Capítulo 15 - Possibilidades pelo Caminho II
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Os navios piratas tinham acomodações precárias, era tudo bem apertado e muitas das vezes bem sujo. A capitã do Alma Negra mantinha a ordem de seu capitão anterior e as regras eram para manter tudo sempre limpo, de modo a evitar doenças e contaminações, o que não era raro no mar. Quando um pirata adoecia, era isolado e tratado dentro do possível, o que também dependia do quanto este pirata valia para seu capitão. E mantinha-se o afastamento do lugar durante algumas semanas depois que ele falecia, o que não era caso raro. Piolhos e pulgas eram comuns, roedores eram frequentemente encontrados e a dispensa precisava ser protegida de baratas e carunchos. Quando o sereia foi designado a limpeza do navio, pode-se pensar que ele teria pouco a fazer, no entanto, era a área que mais trabalhava. O Alma Negra era um navio pirata, mas não seria um chiqueiro pirata.
O dia era sempre cheio de tarefas no navio, os piratas do Alma Negra esfregavam e limpavam arduamente e recebiam apelidos de outros piratas. Bem, ser chamado de "faxineira do mar", não era tão ruim quando aquele que xinga morria de pereba duas semanas depois.
O descanso era necessário e muito valioso, mantinha o corpo e a mente firmes para os labores dos dias. O sereia estava deitado em sua rede, tinha uns minutos de sossego até voltar a esfregar o convés. Peito nu, sem sapatos e com a bermuda esfarrapada, os olhos estavam fechados, porém ele estava acordado. Fazia algum tempo que podia ficar ali sem que nenhum dos homens fosse incomodá-lo, isso graças a Rupert que mantinha a linha dos piratas como um bom cão de guarda. A dona do cão, claro, era Jane.
O som de botas foi ouvido pelo sereia, a voz feminina que ele reconheceria entre tantas outras dizia algo aos piratas lá em cima. Lantis queria entender o porquê de seus pensamentos estarem tão inundados com aquela capitã. Já havia pensado em qualquer motivo que fosse, mas nenhum era absolutamente convincente para tanto apego por ela. Nem fazia tanto tempo assim que ele estava ali... Ou fazia? Ele nem sabia mais.
— Eu vou descer. - Ouviu quando Jane perguntou por ele e mandou que os outros continuassem lá fora.
O som da respiração dela foi logo percebido por ele, ser um sereia deixava alguns sentidos mais sensíveis e isso tinha lado bom e ruim. Ele fingia dormir quando ela se aproximou.
— Lantis... - Ela disse baixinho seu nome, olhando para ele na rede. O sereia sentiu os poucos pelos de seu corpo arrepiar. Droga!
Jane ficou uns minutos em silêncio, passando os olhos por donde sairiam as guelras no pescoço dele, descendo por seu abdômen cheio de músculos, o peito subindo e descendo com sua respiração e deteve seu olhar quando uma gotícula de suor deslizou da barriga de Lantis para baixo na rede. — Preciso falar com você. - Ela disse depois de limpar a garganta sem motivo.
Ainda que fosse cada vez menor, quando se aproximava dele, a capitã sentia o pesar em sua cabeça. Bastava que ele a olhasse para a sensação de vertigem começar, para o coração dela ficar acelerado e as palmas de sua mão suarem. Para Lantis, Jane era a capitã do navio, ele sabia o que ela representava, aprendera da forma mais cruel o que era acreditar nos humanos e desse mal ele não sofreria de novo. As sensações que causava a Jane, ele tinha plena consciência, era coisa de sereia e não sabia responder por que Jane era tão atingida. Antes da Segunda Guerra do Sangue causar sensações em humanos não nada demais e quando as sereias se encontravam com os humanos eles podiam ficar admirados e sentirem-se bem próximo a elas, era algo gostoso e os humanos sentiam-se afortunados quando viam uma sereia, os humanos podiam aproveitar as sensações prazerosas que percorreriam o corpo como um balsamo regozijante. Mas depois de Azah até isso era visto como algo ruim, um poder maléfico que as sereias usavam para ludibriar e seduzir os humanos. Os antigos donos de Lantis diziam que "aquilo" era para se aproveitar dos humanos, para deixar os humanos fracos à mercê dos caprichos das sereias. Uma vez seu dono o levou na casa de um nobre amigo, ele possuía três sereias fêmeas lindas, que eram tratadas como rainhas. Seu dono saiu da casa dizendo o quanto o amigo enfraquecera desde a última vez que o vira, que estava magro, que estava empobrecendo, tudo porque ele cobria de luxos as suas sereias e se recusava a leva-las de volta a Ilha das Bruxas para que elas entrassem nos eixos. Lantis ficou sabendo mais tarde, que ele foi encontrado morto na beira do mar com a garganta cortada por sua própria faca e que as sereias nunca mais foram vistas.
Enquanto Jane estava ali, ele continuava deitado com olhos apertadamente fechados, na última vez que havia conversado com a capitã ele sentiu-se atordoado, não estava disposto àquilo outra vez. Na verdade, as palavras dela ainda ecoava em sua mente. "Você é livre" "Tudo bem ser egoísta" "Eu caçaria você se fugisse". Lantis pensava que nem Jane sabia o que estava dizendo, ele entendia que ela o queria livre para ser dela, e ele não sabia se isso era diferente de ser um escravo.
Ela deu mais um passo à frente, estava bem próxima a sua rede e aquela fragrância suave adentrou as narinas de Lantis o fazendo lembrar do dia que a viu nua saindo da tina com o corpo coberto de água e apenas um pedaço de pano. Ele engoliu a seco e ela viu o seu pomo de adão subir e descer.
— Eu preciso falar com você. - Jane sentou-se numa das redes ao lado, os joelhos pendidos, os braços erguidos para a frente deixando os dedos se tocarem como se houvesse algo muito interessante por ali. Ela não sabia se Lantis a ouvia. — Preciso te contar a verdade, o motivo de você estar aqui... de eu estar aqui. - Ela respirou fundo, pensando no quanto teria a dizer, organizou os cabelos como se fosse fazer um rabo, mas deixo os fios soltos pendendo pelos ombros. — Fico pensando o que você vai dizer quando descobrir... O mais provável é que ache que sou tola. - Ela riu de si. — É... devo ser mesmo...
Ele abriu os olhos devagar, olhava a madeira do teto aproveitando que ela não o via, ele tinha um pequeno sorriso nos lábios como uma criança que se diverte fazendo alguma travessura sem ser descoberta. A voz dela era gostosa e fazia cocegas em seus ouvidos, ele deixou de lado os conflitos para apreciar o momento. Também era sua escolha manter-se como queria e a sensação era boa.
— Já me disseram que o mundo é cheio de gente esperta e inteligente, tem muita gente por aí que sabe de muita coisa que eu não sei, que é capaz de muita coisa que eu não sou. – Ela ajeitou uma mecha do cabelo atras da orelha. — Eu não me importo com essas pessoas na verdade, eu me importo com aquilo que está ao meu alcance, com o que eu posso fazer agora. Eu não vou me comparar com essas pessoas, acho que eu realmente seria tola se o fizesse.
Lantis teve vontade de rir, Jane devia ser alguém que dava bastante trabalho por aí e tendo esse tipo de pensamento parecia fazer dela alguém bastante difícil de se abater.
— Mas sabe, Lantis, quando Ellyn me salvou naquele dia eu me senti capaz de realizar qualquer coisa.
Ouvindo este nome o coração de Lantis disparou, seu sorriso se desfez devagar, sua respiração aumentou o ritmo. Houve um momento de pausa. Lantis levantou a cabeça e encontrou os olhos de Jane, os dois se olharam por um curto instante, sem reação, ela ficou ali, vendo-o sair da rede e ficar de pé a sua frente. Sabendo que o sereia ouvira o nome da irmã de Azah, a Imperatriz da Água Ellyn, Jane esperava pela reação de Lantis.
— Diga, Jane. - Lantis tinha toda a atenção voltada para ela, seus olhos cor de mar, vívidos e atraentes a encaravam como se estivessem prestes a devora-la. — Como você encontrou Ellyn, se ela está morta há tantos anos?
Houve um momento de tensão, ele abaixou-se na altura dos olhos de Jane. A capitã, por sua vez, se sentia exposta, deixando que ele a visse com uma expressão completamente aturdida, sentiu-se fraca e precisou respirar fundo para não perder a consciência diante do olhar dele. O sereia estava próximo o suficiente para que ela sentisse sua respiração, ela balbuciou algumas palavras sem sentido, a capitã podia jurar que via ondas como no mar agitando-se dentro dos olhos dele.
— Não aqui. – A voz dela saiu como um sopro. — Venha comigo.
Jane e Lantis foram até a cabine da capitã, precisariam de tempo e privacidade para tudo o que tinham a conversar. Os marujos estranharam quando viram os dois entrando juntos, Rupert sorria ao lado de outros dois e logo o rumor estava espalhado pelo navio.
— Já não era hora! - Um dos marujos sorria mostrando a boca com apenas alguns dentes.
Lantis reparava na cabine de Jane enquanto ela enchia duas canecas prateadas com um líquido escuro. Ele passava os olhos pelos móveis de madeira com objetos em cristal e ouro, muitos livros em uma das estantes, alguns baús, um biombo também de madeira com capas de veludo por cima e a cama ainda por fazer. Ele parou o olhar por ali, a roupa de cama de Jane era extremamente branca e ele imaginou se seu travesseiro tinha o mesmo cheiro de seus cabelos... Logo afastou esses pensamentos de sua mente, não era coerente com a situação ficar pensando sobre essas coisas. Ele deu uma última olhada para aquele lado e voltou a olhar para Jane.
— Sente-se - Ela pediu enquanto sentou-se em uma das cadeiras na mesa que estava cheia de mapas e papéis desde a reunião com Victhor e Simon. Lantis sentou frente a ela e notou que havia nervosismo em seus atos. — Espero que goste deste. - Jane entregou-lhe uma das canecas e bebeu de uma vez o líquido da sua. — É um pouco diferente do que se bebe por aí.
Lantis observava o líquido ali dentro e ele parecia um pouco azulado, tentou controlar sua expressão de desconfiança e como ela o olhava, o sereia levou a caneca a boca, sem antes sentir o cheiro forte que a bebida exalava. O gosto era tão ruim quanto qualquer outro rum que ele já houvera experimentado e antes que Jane servisse mais uma taça, como fazia para si, ele recusou tampando com a palma a boca da caneca.
Jane bebeu num gole mais uma vez sem fazer qualquer expressão de desagrado. Ela passou a ponta dos dedos num dos cantos da boca onde havia uma gota da bebida, o sereia prestava atenção no que ela fazia, mas a capitã não notou.
— Eu não sei se você tem noção disso, mas - Jane olhava para a taça sem encará-lo, Lantis levantou as sobrancelhas quando ela começou a falar. — É difícil pra mim ficar próxima a você.
— É, eu entendo. – Ele disse depois de um segundo. — Eu não sei se é algo que eu consiga controlar e ...
— Não. — Ela o interrompeu. — Não é por isso. - Jane percebeu a confusão na expressão dele. — Não é por me deixar tonta ou por fazer meu coração sair pela boca...
Ao que Lantis performou um sorriso, Jane serviu mais um pouco do liquido e tomou pensando que talvez tenha falado mais do que deveria. Mas de todo jeito, já havia falado e palavras não voltam para dentro das bocas.
— Talvez seja isso também. - Ela sorriu e por fim conseguiu encará-lo. — Mas tenho um motivo que preciso que você entenda. – Ela inalou o ar como se ele pesasse demais aos seus pulmões. — E isso me deixa numa situação muito complicada. Vou mostrar a você.
Jane levantou da mesa e quando voltou carregava algo como um porta joias nas mãos, era simples, apenas uma caixa de madeira escura com uma tranca. Jane desabotoou os dois primeiros botões de sua camisa e puxou uma corrente fina de ouro com uma chave na ponta. Lantis observava cada expressão em seu rosto, e por fim, achou que estava reparando demais enquanto ela abria os botões, colocou um pouco do liquido em sua taça e o bebeu forçando a não fazer cara feia.
— Tudo bem, vou ser bem direta. - Ela abriu a caixinha e mostrou um colar com uma pequena concha. — Quando eu era pequena eu conheci uma sereia. Ela foi a loja da minha mãe com sua "dona" e eu fiquei encantada com ela. Não era a primeira vez que eu via uma, mas para mim ela foi especial. - Jane estava com o olhar fixo no colar e sabia que Lantis a observava. Suas palavras saiam com velocidade, ela queria falar tudo de uma vez. — Pouco antes delas irem embora, eu vi que a sereia usava um tipo de coleira feita de ouro e cheia de rubis. Aquilo mexeu comigo, não me parecia certo, não combinava com ela e tenho certeza que estava apertado demais.
E como Lantis apenas observava, Jane continuou.
— Conversei com a minha mãe sobre aquilo e ela me disse como as pessoas viam e tratavam as sereias. Ela me explicou exatamente como as coisas eram, sem esconder a dor que as sereias sentiam. Eu fiquei muito chocada, chorei a noite toda pensando na vida que as sereias levavam. A gente quando é criança se permite sentir muito mais do que quando adultos, você sabe. – Jane talvez tenha ficado um pouco tímida contanto essa história a Lantis, ou podia ser apenas a bebida que corou levemente suas bochechas, mas o fato foi que Lantis a achou muito doce daquela maneira. Jane pegou o colar e passou os dedos delicadamente pela concha. — Eu fiz esse colar pra ela, pra quando ela voltasse na loja e eu pudesse pedir pra tirar aquela coleira e ter algo que não a machucasse no lugar. Coisa da cabeça de criança.
— Mas você tem o colar, ela não voltou.
— Ah, não, ela voltou sim. - Jane deixou o sorriso e sua expressão tornou-se triste. — Alguns dias depois elas voltaram pra buscar a encomenda, a dama fazia questão de ir pessoalmente conferir a mercadoria desfilando pelas ruas, o lacaio ficava na porta. Assim que a vi entrar acompanhando minha mãe para a sala dos clientes, esperei até que a sereia ficasse sozinha. Quando me viu parada ao seu lado sua expressão era a mesma como se estivesse olhando para uma parede branca, fiquei um bom tempo com o colar estendido nas mãos. Ela não pegava. Na verdade, foi aí que eu percebi, desde a outra vez, ela não havia falado, não havia sorrido, não havia feito absolutamente nada que não fosse acompanhar sua dona de um lado ao outro. Ela estava...
— Enfeitiçada. - Lantis completou.
— Sim, provavelmente ela tinha sido levada a Ilha das Bruxas, como se faz com todas. Ela era tão apática, não tem outra explicação se não a Ilha. Mas... Eu estava determinada e não sei como, ela olhou pra mim, viu o colar e guardou-o num lenço. Provavelmente, foi apenas um lapso de consciência.
Lantis estava sem entender, afinal, o colar estava ali na sua frente.
— No outro dia, - Jane guardou o colar na caixa e tornou a falar sarcasticamente. — A nobre dama foi a loja e devolveu o colar que a sereia havia roubado, e garantiu a minha mãe que aquilo jamais aconteceria de novo, ela havia tomado as devidas providencias. - Ela fez uma pequena pausa, as recordações daquele dia deixavam um gosto amargo em sua boca. — A sereia havia sido açoitada e estava presa em casa, ficaria sem comer e sem beber durante três dias como castigo. A dama ainda garantiu que os cabelos haviam sido cortados, mais um modo de castigar as sereias, e ela pessoalmente conhecia compradores que pagariam muito bem por eles e logo ela estaria de volta a loja para fazer uma grande compra como compensação pelo incomodo. Não adiantou que minha mãe explicasse que havia sido um presente, que aquela sereia não havia roubado nada. A dama apenas ria e dizia que a situação estava sob controle e tudo seria remediado. Ela tinha muitas certezas, não iria aceitar estar errada.
Jane estava com os punhos cerrados, a cena da dama contando a sua mãe, do riso em sua boca, o modo como ela falava a respeito da sereia, o cinismo e o descaso...
Lantis sabia bem como era aquilo. Havia perdido a conta das vezes que já vira acontecer, das vezes que seus irmãos e irmãs do mar foram mortos e humilhados envoltos por pessoas que riam e debochavam às custas de tanto sofrimento.
— Eu soube mais tarde pela minha mãe que aquela sereia não resistiu aos ferimentos e morreu no segundo dia. Sereias são frágeis como filhotes de passarinho, eu pensava na época.
Eles se olharam e Lantis parecia confuso.
— Mas então, - Ele disse, depois de um tempo reflexivo. — Foi por isso que me tirou da ilha? Para compensar o seu passado?
Jane sentiu alguma indignação em seu tom.
— Não, não! Depois disso eu quis saber tudo o que podia sobre as sereias, queria encontrar uma forma de ajuda-las e depois de muito tempo eu descobri como e é por isso que você está aqui. - Ela puxou a parte de cima da caixinha e um compartimento de madeira se abriu e Lantis viu cinco pérolas douradas ali. — Foi por isso aqui que eu tirei você de lá. Por que eu preciso de mais e preciso de você pra pegar elas pra mim. – O olhar dela estava fixo em Lantis e o dele nas pérolas. — Quando eu tiver muitas delas, nenhuma sereia vai passar por aquilo de novo, nenhuma sereia vai ser colocada em celas, aquários, ser estuprada, abusada de qualquer forma ou tratada como coisas, e vocês serão livres de novo.
Lantis estava paralisado, aquelas eram pérolas do Império da Água, ele tinha certeza que eram, mas como ela as tinha? E que sensação percorrendo seu corpo era aquela?
O olhar de Jane ardia, ele via fogo nele, e então ele entendeu como ela se sentia. Ele estava tonto, sua cabeça doía e seu estômago estava agitado como o mar lá fora. Aquilo era o mais próximo do que ele conhecia de seu "lar", era algo feito, criado pelo seu povo e estava bem ali diante de seus olhos e ele sentia todo seu corpo reagir.
— Essas são as pérolas do Império da Água. - Mas, talvez não fosse só por causa das pérolas de seu Império que ele se sentia assim. Lantis sabia, também tinha algo haver com ela.
Jane era humana. Com certeza era humana, mas havia ali algo que ele sentiu desde que a viu pela primeira vez naquela Ilha, que o fez acreditar que ela poderia libertá-lo daquele palanque horrível, que o impulsionou a correr mesmo quando o ar queimava seus pulmões. Lantis sentia no fundo de sua alma que se estivesse segurando aquelas mãos ele seria capaz de qualquer coisa. Mas... ela era humana. Do mesmos humanos que amarravam seus pulsos e colocavam coleiras de ouro em seus pescoços, que forçavam seus corpos e açoitavam suas costas. Ela era humana e agora estava dizendo que não só ele seria livre, mas todas as sereias seriam. Ela não era uma sereia, então por que tanto esforço?
— Por que está fazendo isso? Você não precisa. – Uma ruga se formou entre suas sobrancelhas. — Nós somos escravos dos homens há tanto tempo. O que faz você querer nos ajudar? – A pergunta era sincera. — O que você ganha com isso?
— Vocês não são escravos, Lantis, vocês foram escravizados. É diferente. – Ela tinha a voz calma ao falar com o sereia. — Não é porque a governante de vocês errou que todo o povo da água tem que pagar a vida inteira por isso. Ninguém merece sofrer pela eternidade.
— Mas a Imperatriz Azah quase matou todos os homens. – Dizer o nome dela fazia os lábios de Lantis tremerem.
— Azah escolheu o lado errado na Guerra, mas Ellyn tentou salvar a humanidade e se não fosse por ela nós estaríamos mortos. Eu estou viva hoje, eu só existo porque Ellyn enfrentou a própria irmã e deixou que o bom senso falasse mais alto que os laços de sangue. Se foram duas Imperatrizes que tomaram uma decisão, por que a gente precisa focar tanto naquela que fez a escolha errada? Não faz sentido pra mim. Até porque, não foi só ela que errou, quantos lideres nós já tivemos que quase levou a humanidade ao colapso e ainda hoje são aclamados em praças? Isso é hipocrisia e desculpa para continuarem errando.
Ele a ouvia com atenção, a história da Segunda Guerra do Sangue era algo que as sereias eram proibidas de escutar. Ele só sabia algumas partes sem encaixe.
— Por que não posso lutar pelo que acredito? Só por que eu não sou uma sereia não posso fazer nada? Eu acredito em Ellyn e no que ela fez, na decisão que ela tomou por todos nós.
— Mas por que você? – Ele perguntou. — Isso é perigoso demais.
— Acho que a melhor pergunta seria: Por que não eu?
Lantis não teve resposta.
— Se vocês não têm voz para serem ouvidos eu falarei por vocês. – Aquele olhar que Jane tinha era o mesmo que fazia o coração de Lantis oscilar como a chama de uma vela. – Eu falarei aos sete mares até que vocês possam gritar por suas próprias vidas. E não há ninguém que possa me impedir de tentar.
Lantis olhava para ela, aquilo parecia longe de alcançar. Jane respirou fundo ainda falando com seriedade, ela sabia que o que pretendia era quase uma utopia.
— Não é fácil, eu sei disso. Mas tudo precisa ter um começo e se eu conseguir ser esse começo, a faísca de algo que vai incendiar mais lá na frente, está tudo bem. Nada começa já dando certo, tantas histórias começaram com alguém que não era ninguém. Bem, eu posso não ser ninguém, mas este ninguém tem vontade o suficiente para querer mudar as coisas. Não posso apenas assistir algo que eu acredito ser errado acontecer, preciso fazer alguma coisa. Se outra pessoa não fez antes, eu irei fazer, não vou sentar e esperar. Enquanto estamos aqui conversando todo tipo de coisa pode estar acontecendo às sereias por aí e só de pensar nisso eu sinto que preciso fazer algo para ajudar e se o que eu posso fazer é liderar um navio pirata, então é isso que eu vou fazer.
Lantis lembrou-se do que ela havia dito sobre as escolhas e sobre as consequências, sobre poder fazer e ser quem você quisesse e era isso que ela fazia, era isso que ela vivia. Jane tinha um objetivo e estava disposta a tudo por ele, simplesmente pelo fato de que ela podia fazer e buscou oportunidades para que isso fosse possível. Se fosse assim, ele também seria capaz, ele também poderia fazer e ser o que ele escolhesse. Era isso que ele queria.
— Você me disse em Vila do Porto que eu era livre. - Aquela noite ressoou em sua cabeça, ali estava uma oportunidade.
— Sim e você é. - Ela ainda o encarava. — Mas eu preciso de você, não posso deixar você ir sem ter todas as pérolas.
— Tudo bem. - Ele se pôs de pé. — Mas depois que você as tiver, vai me levar a Ilha das Bruxas e tirar isso de mim. - Ele referia-se a tornozeleira. O símbolo de ser uma sereia escravizada.
Tendo Jane concordado, eles deram um aperto de mãos, selando o acordo. Jane sentiu uma pequena onda elétrica percorrer seu corpo enquanto o tocava e teve a impressão que Lantis sentira o mesmo, ele a olhava de um modo diferente agora, ainda de forma intensa, mas de algum jeito mais suave. Ambos ainda estavam segurando as mãos um do outro quando o navio passou por uma grande onda que jogou no chão uma das taças soltas na estante da cabine.
Jane teve o corpo impulsionado para frente e Lantis a segurou pelos ombros, a onda apesar de grande foi tranquila de passar e o navio voltou a estabilidade. Eles entreolharam-se ainda próximos.
Jane limpou a garganta como se houvesse algo preso e deu um passo para trás, Lantis soltou seus ombros e permaneceu no mesmo lugar.
— Tsc, essa taça era cara! – A capitã olhou para os cacos no chão, havia esquecido de fechar a estante.
Os dois abaixaram-se para recolher os cacos, fizeram em silêncio, Jane sentia o rosto arder um pouco e sentia-se um tanto tola por isso. Não sabia se ele reparou ou não, mas o sereia ficou o tempo todo com um sorriso fino nos lábios. Sem mais o que fazer dentro da cabine da capitã o sereia foi até a porta e destravou a maçaneta.
— Boa Noite. - Ele disse.
— Boa Noite. - Ela respondeu.
Lantis demorou um tempo a mais antes de fechar a porta, ele estava olhando para Jane e ela o olhava de volta. Um novo rubor subiu ao rosto da capitã com a possibilidade que aquela ocasião dava, e Lantis sorriu da porta e fechou-a atras de si.
Jane respirou fundo e tomou mais um gole do liquido alcoólico. Ficando a sós, a capitã estava aliviada por não contar a ele que uma das Imperatrizes da Água ainda estava viva. E ainda, como dizer a ele que ela queria trazê-la de volta das profundezas do mar?
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