Capítulo 17 - Aconteceu em Vordonisi I
Faziam alguns meses desde que o Alma Negra havia navegado por aquelas águas e todo cuidado era pouco, a ilha em si não era perigosa e nem muito grande - alguns quilômetros de mata quase virgem, mas o mesmo não se podia dizer da água ao redor dela.
O navio deslizava devagar pelas ondas, a tripulação olhava para a água com cautela, o homem na gávea engolia seco cada vez que uma onda um pouco maior passava por eles e o suor não escorria somente pelo calor. Pyra estava ao leme levando o navio devagar sob a água, os homens seguravam espadas e os facões estavam prontos para o embate enquanto as ondas iam sendo quebradas rumo a ilha. Jane estava com Simon na proa de olho no movimento, aproximavam-se da parte mais perigosa, a água ficava mais rasa e mais quente e era onde elas preferiam ficar.
— Fiquem de olhos abertos. - Victhor dizia aos homens ao seu lado, incluindo Will, eles estavam no deck lateral do navio. — Se passarmos dessa parte podemos relaxar, mas até lá fiquem atentos, essas merdinhas são rápidas e traiçoeiras.
— Você parece bem apreensivo. - Will exibia seu sorriso de dentes perfeitos. — Por acaso tem medo de cobra?
Victhor não sabia o que responder, sua expressão impassiva quase não mostrava a incredulidade com as palavras do loiro.
— Minha irmã tinha muito medo. - Como o outro não respondeu, ele continuou. — Mesmo daquelas cobras de jardim ela fugia e saia gritando pela casa até eu assegurar que não tinha mais nenhum rastro da bichinha por lá.
—Você só pode estar de brincadeira. - Victhor estava nervoso, sua testa pingava, ele avançou para cima de Will e apontava o dedo em sua direção. Estava tenso demais para lidar com aquele tipo de humor agora. — Essas desgraçadas engolem um homem vivo. Mesmo você não teria a menor chance contra uma dessas. E você aí comparando-as com cobras de jardim! Se uma delas te pegar, não vai sobrar nem um osso pra ser enterrado!
— Não se preocupe, - De novo aquele sorriso. — Você não vai se livrar de mim tão cedo, irmão. Nenhuma dessas aí vai me pegar.
Victhor estalou a língua e suprimiu um desejo interno de sabe-se lá o que. Ele poderia achar Will um tolo, mas ele ainda tinha alguma coragem e isso dava a Victhor certos desejos estranhos.
Lantis estava com Rupert no depósito de cargas verificando as escotilhas, fechando portas e possíveis locais por onde alguma daquelas pudesse avançar navio adentro. O sereia ouvia com atenção o que o outro dizia, ainda mais depois de saber sobre o ocorrido da última vez.
— A capitã ficou bem mal. Levou algum tempo pra gente se recuperar daquilo. Um dos grumetes pego pela serpente era bem novo, devia ter uns doze anos e foi o mais estraçalhado. Jane ainda tentou cortar a desgraçada, mas aquela pele delas é muito dura, nenhuma espada conseguia perfurar. Uma das bichas entrou no navio, devia ter saído do ovo fazia pouco tempo porque teve tamanho de passar numa das escotilhas e, ela acabou arrancando o braço de um camarada. Esse teve muita sorte, Simon chegou bem na hora que ela estava engolindo o braço dele e sentou marretada nela, e ela saiu meio tonta para o mar de novo. Foi uma correria danada.
Lantis já o tinha visto entre os piratas, só não sabia qual dos dois sem braço era aquele de quem Rupert falava... ou se isso aconteceu com os dois.
Lantis olhava para Rupert com seus olhos de sereia, o azul de várias nuances as vezes se misturava a tons esverdeados como claras enseadas cristalinas e Rupert entendia o motivo que fazia Jane olhar tão fixamente para o rosto dele quando conversavam.
— Você me ouviu? – O sereia franziu a testa.
— O que?
— Eu perguntei por que será que essas serpentes ficam sempre por aqui.
— Ah... – Rupert olhou para o mar próximo a escotilha que acabara de fechar e deu alguns passos em direção ao convés onde ficavam as redes da tripulação. — Ao redor da Ilha tem muitos desses ninhos de serpentes marinhas, - Ele desceu as escadas e o sereia o seguia. — Os filhotes são tão mortais quanto seus pais pelo que a gente sabe, deixam os ovos para nascerem ali e procuram as águas mais quentes e cheias de peixes mar a fora.
— E com todos esses riscos vocês ainda aceitam vir até aqui?
Rupert sorriu.
— É assim que é homem-peixe. É assim que é. Você já se esqueceu? Nós somos do tipo que não temos nada a perder!
Rupert acendeu a lamparina e sentou numa das redes.
— Além do que, parece que há um tesouro nessa ilha.
— Tesouro?
— Ouro e joias, peixinho! Imagina quantas canecas de cerveja boa e comilança que a gente não pode ter com um punhado desse ouro.
O sereia puxou os lábios num sorriso tímido e quase imperceptível. Rupert já estava se acostumando a ficar ao lado de Lantis e o sereia sentia o mesmo, era confortável estar ao lado de alguém que não lhe causava qualquer tensão.
— Fiquem atentos. – Jane dizia aos próximos.
Algo bateu ao lado no casco do navio, os que estavam no convés superior sentiram um frio percorrer a espinha. Os homens na amurada fixaram os olhos atentos nas águas agitadas, o vento soprava as velas devagar e ainda faltava um tanto para saírem da zona mais perigosa. Todos seguravam com força suas espadas e ouviram outro barulho no casco, do outro lado. Jane chegou ao convés, ela fez um sinal pedindo silêncio aos tripulantes, é fácil perceber que ela estava apreensiva. Theodora busca no mar algum sinal que não revele ser as serpentes, que fosse qualquer outra coisa, mas algo se movia junto das ondas e sua garganta secou no instante em que viu algo brilhar junto a água. O suor percorreu o rosto de Simon, ele põe-se ao lado de Jane segurando um machado grande.
Um grito ecoou no ar. Um dos homens vem da proa com um braço arrancado, o sangue jorrando. Olhos vidrados em sua direção, pés rápidos sob o convés e a tensão deu lugar ao desespero.
— Levem-no pra dentro! - Jane dá a ordem. - Depressa, Theodora renda Pyra no leme!
— Elas chegaram! – O homem na gávea respondeu. De lá ele as via, um amaranhado de serpentes abaixo do navio. — ELAS CHEGARAM!
As serpentes eram traiçoeiras, lançavam-se no navio e abocanhavam quem estivesse a frente, caindo do outro lado no mar. Eram como flechas sendo disparadas pelas ondas, eram enormes, suas escamas brilhavam com a luz do sol e sua boca podia engolir alguém por inteiro se tivessem boa mira, o que teriam, quando fossem mais velhas.
A mulher que sempre cuidava dos feridos foi com mais dois para dentro do navio na intenção de estancar um sangramento e tentar salvar o homem que urrava de dor. Não tardou para que mais dois entrassem e logo viriam mais.
Mais um homem, caindo de costas no chão, morreu em minutos sem a cabeça.
— O que está acontecendo? - Rupert surgiu junto a Lantis e ambos viram quando outro foi abocanhado no peito, sendo jogado ao mar com os dentes da serpente puxando sua pele. Ele ainda gritava quando a água invadiu sua boca.
Não precisou de explicações, Rupert olhou para a água e era como um emaranhado de cordas feito de serpentes. Elas estavam ali, passando por baixo e saltando por cima do navio, ágeis e em grande número. Ele arregalou os olhos cheios de pavor, da outra vez que estiveram ali uma delas quase o pegou e as lembranças ainda estavam vividas em sua pele.
— Rupert! - Gritou Jane. - Leve Lantis para dentro. Mantenha-o seguro! Vá!
— Sim senhora! - Rupert empurrou o sereia para dentro. Lantis não queria ir, mas foi forçado por uma espada empunhada pelo amigo. - Vai rapaz!
A capitã estava com a espada na mão e manchas de sangue na roupa, as serpentes passando por cima de sua cabeça, Lantis tentou voltar depois de ver uma serpente passando tão próxima de Jane.
— Precisamos ajudar! – Lantis aumentou a voz o mais que conseguia, o que não era muito.
— Se a capitã ordenou que eu te protegesse aqui, é isso que eu vou fazer. E você nem tente me fazer desrespeitar as ordens dela. – As mãos de Rupert suavam e tremiam, mas Lantis estava muito preocupado e forçou seu corpo para frente.
— Homem-peixe, não me faça desgostar de você. – Uma lâmina bastante afiada roçou a garganta de Lantis. Do outro lado do cabo, Rupert tinha bastante certeza no olhar, ele cortaria a pele do sereia se fosse preciso.
O mar nos olhos de Lantis não ficaram menos agitados do que o mar fora do navio, no entanto ele não tinha outra escolha. Sentou-se no chão com bastante desgosto.
Jane ordenou que os outros arrumassem um lugar para ficarem seguros, mas atentos, se uma daquelas serpentes caísse no convés todos deviam atacar ou a serpente destruiria os mastros e as velas.
E foi o que aconteceu.
Uma das serpentes ao saltar da água se enrolou nas cordas do mastro e caiu sobre o convés, Jane foi para cima golpeando e cortando as cordas, o mastro rangeu e por pouco não veio ao chão. A vela principal foi partida e o navio oscilou para o lado, Theodora gritou por Pyra que correu ao seu socorro. Os feridos teriam que esperar ou todos morreriam afogados ou comidos.
A serpente no convés se debatia e abocanhava o que estivesse por perto, Jane avançou com a espada na altura do estômago com toda força, mas as escamas eram duras e difíceis de penetrar. Com o rabo, a serpente jogou Jane contra a amurada, a cicatriz no lado esquerdo repuxou mais uma vez. Simon e Bartô - um dos piratas, foram contra ela. Utilizando de toda sua força, Simon acertou a cabeça da serpente quando esta tentou abocanhá-lo, ela pareceu tontear e ele repetiu o golpe várias vezes. Bartô fazia o mesmo, não deixando que a serpente fugisse para o mar. Com o golpe, Jane estava com as costas e a cabeça doendo, precisou apoiar-se na amurada, sentiu o sangue descer no lado enquanto sentia-se zonza.
— Maldita!
Muitos homens caiam mortos no convéns, outros eram arremessados ao mar e outros eram engolidos, o navio estava cheio de partes de corpos, sangue e tripas por toda madeira. Pyra que havia assumido o leme era protegida por alguns piratas, ela fazia o possível para manter o navio em curso para saírem logo daquela parte da praia. Simon e Bartô lutavam com uma serpente e não viram quando outra vinha por detrás. A víbora abriu sua mandíbula e armou o bote, silenciosamente arrastava seu corpo pelo chão pronta para abocanhá-los, Simon virou-se quando ouviu o som da serpente estrondando no chão em solavancos de dor, ela tivera os olhos perfurados pelo punhal arremessado de Jane.
Simon fez um aceno com a cabeça para a capitã que retribuiu. Jane correu pelo deck subindo as escadas até o castelo da popa, lutava internamente com a dor que latejava onde o sangue escorria, chegando até onde uma serpente abocanhava o tórax de um dos marujos, sacudindo-o no ar antes de engoli-lo por inteiro. Ela virou-se para Jane, rastejando sobre a madeira ensanguentada do navio, com a boca aberta mostrando os dentes, pronta para fazer outra vítima. Pelo "pescoço" podia-se ver o volume do homem já morto, o estomago de Jane retorceu e por bem pouco ela não colocou tudo para fora.
As serpentes tinham a cabeça como a de um cavalo sem orelhas e sem crina, os dentes eram como facas, formavam duas fileiras e haviam presas na mandíbula superior prontas para rasgar e estraçalhar. Enquanto ela avançava com movimentos rápidos, Jane defendia com a espada as investidas da serpente, seus músculos ardiam com a força desferida, ela buscava algum detalhe que tivesse passado despercebido, alguma brecha naquele monstro que mostrasse como matá-los. Os olhos ardiam e ela estava preocupada, o sol refletia nas escamas das serpentes e vibrava de volta em sua retina, o desespero, a dor e a frustração batendo acelerados em seu coração e a capitã do Alma Negra começava a pensar se estar ali não era um erro, um capricho de seu orgulho. Na primeira vez ela não conseguiu e seus homens pagaram por isso e de novo ela estava ali insistindo teimosamente numa tarefa que era praticamente suicídio. O reflexo do sol mais uma vez bateu sobre as escamas da serpente e Jane frisou os olhos ao olhar direto para ela.
— O-O que é isso? – Foi aí que percebeu uma coloração diferente ao redor do pescoço dela e sem nenhum motivo além desse resolveu arriscar ali. Em mais uma tentativa de devorar a capitã, a serpente lançou-se em direção a Jane que conseguindo desviar do bote da víbora, cortou-lhe a cabeça com um forte golpe de espada. Finalmente! — A cabeça! - Jane gritou para os seus, seu cabelo pingava sangue e sua testa escorria suor, a serpente ainda estrebuchava no chão, mas eram apenas movimentos musculares uma vez que sua cabeça rolava para o outro lado do convés. — Cortem a cabeça na parte mais clara da escama delas! Cortem as cabeças!
Seguindo a ordem dela, os homens foram de confronto com as serpentes no navio, estava dando certo e a coragem chegou levando força para todos eles. A escamas da serpente próximo ao dorso eram duras na altura do estômago, mas naquela parte da cabeça a espada conseguia penetrar e com esforço, a tripulação do Alma Negra passou a vencer as serpentes a bordo.
Jane estava com um pequeno grupo no convés próximo a escotilha de carga, havia uma das grandes ali e eles lutavam contra ela. Vindo da popa, Victhor e Will juntaram-se ao grupo, e tendo este último uma espada na mão, Markus podia ficar preocupado com sua integridade física. Will tinha os golpes limpos e rápidos e a mira era certa, várias serpentes marinhas foram mortas por ele e seus cabelos loiros ficaram vermelhos cheios de sangue. Victhor quase não o reconheceu, o olhar gentil e o belo sorriso ficaram escondidos detrás da violência que ele largava contra as serpentes. Theodora próximo a eles dava conta de mais uma serpente, o comando de Jane fora o suficiente para que ela conseguisse dar conta de pelo menos três filhotes enormes. Os corpos caídos na madeira do navio escorriam sangue.
Outra serpente se debatia e usava a cauda como chicote, jogara um dos homens no chão e sem que ele tivesse tempo para levantar agarrou sua cabeça e a esmagou, pronta para engolir o resto do corpo. Com a fronte da serpente pouco abaixada e ela ocupada em deglutir o homem já morto, a capitã enfiou a espada por baixo, perfurando sua garganta e atravessando sua cabeça, abrindo um espaço para o sangue jorrar e cair sobre Jane. A serpente tombou de lado, deixando à mostra o corpo meio comido do marujo. Os olhos da capitã ardiam, ela usou o dorso da mão para limpar um pouco e viu quando Lantis saia da escotilha de carga, seus olhos se encontraram por um instante e logo ele foi puxado para dentro por Rupert que xingava o sereia de todos os nomes possíveis. A capitã sentiu aliviada por tê-lo visto e saber que ele estava bem, o coração já estava acelerado o suficiente e ela não imaginava que ele tinha capacidade para bater ainda mais. Alivio e surpresa impulsionaram Jane, eles não tinham tempo a perder, ainda haviam outras serpentes para matar.
— Estamos passando! – Um dos homens gritou próximo ao mastro. — Já estamos entrando nas águas frias de novo!
Aos poucos as serpentes a bordo eram eliminadas, outras não entravam, a corrente de águas quentes estava ficando para trás e os filhotes suportavam menos o frio do que os adultos e não houve mais nenhum homem morto.
O borrão que antes fora visto do alto do navio, agora tomava forma e podia-se ver a praia e a cruz de prata do mosteiro abandonado da Ilha Vordonisi.
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