barulho.
— Fique calada e ninguém se machuca. – Jane disse com a arma apontada para a cabeça de uma senhora com touca nos cabelos. Seja por qualquer razão que trouxe a velha senhora até a cozinha, não havia sido boa escolha.
— Leve estes cavalheiros até os quartos das colaboradoras e diga a elas para ficarem quietinhas. Não queremos machucar nenhuma de vocês, mas não pense que não o faremos se for necessário.
O rosto da mulher de idade avançada estava coberto por silenciosas lágrimas que escorriam até o seu queixo. Victhor, Will, Rupert e mais dois foram com ela e apesar de Jane ter deixado claro que as moças desta ilha não seriam tocadas – já que nenhuma delas era prestadora desse tipo de serviço, alguns homens começaram a ter más idéias e Rupert olhava para Victhor como se perguntasse o que devia fazer a respeito.
Jane junto com Simon e Theodora seguiram a escada que levava ao andar de cima.
— O interessante dessa gente rica, - Theodora passava os dedos sobre o corrimão. — É que as casas são todas iguais. Poupam nosso trabalho de ter que procurar sempre, eles ficam todos no mesmo lugar.
Jane sorriu para Simon que olhou para ela, seguiram pelo corredor onde haviam quadros pendurados. Eles chegaram até onde seria o quarto de Hernandez, mas ao abrir a porta depararam-se com a cama vazia. Estranho. A porta foi fechada com um incomodo no pensamentos de todos os piratas, Jane fez sinal e eles continuaram mais a frente no mesmo corredor, o olhar da capitã mudou um pouco depois que viu uma porta aberta, a luminosidade do cômodo onde deveria ser o escritório de Hernandez era tão brilhante que chegava ao outro lado do corredor.
— Ele não deveria estar aqui...
— Vai ver ele gosta de trabalhar até tarde... – Theodora disse isso, mas estava apreensiva.
Simon passou a frente de Jane antes que ela chegasse à porta aberta, armas em mãos e cara fechada, quando viu o que tinha dentro do escritório tapou os olhos de Jane antes que ela visse.
A risada saiu alta, o homem lá dentro não se conteve.
— Bem na hora.
— O que está acontecendo, Simon? – Embora ela lutasse para tirar a mão de Simon de seus olhos, ele tinha muito mais força.
— Por que não deixa que ela veja?
— Simon! – Jane gritou com ele, mas ele não cedeu. Theodora tapou a boca com as mãos para não dizer o que via antes que Simon quisesse que Jane descobrisse.
Hernandez estava de pé, roupa trocada, cabelo um pouco bagunçado, havia sangue nos seus sapatos caros, uma faca por cima da mesa.
— O que foi? Por acaso só ela pode usufruir dos benefícios de ter uma sereia?
Quando ouviu a última palavra Jane teve seu coração perfurado por mil agulhas, o cheiro forte de tabaco misturado a bebida e no fundo, bem no fundo, cheiro de sangue.
— Deixe que ela veja, ou eu estouro os miolos dele aqui mesmo.
Simon sabia o que causava dor em Jane, sempre que podia poupava de ter o coração partido, ponderou por alguns minutos e resolveu qual cena seria mais dolorosa para Jane. Seus dedos foram retirados devagar, Jane tirou cada um como se fossem pétalas de uma flor sendo arrancadas pelas mãos de uma criança.
— Que tal? Não é lindo de se ver?
Amargor correu seu estomago, ela sentiu vontade de vomitar, de gritar, de correr, de tantas coisas que palavras não seriam suficientes, mas acima de tudo, ela sentiu raiva.
— Eu sinto muito, capitã. – Lantis disse baixinho.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro