Capítulo 21 - Não houve despedida.
O pequeno lago tinha as águas tão calmas que parecia um espelho a refletir as pedras no teto, alguns pequenos peixes iam de um lado a outro sem serem perturbados pela presença de qualquer pessoa. Lantis já havia visto muitos lagos antes, mas ao se deparar com aquele, talvez por toda situação, ele se deixou deslumbrar um pouco mais. O espaço entre o lago e as paredes daquele lugar era bem grande, tornando toda a caverna espaçosa. A umidade e a sensação mais fria deixava uma sensação estranha e mesmo com a tocha acesa e com o possível dia lá fora ainda assim a caverna parecia obscura demais. Jane caminhou um pouco mais longe e Lantis viu quando a chama da tocha tocou algo liquido próximo a parede, logo uma serpente de fogo iluminou todo lugar.
— Eu não sei para o que eles usavam essa caverna. – Disse Jane. — Mas eles gostavam dela bem iluminada.
O óleo queimava e iluminava as paredes, o teto e a água, o calor do fogo deixou a pele de Lantis aquecida e as chamas iluminaram o rosto de Jane.
Ela combina com fogo. – Lantis pensou.
— Na primeira vez que estive aqui, - Ela começou — Eu mergulhei neste lago e nadei o mais profundo que pude. - Jane caminhava devagar até a borda sendo seguida por Lantis. — Eu busquei o fundo mais de uma vez, mas não devo ter chegado bem perto. Aqueles monges sabiam bem como manter algo fora do alcance. - Agachou-se na beira do lago e tocou a água com a ponta dos dedos, quebrando o espelho em contidas ondinhas. Lantis sentiu seu coração acelerar.
— O que tem lá embaixo?
— Ainda bem que perguntou. - Jane sorriu a ele. — Um baú com as joias que os monges ganhavam de presente dos nobres e gente muito rica.
O sereia esperou que ela continuasse e seguiu encarando os olhos castanhos da capitã.
— Você sabe, quando o Império da Água foi invadido e saqueado, as joias das duas Imperatrizes foram vendidas aos grandes nobres e colecionadores. Homens cheios de poder que gostavam de enfeitar suas sereias com joias oficiais de seu Império, só pra mostrar o quanto eram importantes. Acontece que um desses teve um bastardo e se apaixonou pela criança. A mãe morreu ao dar à luz e para que a esposa não descobrisse o paradeiro do bebê, ele o trouxe para cá e mandou muitas joias como pagamento pela criação do menino. Uma boa porção dessas joias veio parar no fundo do lago, inclusive um broche da Imperatriz Azah.
Lantis arregalou os olhos ao ouvir o nome de uma das Imperatrizes da Água.
— Como sabe de tudo isso?
— Foi o que eu ouvi dizer por aí e as pérolas que eu tenho confirmaram que há algo no fundo desse lago com a magia da água. Se for mesmo uma das pérolas, eu preciso dela.
— Eu não entendo porque esses monges jogariam joias aqui. Pode ser uma armadilha.
— Elas não tinham nenhum valor para eles, assim como aquelas moedas lá no poço. E pelo que eu já ouvi dos monges de Vordonisi, eles gostavam de tentar a pureza nos corações dos jovens.
— Pelo que você ouviu... de quem? Essa pessoa é confiável?
— Sim, ele é.
Lantis ficou olhando para Jane esperando que mais alguma informação viesse, no entanto ela não disse mais nada e ficou encarando o sereia até que franziu o cenho como se percebesse alguma coisa.
— Essa água não é venenosa. – Ela ergueu o corpo e começou a desabotoar o casaco. — Vou provar a você.
Ela abriu o casado superior e já ia retirando dos ombros quando Lantis ergueu as mãos.
— Não precisa, está tudo bem. – Ela parou olhando para ele. — Eu vi alguns peixes ali, sei que você está falando a verdade.
Jane tornou a ajeitar o casaco e abotoar de volta.
— E o menino?
— Eu não sei. - Ela tirou as botas e tocou a água do lago com as pontas dos pés. A água era tão fria e tão gostosa que Jane resistiu de se jogar lá dentro mais uma vez. — Eu só sei o que contei.
Era verdade.
Jane tocava o chão com os pés nus, arregaçou um pouco mais a barra da calça e fez o mesmo com a manga da blusa. Passou a mão na água e jogou um pouco atras do pescoço, a pedra gelada que rodeava o lago arrepiou os pelos de suas pernas e subiu por sua coluna.
— Essa água faz cocegas. – Jane riu não sabendo do que.
Lantis sentia o peito arder e o ritmo do coração acelerar.
— O broche de Azah tem a pérola que você quer? - Lantis estava incomodado ao ver Jane tocando a água. Devagar ele aproximava-se dela. — Você quer que eu vá buscar, é isso?
O tom na voz de Lantis ia ficando mais forte, ele não tinha o costume de falar alto, então Jane estranhou.
—Sim, Lantis. – Ela franziu o cenho com aquela aproximação repentina. — É isso mesmo, preciso que entre neste lago e traga o broche de Azah pra mim.
— Para isso eu teria que me transformar. Teria que ser a minha outra forma.
— Sim, isso mesmo.
A expressão de Lantis era confusa. Ele deveria entrar num lago de mar, deixar seu corpo sentir o toque da água salgada que há tanto tempo não o fazia, permitir que seu corpo mudasse e que aquelas sensações ardessem em sua pele. Ele ficaria diferente e deveria deixar que Jane visse sua forma natural, coisa que antes somente os seus mestres tinham feito... Sim, era isso. Seus antigos mestres pediam que ele se transformasse algumas vezes. Eram motivos vulgares e banais, Lantis não se lembrava de todos, mas ele se lembrava do que aconteceria se sua forma não os agradasse. As ameaças de expô-lo em aquários, de leva-los a Ilha das Bruxas, de vende-lo as casas de prostituição... de tudo isso ele lembrava. Aquelas mãos ásperas tocando em sua pele, a aflição de buscar o ar fora da água quando seus cabelos eram puxados para fora do tanque, dedos invasivos em suas escamas.
Será que Jane pensava como eles? Se ela não se agradasse de sua forma, ela o venderia? O mataria e deixaria seu corpo naquela caverna para sempre? Esses pensamentos permeavam a mente de Lantis, olhar para Jane a sua frente, a expressão dela tentando entender a dele o incomodava e não entender o porquê disso acelerar o seu coração estava deixando-o irritado. As chamas tremeluziam ao redor do dois, o lago permanecia com suas águas inertes, mas Lantis sentia todo seu sangue borbulhar.
— É importante que eu tenha essa joia Lantis. Eu venho tentado encontrar uma sereia desde que entrei nessa Ilha pela primeira vez. Preciso do broche de Azah.
Lantis apertou os lábios e juntou as sobrancelhas.
— E se eu recusar, o que vai fazer? – A voz ecoou e ele não tentou manter o tom mais ameno, as palavras saiam amargas por sua boca. — Vai me levar até aquele lugar, não vai? Vai fazer com que eu faça tudo o que você mandar, vai me forçar a obedecer a suas ordens como um cão bem treinado. É isso o que você quer? Diga de uma vez! – Ele riu com escarnio. — É claro que vai. Foi isso o que você e aquele cara planejaram todo esse tempo. Você prefere que eu seja um fantasma perambulando pelo navio, abaixando a cabeça quando você passar e seguindo seus passos onde você for. Se eu não fizer o que você quer, vamos sair daqui e ir direto para a Ilha das Bruxas. - As palavras ficaram presas em sua garganta. Então, era isso? Ele estava com medo? Estava com medo de voltar a Ilha das Bruxas? Devia ser isso, devia ser só o medo de voltar àquele lugar...Mas ele também sabia que não era somente isso.
Jane o encarava sem responder, Lantis estava aflito e o silêncio dela só alimentava sua angústia.
— Se eu não conseguir o que você quer, você vai me levar de volta aquela Ilha maldita! - De novo aquele tom de voz alto que não era seu. — E vai me deixar para apodrecer naquele lugar se elas não conseguirem me amaldiçoar mais, afinal, eu já fui algumas vezes. As sereias tem a vida curta quando são amaldiçoadas muitas vezes, não vou ter nenhum serventia pra você, não é?
Lantis estava tremendo, seus olhos estavam marejados e um suor frio descia por sua nuca. Ele estava tão absorto em seus pensamentos que não viu quando Jane aproximou-se dele.
— Você é como toda a escória humana! - Ele continuava, pequenas lágrimas corriam por seu rosto e juntavam-se em seu queixo, mas ele não conseguia senti-las descer. — Você só pensa em me usar e depois vai me jogar fora! Vai me jogar fora, não vai? Não tenha pena de mim! Pode dizer a verdade!
Jane estava próxima o suficiente de seu corpo para sentir seu calor e desespero.
— Lantis... - Sua voz era afável e o sereia ficou quieto por um instante. O jeito que ela o olhava, era algo inadmissível para ele. As sereias causavam vertigem e tomavam os humanos para si e não ao contrário. Mas Jane tinha algum efeito sobre Lantis que ele não podia explicar. Não ainda.
— Você vai me abandonar naquela ilha? Se não gostar do que vir, vai me jogar fora? É isso que vai fazer, não é? – Ele botou as duas mãos sobre os olhos e esfregou o rosto impassível. Sua expressão era confusa, assustada e beirava ao descontrole. — Eu sei que é isso que vai fazer! Vai me jogar fora como um trapo velho, vai me jogar fora como eles fizeram! – Sua voz saia bem alta, ecoava dentro da caverna e talvez quem estivesse do outro lado poderia ouvir se prestasse atenção. — Humanos são sujos! São lixo! Não...não, nós é que somos! Isso mesmo! – Algumas lágrimas desceram dos olhos dele, juntaram-se doloridas em seu queixo e caíram pesadas no chão, mas apesar disso Lantis começou a sorrir e uma gargalhada estranha deu lugar às palavras sem sentido.
Jane encarou-o nos olhos e aproximou-se mais, o sereia sentiu seu corpo arrepiar e sua boca ficou seca e sua voz cessou o que quer que estivesse fazendo. Foi então que ela fez algo que ele jamais esperaria, algo que fez seu rosto queimar e estalou gruta a dentro.
Jane deu um tapa com força suficiente, com o susto ele caiu no chão.
— Mas, o que? - Lantis levou a mão na boca e viu seu dedo um pouco sujo de vermelho.
— Pare com isso! Você está pensando o que? - Dessa vez foi ela quem alterou a voz. — Não deixe esse medo dominar você assim! Acorde de vez! Eu sou uma mulher de palavra, Sereia! Eu disse a você que não o levaria aquela Ilha e não irei! Você está aqui por que é meu e eu não vou tirar você de perto de mim. – Jane abaixou na altura dos olhos dele e ponderou um pouco mais sobre como deveria dizer aquilo. — Mas você sabia muito bem que havia algo que eu queria de você, e agora me vem com esse papo de que estou te usando? – Ela passou a mão nos cabelos levando-os desgrenhados para trás. — Ah, vá à merda! – Tsc! — Eu sei que você passou por coisas terríveis, eu sei que não entendo metade do que você já viveu, mas não fique assim agora. Não agora, eu não tenho como te ajudar agora, eu não sei o que fazer se você agir assim. – Ela respirou fundo e voltou a ficar de pé. — Todos estão aqui para servir e serem úteis. Você, eu, Victhor, Simon, Rupert... TODOS! Você não sabe pelo que cada um aqui já passou para chegar até esta ilha. Porra, Lantis, foda-se essa merda desses humanos do seu passado! Foda-se todos eles! Que um bando de serpentes arranque a língua de todos eles!
— Você... é louca? - Lantis voltou ao seu tom normal e olhava assustado para a mulher com as mãos na cintura a sua frente.
— Sim, eu sou louca. - Ela sorriu e estendeu a mão ajudando-o a se levantar, seus corpos não estavam com um palmo de distância. — Todos somos. Você também, sereia, faça sua vida valer a pena. Este é grupo de piratas mais louco que você já viu. Sinta-se honrado por fazer parte dele.
— Eu... eu me sinto, sim.
— Ótimo! – Ela tocou o rosto de Lantis, onde estava vermelho ainda e fez um carinho. — Ouça bem o que eu vou te dizer e enfie isso de uma vez nessa sua cabeça: Eu JAMAIS vou abandonar você, tenha você a aparência que for, enquanto for tudo bem para você, também estará tudo bem para mim. Eu não quero que você me obedeça e me sirva como um fantasma. – Ao ouvir as palavras que havia dito, Lantis sentiu um pouco de vergonha. — Eu quero que seja o mais real que puder, seja as suas qualidades, seus defeitos e suas expressões, eu quero conhecer tudo de você.
— Nem tudo será bom.
— De ninguém é. E cá estamos nós. – Ela voltou com a mão para junto do corpo. — Não espere que vou admirar os seus defeitos, assim como não espero que ninguém faça isso com os meus, mas estarmos juntos vai ajudar a lidar com eles, com esses fantasmas reais que estão dentro da sua cabeça. Vamos fazer o nosso melhor a todo momento enquanto nos importamos com quem está ao nosso lado.
— Eu me importo o suficiente.
— Então é que o basta. – Ela sorriu. — Eu prometo que vou ficar ao seu lado quando você estiver se sentindo mal, eu só não posso garantir que saberei lidar, mas eu vou ficar ao seu lado e aprender.
— Eu quero dar tudo de mim a você. – Isso foi espontâneo demais e Jane sentiu sua bochecha corar ao mesmo tempo que Lantis a encarava.
— Certo. – Ela disse após limpar a garganta. — Eu também farei isso.
Lantis sentia o cheiro de canela dos cabelos de Jane. Era um cheiro bom. Ele respirou fundo inalando o máximo que podia, soltou sua mão e foi em direção ao lago.
— Servir e ser útil, então é isso? - Ele encarava novamente o espelho d'água a sua frente. Virou-se por um instante e Jane estava no mesmo lugar, aguardando. — Muito bem, vamos ver se eu consigo ser útil a você, capitã.
Lantis despiu sua roupa devagar, focando a água a sua frente. Jane manteve seus pensamentos firmes. Não queria desconcentrar apesar de ter um sereia nu a sua frente. Ele ainda observava seu reflexo na água e Jane já estava impaciente. Ela queria que ele se jogasse logo, mas sabia que ele hesitava por algum motivo e aquele dia na praia do Império Sul tinha algo a ver com isso.
— Não é tão fácil quanto parece. - Ele disse quebrando já que não aguentava mais os suspiros e os sons da bota dela batendo no chão.
— Devia ser. - Ela aproximou-se dele focando a visão na parte de cima de seu corpo. Cruzou os braços. — Não é só cair na água e suas pernas se transformam e tal?
Ele riu pouco alto, o que a deixou constrangida.
— Não sabia que ainda contavam essas histórias de criança por aí.
Ela continuou encarando-o.
— É algo parecido sim, mas não sei explicar como funciona depois que somos levados...aquele lugar.
— A Ilha das Bruxas.
Lantis sentiu um arrepio na nuca.
— Você se lembra do que acontece lá? - Ela continuou.
— Não muito. - O sereia tocou um ponto na testa com o indicador. — Sei que elas fazem algo aqui.
— Me deixa ver. - Jane aproximou-se de súbito, deixando Lantis surpreso. Ela tocou o local indicado e na outra mão segurava uma adaga que tirou de algum lugar. — Não tem nada aqui.
Lantis era mais alto que Jane e sentiu a respiração dela em sua pele. Depois de analisar bem aquela área ela virou de costas e guardou o objeto afiado e voltou a olhar a água a sua frente. Mãos na cintura, lábios cerrados.
Lantis pensou em brigar: por acaso ela estava pensando em retirar, o que quer que fosse, de sua testa com aquela adaga?
— Ha algo dentro da minha cabeça que não funciona direito desde que fui levado lá pela primeira vez. – Ele enfatizou a palavra dentro.
— Você se lembra como foi? A sua primeira vez.
Lantis a encarou, talvez na resposta dele estivesse a solução para o cárcere em que ele estava, mas... aquelas lembranças, ele as havia reprimido a tanto tempo...
Ele respirou fundo, Jane viu seu peito nu fazendo o esforço de puxar e soltar o ar. Demorou alguns minutos para que as palavras saíssem de sua boca.
— Eu fui pela minha mãe. Ela era escrava de um senhor de muitas posses e muito poder. Ele a exibia em um grande aquário em sua sala de visitas e toda noite ele a levava para seu quarto. Quando eu soube o que acontecia lá, eu não pude me controlar e quase o matei.
Lantis encarou a capitã, esperava ver nela o olhar de julgo e de repulsa, mas, ao contrário, encontrou empatia e teve coragem para continuar.
— Eu não sabia, mas minha mãe havia feito um trato com ele de que ela seria uma boa sereia caso ele nos poupasse de ir a Ilha. Diziam que minha mãe era a preferida dele, que as outras eram apenas objetos enquanto minha mãe era seu tesouro. O trato foi feito logo depois que fomos capturados então a nossa mente foi poupada por um tempo. - Ele fez uma pausa. — Eu fui açoitado na frente da minha mãe, enquanto ela chorava e soluçava, ele ria e zombava da nossa dor.
Lantis respirou fundo, os nós em seus dedos estavam brancos pela força com que fechava o punho.
— Depois disso foi questão de tempo até que eu finalmente consegui acabar com ele. Durante alguns dias eu me fiz de bonzinho e ele me deixava lavar suas costas durante o banho e então eu o matei afogado em sua própria banheira. – Ele olhou para Jane com uma expressão sombria. — Eu não me arrependo de ter feito com que ele pagasse, mas se eu pudesse voltar atras, eu teria fugido com ela naquele mesmo dia. Eu sei que não teríamos para onde ir, mas quem sabe a minha mãe ainda estaria ao meu lado...
— As sereias não são libertas, onde quer que vocês estejam sempre vai haver alguém caçando vocês.
— Sim, foi esse o pensamento que eu tive na época. Depois disso, minha mãe e eu fomos levados para a casa de um dos filhos dele e lá fomos tratados da pior maneira possível, ainda me lembro do cheiro da jaula que nos colocaram e dos gritos dela implorando para que me deixassem ir, das suas promessas de submissão absoluta e dos homens e mulheres que se aproveitaram da sua fragilidade. Minha mãe tentou fazer o mesmo trato com o filho, mas ele não aceitou. Eu disse a ele que iria de boa vontade até a Ilha se ele a poupasse e ele aceitou, duas semanas depois eu fui levado a ilha pela primeira vez. Ele me daria de presente para uma de suas filhas, afinal eu sou um sereia e mesmo que eu tenha matado o pai dele eu não podia ser descartado.
Jane mantinha os olhos atentos a tudo o que ele dizia, sua atenção estava completamente voltada as palavras de Lantis e dessa forma ele pôde prosseguir com confiança.
— Quando eu voltei, me lembro de ser jogado num quarto escuro com um buraco cheio de água podre. Acho que era algum cativeiro para sereias, não sei. Levou mais de uma semana para eu entender que minha mãe havia sido morta durante a minha viagem. É claro que ele não cumpriria a sua palavra, eu fui um idiota por acreditar. Desde aquele dia até hoje eu não pude chorar a morte dela. De todas as lembranças que eu tenho dela, a maioria são de tristeza ou desespero. Já esqueci há muito tempo como era o som da sua voz ou o formato de seu sorriso. Eu só lembro de seus gritos de dor e seu choro baixinho enquanto estávamos nas celas. Ela sempre me dizia que ia ficar tudo bem e que as coisas iam melhorar. Eu não acreditei nela nenhuma vez, mas não fazia nada a respeito e deixei que todo fardo caísse sobre ela.
Lantis calou-se e cobriu os olhos com uma das mãos, seu corpo todo estava tremulo e sua voz embargada.
— Tenho consciência de que nenhuma sereia, macho ou fêmea, tem uma infância feliz próxima aos humanos, mas eu queria pelo menos me lembrar do rosto dela sem que ele estivesse marcado ou cheio de lágrimas. Não sei se você entende, mas...
— Eu sinto tanto. – A voz de Jane saiu cheia de ressentimento. — Eu sinto tanto por tudo o que você passou, pela sua família, pela sua infância e pela sua mãe. Eu gostaria de poder consertar tudo isso para vocês. — A lágrima escorreu dos olhos dela e deslizaram por seu rosto. Era a primeira vez que Lantis via alguém chorar pelas suas dores. As lágrimas que contornavam o rosto de Jane uniam-se para cair ao chão.
— Eu sinto muito, Lantis. - Sua voz era embargada pela tristeza. - Eu realmente sinto muito.
A expressão dela, as lágrimas, a sinceridade, se ele pudesse chorar por sua amada mãe seria assim, com aquela ternura e com muito respeito.
— Jane... - Ele sentiu vontade de mergulhar em Jane, de fazer parte dela, de compartilhar aquelas lágrimas com ela, aquelas lágrimas que ela chorava por ele.
Jane aproximou-se devagar e o envolveu com seus braços. Não importava que ele estava nu, ou que fosse um sereia, ou que quer que fosse: ela queria consola-lo, protegê-lo e estar com ele. Lantis se deixou envolver e lentamente passou os braços envolta dela, e ainda que suas lágrimas não caíssem, ele sentiu como se chorasse.
— Eu não pude dizer adeus a ela, não puder dizer o quanto a amava, o quanto eu era grato por tudo e o quanto eu desejava que tudo fosse diferente. Ela se foi e eu não puder dizer adeus. – O liquido quente e salgado escorreu em seu rosto, Lantis tocou-os com as pontas dos dedos e as lágrimas não pararam de cair, uma a uma, ele chorou nos ombros de Jane.
Lantis sentiu-se aliviado. Um peso havia saído de seu coração e ele sentia-se bem.
Jane foi quem afastou-se primeiro, os dois entreolharam-se, ele passou delicadamente os dedos sobre os olhos dela secando as últimas lágrimas e afastou-se um pouco mais.
— Obrigado. – Ele disse.
— Não diga isso para mim, eu não posso...
Lantis aproximou-se e tocou a testa de Jane com a sua, pegou as mãos dela e colocou-as no peito.
— Você pode sentir?
— Sim.
— Eu me sinto melhor agora.
Jane fechou os olhos e sentiu o vibrar no peito de Lantis.
— Seu coração tem o ritmo das ondas do mar.
O sereia sorriu e algo dentro do peito de Jane reverberou com aquele gesto.
— Eu posso ir agora.
— Eu vou esperar quando tiver pronto.
— Não é preciso mais.
Lantis puxou o ar e ele veio repleto do perfume da capitã, ele o segurou um pouco e soltou bem devagar. Tomou distancia de Jane e virou de costas para, Jane não teve tempo de dizer mais nada, ele saltou leve e caiu dentro do lago de águas claras.
O que estão achando da história até aqui?
Deixe nos comentários :)
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro