Capítulo 32 - Lembranças da fazenda no Império Sul.
O mar sempre recebia o navio Alma Negra de "braços abertos", o vento estava a favor da rota e não havia nenhum sinal de navios agressores por perto. Por fim, Jane teve um pouco de sossego. No final da tarde um grupo composto por Jane, Simon, Victhor e Theodora discutiam sobre as vendas que fariam na Ilha Flutuante próximo à Ilha Esmeralda. Já eram conhecidos de longa data, desde a época do Capitão Daniel e tinham um preço justo e interesse pelas mercadorias piratas, era nesta Ilha que normalmente recebiam correspondência. Ora, os piratas precisam de um lugar para se conectar com os outros, e apesar de alguns portos conhecidos também prestarem esse serviço na surdina, a Ilha Flutuante era mais segura pois o dono era pai de Theodora.
— Fechamos a lista para Sr. Romualdo, Jane. – Dizia Victhor. — Vou mandar os homens separarem as mercadorias e deixar tudo no jeito.
Victhor saiu junto com Theodora, Simon rodeava a cabine como se tivesse algo a conversar com Jane em particular e eles perceberam de cara, afinal, o grandão não era nada discreto mesmo quando queria.
Os dois saíram pela porta e Jane serviu um gole da bebida num copo para eles, Simon estalou a língua e sentou-se na cadeira de frente a Jane. Estava pouco confortável e não encarava a capitã nos olhos. Ela sabia que este comportamento requeria dele grande esforço, haja vista que o amigo era sempre sincero e detestada joguinhos de palavras e ironias.
Ele tomou o liquido amargo de uma vez e encheu o copo mais duas outras vezes antes de falar o que realmente queria:
— Estou preocupado com Ana. - Seus olhos baixos e expressão triste não combinavam com o Simon altivo e sério de todos os dias.
— Oh, Simon. – Jane foi até ele e afagou gentilmente suas costas.
— Desde que recebi notícias dela da última vez, só tenho pensado em coisas ruins. Tentaram invadir a ilha duas vezes.
Ana, vale explicar, possuía uma saúde frágil e desde sempre era preciso recorrer a médicos e medicamentos fortes para conter suas dores. Além de Jane, era a única pessoa que fazia Simon perder a cabeça.
— E se quando chegarmos a Ilha... e se ela... – Ele tomou um pouco de ar, sua voz mais pesada a cada palavra. — E se ela não estiver mais lá Jane? E se eu tiver perdido a minha Ana dessa vez para sempre?
Não havia nenhum consolo que Jane pudesse oferecer ao amigo, ela abraçou-o por trás, deitando a cabeça em suas costas largas. Simon levou a mão a face, cobrindo os olhos, a tristeza descia por sua pele queimada de sol. Jane deixou que os minutos passassem, então soltou-o e virou o corpo dele de frente ao seu, sorriu e limpou o rosto dele com o dorso de sua mão.
— Ana pode não parecer, mas é uma mulher forte. Sabe usar uma arma se for preciso e há mais pessoas na ilha que podem ajuda-la a se defender. Não vamos ter pouca fé em sua coragem para viver.
— Ela é tão pequena...
— Perto de você todos somos, mas nem por isso desistimos.
— Isso não faz sentido. – Ele olhou para ela com uma expressão confusa. Jane sorriu.
— Está melhor? – Ela perguntou preocupada. — Tenho certeza que Ana está bem, vamos rezar para que ela nos encontre com os braços abertos e aquele lindo sorriso no rosto.
Simon respirou fundo, "rezar" não era uma palavra que ele ou Jane usavam, mas com certeza era a que Ana mais falava, por fim não havia nada que ele pudesse fazer naquele momento, a melhor opção era voltar a Ilha e descobrir como ela estava.
— Não vamos demorar muito mais a chegar lá. A rota já foi definida.
O aperto em seu coração tinha passado, Jane abraçou-o mais uma vez e ele afagou seus cabelos enquanto ela deslizava suas mãos pelas costas dele.
— Você se lembra que costumava ser o contrário quando eu era menor?
— Menor? – Simon recebeu um leve belisco da mulher bem abaixo de seus ombros. — Tudo bem, eu entendi.
— Você sempre me protegia dos piratas que tentavam me maltratar. Sou muito, muito grata a você por estar ao meu lado durante todos esses anos.
Sorriu ao lembrar da adolescente encrenqueira e magricela dando trabalho no navio.
— Quando o capitão Daniel te encontrou boiando naquele pedaço de madeira no meio do mar, – Ele dizia com a voz rouca. — Cheia de perebas e cheirando a peixe podre, - Jane resmungou abaixo dele. — Eu pensei que fosse um tremendo erro ele trazer você para o navio. – Ela encarou-o com os olhos semicerrados e uma expressão fajuta de raiva. — Sorte a minha eu estar errado.
Simon não era de sorrir, mas quando o fazia era muito sincero.
— Eu aprendi muito com você, se não fosse suas aulas com a espada e golpes eu já teria morrido há muito tempo.
— Sua habilidade veio de Daniel, ele te ensinou muito mais.
— Mas você quem me batia quando eu errava, então a técnica era dele, mas a lição veio de você.
Os dois riram com as lembranças. Jane foi até a mesa e serviu um pouco do líquido para ambos.
Ela sorria com mais facilidade, normalmente frente aos homens ela era ríspida, mas ali ela estava em família.
— Lembra da vez que dois caras queriam me forçar a comer os ratos do navio?
— Você tinha enchido a rede deles com merda, Jane!
— Eles tinham estendido a minha rede manchada de vermelho no mastro! – A voz mais aguda do que deveria. — Eu tinha que me vingar. – Disse como se constatasse o obvio.
— Você cortou fora a mão de um deles com a espada, não foi?
Eles encurralaram Jane na dispensa, um deles segurava o rosto dela apertando com muita pressão suas bochechas enquanto outro içava pelo rabo um rato morto levando em direção a boca dela meio aberta, as patas dianteiras do rato fedorento tocaram os lábios rachados dela levando-a ao desespero. Jane alcançou uma lata na estante detrás dela e bateu com força na cabeça daquele à sua frente, ele deixou o rato cair, ela chutou-o no estomago, Jane não fugiu, desembainhou a espada daquele mais próximo de si e cortou a mão direita do que suspendia o rato, enquanto este agonizava de dor, o outro teve a garganta pressionada pela lâmina afiada. Ela fez um pequeno corte, para lembra-lo de que ela podia ser tão pirata quanto eles. Os dentes cerrados de ódio, os cabelos bagunçados e ensebados faziam jus a vida levada no mar, o pomo de adão do homem mantido por cima da lâmina, ele soltou um "uhum" com dificuldade. Depois disso eles não mexeram mais com Jane durante um tempo e os outros no navio tinham pouco mais de cuidado quando o faziam. De fato, aqueles dois não eram grandes coisa, mas como viam uma garota aparentemente frágil se davam o direito de aproveitar-se dela.
— O Capitão Daniel fez vista grossa pela mão cortada. Se fosse outra pessoa seria jogada ao mar.
— Ele era destro, eu cortei a esquerda, não foi tão ruim.
— Foi pura sorte, não é?
Ela apenas riu.
Quando se está a bordo de um navio como o Alma Negra, com uma grande tripulação, a maioria sendo homem, é difícil para uma garota ter um pouco de paz. Apesar do capitão Daniel tentar proteger Jane, ela precisava aprender a virar-se por si mesma e a lidar com as perturbações dos piratas. Jane nunca relatava nada ao capitão, o que ele sabia era descoberto de outras formas. As vezes Simon a protegia, as vezes deixava que ela levasse um socos na cara, dependia do porte do oponente, tudo era aprendizado. Naquela época Simon achava graça do jeito moleque e atrevido que Jane tinha, ela era pequena, mas encarava os caras grandes, era magrela, mas escarava os homens fortes, apesar de ser mulher tinha a boca suja de um pilantra, mas tinha o olhar doce e gentil, palavras firmes e muita coragem.
Jane havia chegado ao Alma Negra com quatorze anos. Ela contou uma parte da história verdadeira a Daniel no dia que foi encontrada por ele: "Eu entrei escondido num navio mercador do porto do Império Sul, quando eles estavam em alto mar me acharam, fui levada ao capitão, falei pra ele que queria ser pirata e trabalharia no navio. Levei dez chicotadas, fui jogada numa cela e prometeram me estuprar todos os dias. – Ela dizia ao capitão – Para minha sorte, um dos homens estava doente com coceiras e feridas pelo corpo, ele foi atirado lá embaixo junto comigo. O deixaram para morrer. Eu contraí a doença ficando bem ao lado dele de propósito. Eles não iriam me tocar daquele jeito. Ficamos dias sem comer e sem beber, eu peguei a adaga que ele tinha no cinto e escondi, até que ele morreu, eu gritei e levaram o corpo dele embora. Eu já estava quase toda coberta da doença, mas ainda me deixaram lá, numa noite um dos homens tentou entrar, ele não ligava para a minha pele em carne viva, estava bêbado demais pra isso. Eu consegui golpeá-lo com a adaga, não foi nada demais, mas eu consegui fugir e pulei no mar. Não sei quantos dias se passaram, foi quando vocês me encontraram."
Ela omitiu a parte que afundou mar adentro, que esteve entre a vida e a morte e que foi salva por uma sereia e levada até Ellyn nas profundezas escuras.
— Já passamos por muita coisa, não é? – Ela dizia a Simon na cabine.
— Você tem seu objetivo e luta por ele, ninguém disse que seria fácil.
— Eu não teria conseguido sem você e Victhor.
Ela encheu os pulmões e soltou o ar com um sorriso. Pensativa, pôs uma mão sobre a mesa de madeira.
— Mande chamar Lantis aqui. Preciso resolver umas pendencias com ele.
Simon não discordou como ela achou que faria, ele sentia que desde que saíram de Vordonisi a capitã evitava o sereia no navio. Este, por outro lado, também estava diferente. Simon não saberia dizer o que, mas havia algo entre os dois que ele não deveria intrometer-se agora. Ainda não era o momento.
Rupert foi até a amurada do navio e viu Lantis sorrindo para o mar, ele pensou que o sereia fosse pular dali e fugir, mas quando o chamou e disse o que queria, o sereia sorriu e acompanhou-o até a cabine da capitã de bom grado. O mais velho deixou o sereia na porta, espiou Jane lá dentro e sorriu maroto quando a porta foi fechada a sua frente.
— Já chamou ele? – Theodora aproximou cruzando os braços na frente do corpo.
Rupert fez um "shh" e pegou o braço da morena tirando ela de frente da porta.
— Parece que hoje o fogo vai esquentar ali dentro!
— Jura? – Ela sorriu de orelha a orelha. — Até que enfim!
Os labores no Alma Negra continuavam os mesmos: estiva, manutenção, intendência, limpeza, cozinha, içar velas, recolher velas, escalar as cordas, agrupar os cordames, fazer a ronda noturna, tapar os buracos, remendar os escaleres, limpar os canhões; havia pouco descanso e muito o que fazer todos dias sob o mar. Era cansativo e desgastante? Sim e muito, mas nesses dias quase parecia que os piratas não tinham outra ocupação além de mexericar sobre o sereia e seus atributos físicos. Simon já os repreendera mais de uma vez sobre a falação enquanto havia serviço a fazer e eles ainda continuavam cochichando pelos cantos, o que o irritava ainda mais e testava todos os dias os limites da pouca paciência que tinha.
De fato um sereia pirata não era algo fácil de encontrar por aí e há quem dissesse que o Alma Negra era o primeiro em que havia um. O sereia estava diferente, era notável em seu físico, em sua voz e nos seus atos dentro do navio, os piratas falavam sobre ele em suas costas sussurrando sempre que ele passava, e em todas as vezes ele podia ouvir o teor da conversa. Falavam sobre seus cabelos que antes loiros cor de palha seca tornavam-se agora reluzentes e com pontos prateados, sobre a intimidação em seus olhos azuis que antes eram motivos de zombaria e já agora diziam que ondas gigantes olhavam de volta para eles toda vez que o sereia os encarava, sua voz parecia modificada e nela havia firmeza e segurança. Antes os viam como um filhote amedrontado que recuava a qualquer alteração no tom, agora o sereia parecia muito mais com quem iria trovejar para cima deles.
Faziam semanas que não mais iam até sua rede com navalha afim de cortarem sua pele em apostas idiotas, não ridicularizavam sua intimidade e respeitavam mais seu espaço. Ele que ainda treinava espadas pela manhã obteve uma melhora significativa, movimentos ágeis e fortes empunhavam a lâmina, Theodora dizia a Pyra que logo ele alcançaria o patamar desejado para um bom pirata. Jane que mantinha a rotina do treino em dia também percebia isso e os olhares que trocavam também haviam se tornado diferentes. Pelo navio espalhava-se o boato de que ele mergulhava todas as noites em mar aberto, ninguém ousava denuncia-lo com receio de sua reação, sabe-se lá o que ele seria capaz de fazer agora. Um dos que o viram contava que ao retornar ao navio ele pousava no convés saltando direto do mar e caindo em pé como se não fora nada e diziam mais, contavam mais e inventavam mais. Os olhos de quem falava permaneciam o tempo todo arregalado enquanto a boca de quem escutava mantinha-se aberta. Quando o sereia se aproximava a conversa mudava o rumo, mas, claro, ele sabia que falavam dele. Lantis mantinha sua expressão mais reservada próximo a maioria dentro do navio, sorria poucas vezes no treino de espadas quando acertava os passos e sincronizava os movimentos dos pés, sorria com Rupert a quem tornara-se amigo e também com Will que vinha sempre conversar com ele. Porém nenhum sorriso houvera sido mais sincero do que aquele que experimentara com Jane. A cada dia que passava ficava mais difícil manter-se longe. O sereia que há tempos não sonhava passava noites revivendo o beijo no quarto do mosteiro, o gosto dela em sua boca, o toque dela em seu corpo... e consequentemente a conversa sobre "não se envolver" depois dele.
Claro que os dois tinham mais o que pensar e o que fazer, afinal estavam num navio pirata que exigia manutenção e o objetivo árduo pela frente drenava muita dá atenção de Jane, contudo conviver tão próximo e tanto tempo com alguém que lhe causa bons arrepios ao mínimo toque não é tarefa fácil. Eles pareciam evitar encontrarem-se no mesmo ambiente, mas estavam sempre trocando olhares, perdendo a si mesmo e encontrando-se no outro.
Dessa forma quando Lantis adentrou a cabine de Jane ambos suspiraram cansados do esforço de manterem seus corpos separados. Havia enfim ficado evidente para a capitã e o sereia o quanto desde a Ilha Liberdade eles desejavam estar um com o outro e aquele beijo agira como um interruptor que não podia mais ser desligado.
— Mandou me chamar, capitã. – Ele disse alertando os sentidos de Jane, a sua voz estava mesmo diferente, ela pode sentir a estática percorrer por sua espinha. Ao menos sem nenhuma ironia ou sarcasmos dessa vez.
— Sim, precisamos resolver algumas pendencias.
Sobre a mesa dois cálices com o vinho rubro aguardavam. Não haviam documentos, mapas, cartas, apenas as taças e a caixinha de madeira que guardava as pérolas.
O sereia não esperou o convite, sentou-se numa das cadeiras observando Jane abrir o botão da camisa branca. Ele reparou nos movimentos dos dedos, nas unhas curtas e arredondadas, gostaria que o movimento fosse mais devagar para que pudesse apreciar o momento... Lantis desviou o olhar quando a peça íntima dela mostrou a borda, engoliu a seco e retraiu os lábios. Não queria faltar-lhe o respeito.
— Como estão as sereias do circo?
— Já estão melhores. Apesar de acompanharem o navio com dificuldade elas estão lidando bem com todas as novidades ao redor. Logo já vão conseguir nadar sozinhas sem que eu precise ir lá o tempo todos.
— Você as vê todos os dias.
— Duas vezes por dia, antes do sol se por.
— Entendi.
Jane tirou a correntinha dourada com a chave na ponta que mostrara a ele daquela outra vez. Ela sentou-se com a blusa sem abotoar e abriu a caixinha a sua frente deixando-o admirar por uns instantes as pérolas lá dentro. Como da primeira vez, porém agora mais forte, Lantis sentiu seu corpo vibrar. Ele estendeu a mão para tocar as pérolas, os olhos brilhando num intenso azul.
— Espere. – Jane fechou a caixinha antes dele alcançar as pérolas. — Pode me dizer o que sente antes de pegar nelas?
Agora que sua cabeça não latejava mais e as náuseas haviam terminado a capitã podia encara-lo por mais tempo, não que isso diminuísse o ritmo de seus batimentos, mas já era um avanço.
— Sei que sente algo quando as vê. – Ela continuou. — Só quero saber se posso confiar em deixar você tocar nelas sem o medo de que irá leva-las embora quando voltar ao mar hoje à noite.
Ele dispendeu o corpo sob o encosto da cadeira e deixou que o ar saísse pela boca. Um sorriso de lado apareceu, Jane achou bastante atrativo.
— Então você sabe.
— Há poucas coisas nesse navio que acontecem sem que eu saiba. –
Lantis lembrou-se das primeiras semanas que passou ali, de todas as vezes que o importunavam e judiavam dele e pensou se Jane sabia daquilo ou se simplesmente deixava acontecer. Não iria tocar nesse assunto agora, talvez o faria em outra ocasião quando o perfume do corpo dela não lhe fosse tão convidativo.
— Eu me sinto em casa. – Ele disse sem rodeios. — É o que sinto quando vejo as pérolas, não consigo explicar melhor do que isso. A sensação é de estar próximo ao local que eu realmente pertenço, de fazer parte de alguma coisa. E não, - Ele encarou-a enquanto ela bebia um gole da taça. Talvez ele tenha reparado demais no liquido remanescente nos lábios dela. — Não vou a lugar nenhum com suas pérolas.
— Tudo bem. – Ela assentiu virando a caixinha aberta para ele. Lantis pegou uma das pérolas com a ponta dos dedos e observou o dourado brilhante a sua frente.
— Elas também devem sentir algo quando estão próximas a você. – Jane continuou, um sorriso brotava em sua boca. — Elas só brilham assim quando você está por perto, ou quando sentem uma outra pérola.
— O que quer dizer com "sentem outra pérola"? – Ele disse sem tirar os olhos da pérola.
— É assim que encontro as pérolas. Elas sentem umas às outras, quando isso acontecem elas ficam inquietas dentro da caixa, eu as coloco numa bandeja com as bordas fechadas e sigo a direção que elas apontam. São como bússolas.
Ele deixou de olhar a pérola para encarar Jane, queria ver a reação dela.
— Foi assim que me encontrou?
Ela sorriu de lado, pôs uma mecha do cabelo para trás da orelha, Lantis não havia reparado as nove argolas douradas espalhadas desde o lóbulo até a parte superior, sentiu a própria tornozeleira em seu lado direito e pensou se aquelas na orelha de Jane também a prendiam de alguma forma.
A capitã serviu mais do liquido para ambos já com os cálices vazios.
— Não, eu soube de você por uma carta contrabandeada. – Lantis prestava atenção em suas palavras, ela continuou. — Interceptamos um navio há um bom tempo atrás, navios de transporte dos nobres tem muitos tesouros, eu precisava alimentar o Alma Negra, a carta era de Markus para Benjair – o rosto de Jane tomou uma sombra ao falar o primeiro nome. — Ela dizia que uma sereia macho legitima estaria nas posses da fazenda logo, que ele tratasse de encontrar um bom comprador para dividirem os lucros. – Ela soltou o ar num suspiro demorado. — Minha intenção era ter tirado você da fazenda antes de levarem até a Ilha Liberdade, mas foi complicado saber todos os detalhes da sua chegada, na fazenda o local onde você estava era rodeado de capangas e cachorros o tempo todo. Nunca pude chegar perto. Quando consegui contato com Simon faltavam poucos dias para irem a Ilha Liberdade, quase não consegui ser levada junto.
— Eu não entendo. – Ele disse depois de pensar um pouco. — Como você conseguiu chegar até a fazenda? Como conseguiu ser levada a Ilha depois?
— Tenho alguns contatos bons no Império Sul, eu consegui ser vendida para um dos bordéis da Madame Falcão, alguns dizem que eles são amantes, mas eu nunca a vi.
— Você foi para um bordel?
— Sim, qual problema?
— As pessoas com quem eu convivia não falavam bem desse tipo de lugar.
— Hipócritas, não são nada além disso. Homens e mulheres frequentam bordéis a noite e falam mal dessas mesmas mulheres com quem dormiram durante o dia.
Lantis olhava para Jane sem entender onde ela queria chegar.
— Só estou dizendo que não é um ambiente o qual não estou acostumada. Eu sou uma pirata. Não tenho esse tipo de pudor. Entro em bordeis desde os quinze. – Ela passou a mão ajeitando o cabelo que caia sobre os olhos. — As meninas e mulheres dos bordéis nem sempre são pessoas ruins. Há muitas histórias por trás de seus olhares de sedução. Você não faz idéia do que elas sofrem. Para mim, os grandes vilões são aqueles que vão consumir. Mas não vamos entrar nesse assunto agora.
Lantis respirou fundo e soprou o ar pela boca. Parecia mesmo um assunto que levaria a uma grande discussão. Embora ele apreciasse conversar com Jane, ele tinha outros objetivos ali.
— Enfim, dei bastante trabalho para o gerente de lá e um conhecido meu aconselhou que o cafetão me vendesse para trabalhar nas fazendas. Markus é difícil de enganar, não pega qualquer pessoa para ir a sua propriedade particular, mas eu vinha de uma fonte confiável. Lá eu dei um jeito de passar por "delicada e desfavorecida", os homens gostam de mulher frágil para que eles possam bancar o macho alfa, Markus não confia em ninguém, mas o que uma pobrezinha pode oferecer de perigo a ele? – Ela sorriu sem nenhuma alegria. — Eu descobri o dia que iriam te tirar da fazenda, avisei Simon através de bilhetes enviados por feirantes e fiz muita raiva em Markus pra poder ser levada junto das pessoas escravizadas até a Ilha Liberdade.
— Não parece ter sido muito difícil pelo temperamento que ele tem.
— Não, na verdade foi mais difícil que eu supus. – Os pensamentos de Jane divagaram até aqueles dias na fazenda. — Ele não precisava fingir para ninguém, ele só faz o que quer e trata as pessoas como for conveniente.
— Ele machucou você?
Jane respirou fundo, sentiu as costas arder mais do que os outros lugares.
— Quando ficava irritado com qualquer coisa, ele partia pra cima de quem estivesse perto. As vezes era eu e as vezes eram as outras meninas.
Copos, faca, os punhos. Markus atirava o que tinha em mãos, socava quem estivesse mais perto e destilava palavras cruéis a quem fosse mais frágil. Jane ouvia sabendo que não eram verdades, ela não era uma pobre desfavorecida. Contudo, as outras meninas ouviam as humilhações e as lágrimas vazavam em seus olhos, o que era um combustível para que Markus falasse mais.
— Ele costumava humilhar, ofender, ridicularizar, debochar de quem estivesse por perto. Ele é oco por dentro, se satisfaz com o ódio e o sofrimento que causa nas pessoas.
Já com o mínimo de confiança de Markus sobre suas costas, ela – Lídia, servia-lhe as bebidas, no início ela sorria com grande amabilidade, dizia mentiras e enfatizava as partes tristes. Quando soube do destino do sereia mudou de tática, no entanto, ainda que se esforçasse em desagradar fazendo tudo de má vontade Lídia não era castigada, as outras empregadas diziam-se surpresas já que por menos Markus queimava suas mãos. Mas ao contrário do que elas supunham, Markus gostava de ver Lídia, a menina desamparada ao seu lado buscando piedade de um homem tão bom e rico como ele. Alguém inferior o fazia sentir-se superior o tempo todo.
A gota d'água para Jane foi enquanto ele tomava café em seu escritório num dia quente pela manhã, ele não tirava os olhos dela enquanto ela olhava para baixo numa cara emburrada.
— Você não está bem esses dias. – Ele disse, ela nada respondeu. Markus mantinha o rosto calmo, quase sereno o que não combinava com suas feições e sua personalidade explosiva. — É algum problema com seus pais?
Depois de um tempo sem que ela o respondesse ele jogou os pratos e talheres em sua direção. Houveram alguns cortes e o café estava bem quente. Lídia ficou parada no mesmo lugar enquanto ele levantou-se da mesa e agarrou-a pelo queixo.
— Quem você pensa que é para não responder quando eu pergunto? – Ele percebeu a pele do braço dela ficar vermelha onde havia caído o liquido quente. — Esta doendo? – Ele apertou aquele lugar. — E de quem você acha que é a culpa? Se você tivesse respondido quando eu perguntei nada disso teria acontecido.
Lídia olhou para ele pela primeira vez no dia. Contudo, o sangue fervia em suas veias e o olhar de menina frágil que Jane vinha fingindo a tempos acabou desabando em raiva. Ela levou um tapa no rosto com bastante força.
— Não ouse me olhar assim. – Ele a segurou pelos cabelos e depois a jogou no chão.
Aproximou-se dela o suficiente e ia lhe dar um chute, mas não sabendo o motivo que o fez lembrar de alguém parou o golpe.
— Venha. – Ele estendeu a mão a ela. — Eu não queria ter feito isso a você. Mas você anda estranha esses dias e acabei perdendo o controle.
Lídia mantinha as mãos ainda junto ao corpo.
— Está com medo?
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