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┊ 𝟬𝟮. curto-circuito procura uma babá.

━━━━━━━ CAPÍTULO DOIS
curto-circuito procura uma babá

"EXAUSTIVA" ERA UM EUFEMISMO para descrever a vida de Valerie Bradshaw; quando se inscreveu na universidade para o curso de Psicologia Criminal, com certeza havia imaginado algo mais emocionante do que passar horas sentada, correndo contra o tempo para fazer suas anotações e tendo milhares de livros relacionados às dezoito disciplinas que constavam em sua grade curricular forçados a integrar sua lista de leituras. Apesar de tudo, gostava do curso, e bem desejava que fosse ele o único culpado por todas as suas inúmeras preocupações.

Às vezes, as luzes piscavam quando estava por perto. Às vezes, Valerie precisava esconder as mãos nos bolsos e olhar para baixo, e sentia seu coração palpitar, como se a eletricidade nutrisse seu corpo e fizesse uma agitação crescer em seu peito, rápida e indomável. E a fazia querer mais. Como se toda a eletricidade da cidade de Nova Iorque não pudesse ser o suficiente para satisfazê-la. Como se as correntes elétricas a mantivessem viva.

Com certeza, faziam-na sentir daquela forma.

E ela buscava por mais. Buscava pelo Homem-Aranha, porque queria sua ajuda. Quem seria melhor para guiá-la no caminho para se tornar uma heroína — e, finalmente, se suprir livremente da eletricidade que tanto gostava — do que o maior herói da cidade, apelidado carinhosamente de amigão da vizinhança? Ela o havia encontrado uma vez, e ele a havia salvado. E Valerie não tentava se enganar e dizer que o Cabeça-de-Teia era exatamente um ótimo exemplo a se seguir, porque, honestamente, ele não fazia muito sentido e parecia ter tomado algumas latas de energético e perdido alguns parafusos, além de tê-la pedido para o fotografar, o que fazia Valerie acreditar que ele era, no mínimo, um pouco narcisista. 

E talvez, só talvez, Valerie estivesse obcecada por ele.

━ Valerie? ━ ela ouviu seu nome ser chamado do outro lado da porta de seu quarto, e subiu os olhos para ver uma fresta da mesma ser aberta e revelar seu pai. ━ O jantar sai em alguns minutos. Quando acabar… o que você está fazendo, mesmo?

━ Já se esqueceu? Sou a nova cartunista do Clarim Diário, agora que o antigo se aposentou ━ respondeu, orgulhosa da nova conquista, como se não tivesse buscado por um emprego naquele jornal com o único intuito de descobrir a identidade do Homem-Aranha. ━ Como é que você se esqueceu disso?

━ Até semana passada você trabalhava passeando com cães. E até semana retrasada, você era garçonete ━ Arthur Bradshaw começou a listar, agora apoiado contra a batente da porta, e Valerie revirou os olhos. ━ Antes disso, foi babá. É impossível acompanhar você e seu currículo de três páginas, Valerie! De qualquer forma, venha ajudar suas irmãs a arrumar a mesa, sim?

Naquele horário, as quatro irmãs Bradshaw estavam presentes na casa, e certamente a ajuda de Valerie para pôr a mesa era mais do que desnecessária; ainda assim, a segunda filha de Arthur e Anne Bradshaw não sentia qualquer vontade de fazer uma objeção ao pedido do pai. Faziam aquilo em todas as noites, não importavam as circunstâncias; independente de brigas, picuinhas e tensões entre os membros da família, no fim do dia todos se sentavam juntos à mesa, porque ainda eram uma família. E Valerie gostava do sentimento de tradição, apreciava o conforto e familiaridade trazido pelo velho costume.

━ Certo, papai.

Com um sorriso pequeno, o homem a deixou sozinha novamente, fechando a porta cuidadosamente atrás de si. Sentia orgulho de cada uma das filhas, por suas diferentes conquistas; de Victoire por ter se graduado e conseguido um bom emprego, de Valerie por ter ingressado na universidade e estar sempre fazendo coisas novas, de Violet por ser a melhor da equipe de natação de seu colégio, e de Vidya por ser capaz de cuidar de seu peixe sozinha. Poderia parecer uma conquista pequena, mas as outras irmãs costumavam sempre se esquecer de alimentar o peixe, ou de limpar o seu aquário, ou de colocá-lo em um recipiente com água quando lembravam de limpar seu aquário.

Vendo a porta se fechar, Valerie voltou a atenção à tela do laptop, retomando seu trabalho e dando alguns últimos ajustes no cartum que estamparia as páginas do jornal no próximo dia. Gostava de fazer críticas, e de satirizar situações cotidianas. Era também boa com desenhos, e por isso, havia se encaixado bem na vaga que surgira para cartunista do jornal, após a aposentadoria do último. É claro que, trabalhando no Clarim Diário — o jornal que mais publicava fotos do Homem-Aranha, e um dos mais renomados da cidade —, a Bradshaw também ficava um passo mais próxima do amigão da vizinhança.

E estava inspirada, de fato. Havia até mesmo criado um plano para o encontrar, e torcia para dar certo. O que poderia ser melhor para atrair um vigilante, do que um crime? Quem poderia ser melhor para chamar a atenção de um herói, se não um vilão? Com esses pensamentos, fechou o laptop e o abandonou sobre a cama, encaminhando-se para a sala de jantar, onde Violet e Vidya discutiam enquanto arrumavam a mesa.

━ Por que as duas estão se bicando agora, posso saber? ━ perguntou Valerie, arqueando uma sobrancelha.

━ Violet não ficou feliz quando eu perguntei a razão dela andar sempre de preto, como se estivesse indo para um funeral! ━ explicou Vidya, e Valerie segurou o ímpeto de rir. Com a chegada do Ensino Médio, Violet tentava se encaixar; já havia passado pela fase patricinha, feito parte do clube de teatro e ingressado no grêmio estudantil. Agora, havia aderido a moda gótica, aparentemente.

━ Talvez eu esteja me preparando para o seu ━ Violet retrucou, com um revirar de olhos.

━ Vocês são mesmo uns amores ━ ironizou Valerie, balançando a cabeça negativamente. ━ Mas aconselho a parar a briga antes que mamãe chegue, ou eu serei obrigada a ir ao funeral das duas.

━ E Valerie não fica bem de preto, então não queremos ir a enterro nenhum! ━ completou Victoire, com a voz alta, de dentro da cozinha, onde ajudava o pai. ━ Tenham compaixão!

Assim, as duas mais novas continuaram a se bicar, com as vozes baixas e contidas. Quando Victoire e Arthur se uniram a elas na sala de jantar, trazendo panelas com a comida e depositando-as na mesa, deram uma trégua às implicâncias, e todos se sentaram juntos e se colocaram a comer. Anne Bradshaw, a matriarca da família, naquele dia trabalhara até um pouco mais tarde do que o usual, organizando a galeria de arte em que vendia suas obras, e chegou no meio da refeição.

E, como em todas as noites, os Bradshaw contaram sobre seus dias, se implicaram de leve, deram risada e correram para deixar a louça para o mais lento, que, naquela ocasião, foi Victoire. Não eram uma família perfeita, com certeza, mas tentavam se dar bem. Não perceberam o comportamento peculiar de Valerie durante o jantar — a menina era, surpreendentemente, uma boa atriz, e escondia bem seu nervosismo — e, é claro, não contestaram quando a loira se trancou no quarto com a desculpa de precisar estudar para uma prova de Direito Penal e Investigação Judiciária. 

Ela deveria mesmo estudar sobre as leis, porque talvez terminasse a noite em uma cela.

Valerie Bradshaw não se destacava em multidões. Era sempre discreta e quieta, e costumava andar rápido demais pelas ruas nova-iorquinas, sempre com pressa para chegar aos locais necessários. Era uma motorista ruim, e não gostava de dirigir; era um perigo para a humanidade quando o fazia, e a maior dificuldade de sua família era compreender como ela havia conseguido tirar carteira.

Naquele momento, com botas douradas que batiam nos joelhos e um vestido branco que contava com a figura de uma estrela no peito, Valerie se sentia meio… patética, e tão diferente de si mesma. Não era uma boa costureira e, honestamente, nem havia se esforçado muito para criar um bom traje de heroína; planejava se preocupar com aquele detalhe após conseguir seu tutor. Talvez o Homem-Aranha fosse um bom estilista e pudesse ajudar.

━ Por Deus, o que é que eu tô fazendo? ━ murmurou ela para si mesma, levando uma das mãos enluvadas a testa. Deu um giro ao redor de si mesma, e mordeu o lábio inferior. ━ Só espero que o Homem-Aranha chegue antes da polícia…

Em sua cabeça, invadir a galeria de arte da mãe, acionar o alarme de segurança e aguardar pelo Homem-Aranha parecia uma boa ideia. Agora, observando os quadros cobertos por panos brancos, a luz fraca que iluminava o local e as sombras causadas pelas estátuas enquanto o barulho alto do alarme ecoava em seus ouvidos, Valerie duvidava de todas as escolhas que já havia feito na vida, se arrependia das que ainda faria e questionava sua sanidade. Já via sua foto estampando o Clarim Diário no dia seguinte, com a seguinte manchete: "ADOLESCENTE MALUCA INVADE GALERIA DE ARTE DA PRÓPRIA MÃE COM FANTASIA MIXURUCA, ACIONA O ALARME DE SEGURANÇA E AGUARDA PELOS POLICIAIS".

Em uma das portas de vidro, que levava para o outro salão da galeria, a garota observou o próprio reflexo. Levou uma mão à cintura, dobrou um dos joelhos e sorriu, como se posasse para uma foto. Depois, enrolou uma mecha de cabelo em um dos dedos e fez um biquinho, trocando o peso de uma perna para a outra. Cerrou os olhos, analisando a imagem de si mesma, e posicionou as mãos em frente ao corpo como se segurasse uma placa.

Sério? ━ ouviu uma voz atrás de si, e arregalou os olhos. ━ Você tá treinando poses pra foto na cadeia?

Valerie deveria ter pensado em trancar a porta da frente; assim, não precisaria ter sido pega em uma situação tão constrangedora como aquela, tendo em vista que ouviria a entrada do amigão da vizinhança, que agora a observava com os braços cruzados.

━ Não, eu não vou pra prisão ━ respondeu ela, o encarando. ━ Eu nunca cometi crime nenhum.

━ Eu percebi que você não tem experiência, a porta da frente tava aberta ━ disse ele, com a voz quase indignada. ━ Você nem está se esforçando!

Franzindo o cenho, Valerie ousou dar um passo à frente, mas bastou um movimento rápido do Homem-Aranha para que seu pé direito fosse fixado ao chão por uma teia. Com o susto, ela ergueu as duas mãos para o alto, em rendimento.

━ Você parece chateado por eu não ser uma super vilã.

Bom, ele estava chateado; sentia falta de enfrentar grandes vilões como o Lagarto — o maluco cirurgião Curt Connors, que havia adquirido características reptilianas após criar uma fórmula ainda mais maluca para regenerar o próprio corpo —, e o Rhino — que tinha o corpo recoberto por um tecido resistente que se assemelhava a pele de um rinoceronte. Ele certamente não sentia falta do Duende Verde, que havia sido responsável pela morte de sua namorada, e nem do Electro, que passara de um fã obcecado para um inimigo de respeito. Peter tentava não pensar em Harry e Gwen, porque ainda era doloroso demais se lembrar dos acontecimentos de quase dois anos antes. Ele duvidava que, algum dia, as memórias fossem parar de o machucar.

Mas aquela garota o causava algo ainda mais incomum do que o sentimento de adrenalina que o dominava ao lutar contra vilões dinâmicos e absurdamente ardilosos; ela o causava curiosidade. Não tentava lutar, e não parecia particularmente interessada nos quadros ao seu redor que a garantiriam milhares de dólares. Armadilha. Seus sentidos se aguçaram; apesar da audição aprimorada e do sentido-aranha, Parker não reconhecia nenhum perigo naquele momento. Não ouvia sirenes de viaturas se aproximando, e não sentia a presença de ninguém no local, além da garota a sua frente, que agora lutava para soltar a bota desnecessariamente dourada da teia que a prendia no lugar.

━ Isso custou caro… ━ ela murmurou, e começou a descer o zíper do calçado.

Em silêncio, o Homem-Aranha esticou uma das mãos e novamente lançou uma teia, prendendo a mão da loira à bota. Ela bufou alto, tentando se soltar, e o fuzilou com os olhos escuros através da máscara. Acima de si, a lâmpada piscou por algumas vezes, e Valerie respirou fundo. A luz se estabilizou novamente.

━ Eu pensei que você fosse mais simpático.

━ Me desculpe, você quer ajuda para assaltar a próxima galeria? ━ ele ofereceu, levando uma mão ao peito. ━ Porque essa foi claramente um fracasso. Você deveria colocar mais esforço no seu trabalho.

Faziam menos de dois minutos que o amigão da vizinhança havia chegado ali e já a havia prendido no chão e ofendido. Era a segunda vez que Valerie o encontrava, e era a segunda vez que o teioso questionava suas técnicas. Ela começava a se perguntar se realmente queria formar uma parceria com ele; o Homem-Aranha parecia meio mesquinho.

━ Eu não quero roubar nada, seu idiota ━ a menina revirou os olhos. ━ Quero que me ensine o que sabe. Quero manter Nova Iorque a salvo, como você faz e…

━ Você solta teias?

━ Não.

━ Então não vou poder ajudar em nada ━ ele respondeu, e Valerie arregalou os olhos e abriu a boca, indignada e chocada ao mesmo tempo. ━ Mas vou ser o primeiro a comprar o jornal amanhã para ver se suas fotos de macacão laranja vão ficar boas!

E então, com uma tranquilidade quase irritante, ele descansou a mão direita na maçaneta da porta da frente, pronto para ir embora, e Bradshaw ergueu a mão livre, abrindo-a e esticando o braço em frente ao corpo. Fechou os olhos com força, unindo toda sua concentração, e logo despachou uma carga elétrica em forma de raios em direção ao Homem-Aranha, que, avisado pelo sentido-aranha, desviou rapidamente, soltando a maçaneta e se virando para a encarar mais uma vez.

━ Ah, então você tem alguns truques na manga, é?

Mais uma vez, ela lançou raios em sua direção, e suas íris brilharam. A lâmpada acima de si, mais uma vez, ameaçou se apagar, e Peter observou com os braços cruzados enquanto os raios desapareciam ainda no meio do caminho, sem o alcançar de fato.

━ Você precisa mesmo de prática, Curto-Circuito ━ opinou, embora levantasse as sobrancelhas impressionado por baixo da máscara.

Ela ergueu os olhos esperançosos em sua direção, com um pouco de dificuldade devido à posição em que se encontrava, ainda com uma das mãos presas a bota, que por sua vez estava presa ao chão. Havia algo de familiar em seus olhos, Peter notou, mas não soube dizer a razão.

━ E você vai me ajudar?

Ele soltou uma risada nasalada, balançando a cabeça negativamente.

━ Não tenho tempo pra isso, sabe, costumo estar muito ocupado salvando a cidade e coisas do tipo… ━ respondeu, sacudindo uma das mãos de forma displicente, como se não fosse grande coisa. ━ Mas ei, se você precisar de ajuda, o amigão da vizinhança está sempre a disposição!

E, antes que pudesse receber uma resposta da garota, já havia aberto a porta, saído da galeria e lançado uma teia no prédio mais próximo, desaparecendo da visão de "Curto-Circuito" em uma questão de meros segundos. No topo do prédio, tirou sua máscara e esfregou os olhos com as mãos, cansado do dia cheio que havia tido. Observou a galeria, agora tão distante, e comprimiu os lábios em uma linha fina; apreciava a atitude da garota, de verdade! Era nobre de sua parte querer ajudar, mas o Homem-Aranha era uma pessoa bastante ocupada com os próprios problemas para poder pensar em servir como a babá de uma nova amigona da vizinhança em potencial.

Grandes poderes traziam grandes responsabilidades, e aquela responsabilidade certamente não era dele. Ou era? E se ela se revoltasse contra o lado bom da força e se tornasse uma super-vilã poderosa? Bom, ela se tornaria sua responsabilidade.

Mas, naquele momento, Peter tinha outras preocupações, afinal, tia May o havia mandado buscar duas caixas de leite e ele já estava atrasado.

Com muita dificuldade, Valerie conseguiu soltar a mão da bota direita, que precisou ser abandonada no chão da galeria. Assim, descalça e com uma única bota sendo levada nos braços, a menina correu para fora da loja, dando uma última olhada nas câmeras — que havia coberto com sacolas de supermercado — para averiguar que não poderia ser reconhecida. Conforme o barulho das sirenes se tornava cada vez mais alto, denunciando a proximidade da polícia, a menina apressou os passos, correndo pelas ruas de Nova Iorque e soltando eventuais xingamentos a cada vez que sentia um incômodo particular nas solas dos pés.

━ Amigão da vizinhança… ━ ela resmungou, enquanto subia em uma lata de lixo cilindral, da qual tomava impulso para alcançar a escada de incêndio que a levaria para o quarto. ━ Não é amigão coisa nenhuma, aquele idiota! Só quer alimentar o próprio ego e fazer piadinhas.

Enquanto subiu as escadas com cuidado, parou para ajeitar a bota nos braços e quase se desequilibrou. Assim que recobrou o equilibrio e segurou fortemente a escada, a bota escapuliu, e Valerie observou todo seu trajeto em queda livre até bater no topo da lata de lixo e cair no chão. Com um longo suspiro cansado, ela revirou os olhos, voltando a subir.

━ Eu não preciso dessa bota mesmo. Já perdi o par dela na galeria, por culpa do estúpido Homem-Aranha ━ continuou a praguejar, até entrar no próprio quarto pela grande janela, que fechou com uma força desnecessária, antes de se jogar na cama. ━ Quanta humilhação…

Se levantou em um pulo, desejando apenas tomar um banho e finalmente dormir, mas enquanto pegava uma toalha, seus olhos pousaram no laptop, que agora descansava na escrivaninha ao lado do guarda-roupa. Tirando a máscara que escondia parcialmente seu rosto, Valerie jogou a toalha na cama e sentou-se em frente à mesa, já abrindo o eletrônico. 

━ J.J. vai amar essa tirinha ━ disse para si mesma. ━ Homem-Aranha, você acaba de me garantir a ideia de como conseguir um aumento…

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