🌺 Capítulo 23 - Delírios 🌺
Khan Al - Abadi
Termino o treino do dia. Os soldados responsáveis por meu preparo não facilitam, mesmo se tratando do filho do Sultão. Na verdade, sinto que isso os instiga a exigir ainda mais de mim. Meu próprio pai fez questão de dar essa incumbência aos melhores de seu exército.
Apesar de ainda ser um adolescente, minha rotina de treinamento é rigorosa e pesada. Meu pai parece sentir a necessidade de preencher todo o meu tempo com atividades, além de me preparar para substituí-lo um dia.
Já disse que isso não irá acontecer tão cedo. Tenho certeza que viverá muito. Mas depois que minha mãe adoeceu, ele parece ter ficado obcecado em me preparar para ocupar seu lugar.
Bufo com o pensamento sem propósito. Cumprimento o soldado adversário e entrego a espada ao tenente. Seco o suor com uma toalha, bebo água e caminho até o cercado dos cavalos. Os únicos minutos de diversão durante o dia antes do almoço e a volta aos treinos a tarde. Além da aula de esgrima, treino equitação, tiro, autodefesa e as aulas normais com um professor particular bilíngue vindo da Inglaterra contratado pelo Sultão.
Sorrio e acaricio a cabeça do potro recém-nascido. É tão lindo. O pelo branco, porém brilhante. A mãe, puro-sangue árabe. O pai, de uma raça rara de cavalos turcomenos. Um dos mais inteligentes, resistentes e velozes do mundo. Ganhei de presente quando completei quinze anos. Ainda não escolhi seu nome, mas estou pensando em batizá-lo como Akhal, por ser o nome da raça do pai, Akhal-Teke.
__ Khan! O que está fazendo?__ Olho para a escadaria de onde Kaled desce correndo.
Sorrio para meu irmãozinho e sacudo seu cabelo quando se aproxima. Está com dez anos. Em breve começará também seus treinos, mas nossos pais exigem menos dele. Talvez por se tratar do filho mais novo e por Kaled ser bem mais carismático e extrovertido. Isso facilita a comunicação com nossos pais. Também sempre foi bastante obediente. Já eu, sou fechado e estou começando a não concordar com algumas coisas que tenho visto no meio de nosso povo.
Dias atrás recebi um tapa no rosto de nosso pai, porque o contestei na frente dos líderes do governo. Discutiam sobre o fato de uma comissão ter se formado em busca da defesa dos direitos do povo. Exigiam reformas das leis e dos direitos dos cidadãos de Durab fi Alsahra. O grupo foi chamado de "rebeldes". Um dos homens de confiança do Sultão o aconselhou a "cortar o mal pela raíz", exterminando-os o quanto antes.
Eu, que sempre acompanhei meu pai e assisti as assembleias em silêncio, pela primeira vez me pronunciei e sugeri que o Sultão ouça o grupo antes de tomar uma atitude drástica. Os líderes da reunião de cúpula agiram com indignação mediante minha intromissão. Meu pai apenas me olhou com severidade e ordenou que me calasse. Porém quando ficamos a sós, fui severamente punido.
__ Meninos! O Sultão exige a presença de vocês imediatamente!__ Kaled e eu nos sobressaltamos com o chamado de Almir através da janela do andar de cima.
__ Será que nossa mãe piorou, Khan?__ Kaled olha para cima inseguro.
__ Não se preocupe. __ Dou um tapa em suas costas para tranquilizá-lo.__ Não há de ser nada. Vamos! Sabe que o Sultão não gosta de esperar. __ Reúno minhas coisas e subo correndo a escadaria do palácio acompanhado de perto por meu irmão.
Um choro doloroso chega aos meus ouvidos assim que alcançamos o corredor onde fica o quarto principal. Assustado e com Kaled agarrado em minha túnica, paro na porta do aposento de nossos pais. Vejo pela primeira vez meu pai chorar. O Sultão está debruçado sobre o corpo de minha mãe. Ela está deitada no leito muito quieta e imóvel. As mãos cruzadas sobre o peito.
__ O que está acontecendo?__ Pergunto a uma das criadas. Ela tem os olhos cheios de lágrimas.
__ Ela se foi. Descansou do sofrimento.__ A mulher abaixa a cabeça e sai do quarto.
__ Não! Pai?! Isso que ela está dizendo não é verdade, não é? Mamãe não nos deixou.__ Kaled sai de trás de mim. Seguro sua mão.
__ Filhos, aproximem-se. __ O Sultão ergue o rosto e acena...
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Lembranças tristes se misturam com sensações desconfortantes. A queimação na garganta se alastra por todo meu corpo. Ora sinto frio, ora calor. Tenho a impressão de que meus vasos sanguíneos vão estourar. Ouço vozes, gritos e movimentação ao meu redor, mas não tenho forças para falar. De repente não é minha mãe que está naquele leito. Sou eu.
Reconheço apenas uma voz dentre todas. Está chorando. Gostaria tanto de reconfortá-la. Não quero vê-la sofrendo por minha causa.
Sinto todo meu corpo queimar. Espasmos musculares e uma dor dilacerante em meu braço me levam ao desespero. Só quero que isso passe. Me sacudo tentando exterminar a dor. Sinto um líquido escorrer por meu rosto como se alguém derramasse lágrimas.
Ela me chama.
__ Adrielle...__ Abro os olhos por alguns instantes, mas tudo está muito confuso.
Em algum momento alcanço sua mão ou ela alcança a minha. Sinto seu rosto bem próximo e sua voz em meu ouvido. Quero abraça-las e consolá-la, mas meu corpo não obedece.
__ Adrielle, eu te amo. __ Finalmente consigo falar. A voz fraca.
__ Eu também te amo.__ Não sei se estou delirando, mas ouço ela responder. A voz embargada.
__ Agora que fala!__ Sorrio lamentando nossa pouca sorte.
Nova onda de dor. Parece que alguém está injetando um líquido em minhas veias. A queimação reinicia. Mas dessa vez não causa o mesmo desespero. Me relaxa. Sinto a respiração tranquilizar e o tremor parar. Será que estou morrendo? Finalmente me livrando do tormento. Mas e ela? Tenho tanto para lhe falar. Mal tivemos tempo de tentar. Preciso lutar. Tenho que voltar. Estava tão desolada da última vez que a vi. Ela precisa de mim...
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Desperto confuso sem entender o que aconteceu e onde estou. A sensação que tenho é que fiquei na mesma posição por muito tempo. Meus membros estão pesados e adormecidos. Pelo menos a dor e os tremores cessaram. Encaro o teto do que parece ser uma das tendas do acampamento. O que realmente aconteceu? Pequenos flashes vão surgindo em minha cabeça. Se confundem com um sonho triste relembrando a morte de minha mãe.
O grito de uma voz feminina me assusta. Ergo a cabeça e vejo Soraia ao pé da cama. Gesticula e agradece a Allah de braços erguidos.
Outras pessoas entram na tenda. Me observam extasiados como se vissem um fantasma.
__ Adrielle. Onde está Adrielle? __ Meus olhos percorrem rapidamente o grupo.
Soraia diz que ela está fora. Raja a levou. Insistiu em ficar ao meu lado por todo o tempo em que estive inconsciente, mas precisava se alimentar e se banhar.
Um médico entra na tenda. Começa a me examinar. Verifica sinais vitais e me faz perguntas. Ainda falo meio que arrastado e rouco, como que me readaptando. Ao fim, explica que o fato de estar vivo é praticamente um milagre. Cheguei a um estado grave muito rapidamente, por conta do veneno de uma víbora do deserto.
Agora me lembro do que aconteceu!
Fizemos uma parada para nos abastecer e descansar em um óasis próximo ao ponto de destino. Pretendíamos partir em poucas horas em busca da "rosa do deserto" , presente que Hani achou perfeito para expressar seu amor à esposa. Alimentava a fogueira com gravetos, quando notei um movimento discreto no solo arenoso próximo ao local onde Hani descansava. Rapidamente saquei o punhal preso na cintura. Não poderia gritar para alertar Hani e os outros, isso só assustaria a criatura que começa a surgir.
Caminhei lentamente para perto. Chutei a perna de Hani tentando despertar meu amigo, mas seu sono era profundo. Primeiramente surgiu o dorso da cobra, logo depois, a cabeça triangular se ergueu. O corpo ágil serpenteia ao seu redor. Começa a se erguer em posição de ataque. Me preparo para cortá-la ao meio. Mas é nesse instante que Hani desperta. Arregala os olhos. Ainda gesticulo para que se mantenha imóvel, mas ele age por impulso. Grita e salta para longe. E nesse momento a víbora se lança e alcança meu braço.
Daí por diante tudo acontece muito rápido e difuso. Uma dor dilacerante se espalha por meu braço. Tenho a impressão de ter levado um choque. Caio e começo a me contorcer de dor. Em algum momento todo meu corpo convulsiona e perco o sentido...
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Adrielle
Ergo o corpo da água límpida do oásis e caminho cabisbaixa até a beira. Raja imediatamente joga uma manta em meus ombros. Sento em uma pedra e ela começa a secar meus cabelos. Meus olhos inchados ardem. Permito-me chorar mais uma vez enquanto espero. A água fria serviu para despertar do topor que me invadiu nos últimos dias. A realidade é triste, vazia e sem cor.
Noites em claro e o medo de a qualquer momento perceber que o coração dele parou. Não queria sair de seu lado. De alguma forma acreditei que estar ali segurando sua mão lhe transmitiria força.
Deus, só peço que ele saia dessa com vida. Que seja forte. Que se recupere e volte para nós. Muita gente depende de Khan. O pouco tempo em que estive em Durab fi Alsahra pude testemunhar o líder que é. O irmão, jamais será capaz de governar e se colocar no lugar do povo como Khan faz.
As pessoas dessa tribo o amam. Ele não faz diferença entre pobres e ricos. Trata todos igualmente e luta pelas causas dos desfavorecidos. Khan é um homem diferente.
Raja abraça meus ombros por trás.
__ Não se preocupe. Nosso Qayid é forte. Vai resistir. Tenha fé. __ Beija o topo de minha cabeça.
Ergo os olhos vermelhos e sorrio triste.
__ Ore para que nosso Sultão volte, Raja. Por favor. __ Abaixo a cabeça desolada.
Ouço a garota balbuciar uma prece em sua língua.
O berro de um dos meninos da tribo nos desperta desse momento contrito. Olhamos em direção à aldeia. O garoto vem correndo e gritando em seu dialeto local. Imediatamente, Raja leva as mãos à boca. Os olhos arregalados e úmidos me encaram. Uma dor absurda atravessa meu peito.
__ O que está acontecendo?!__ Levanto e caminho para trás com as mãos no ouvido.
Quero ir para longe deles. Não quero ouvir! Não posso aceitar.
Raja começa a saltar em minha direção. Um sorriso surge no rosto. A confusão se instala em minha mente.
O que ela está comemorando?!
__ Qayid acordou! __ Ela segura meus ombros e me sacode.
O garoto saltitante festeja ao nosso redor enquanto os encaro incrédula.
__ Vista-se! Zeremite trouxe o recado. Ele está a chamando!
Desperto da apatia em poucos segundos. Aos tropeços, visto a túnica limpa que Raja me arranjou. Arranco o tecido em forma de turbante da cabeça e disparo correndo em direção ao acampamento...
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