Capítulo 6
O plantão da manhã, no hospital, era movimentado e contrastava em tudo com o plantão noturno. Havia o dobro de enfermeiras. Elas davam banhos nos pacientes, atualizavam suas fichas, preparavam os medicamentos e, enquanto isso, os auxiliares trocavam rapidamente a roupa das camas e serviam o café da manhã.
Mal acabou de chegar, Charlotte encontrou-se com o Dra. Laura Houston. Ela estava parado à porta do quarto de Anne e lia a ficha da garota com muita concentração.
— Já viu Anne? — Perguntou Charlotte.
— Ia vê-la neste minuto. Teve algum problema ontem à noite?
— Não. Planejava uma sessão com a menina agora de manhã, mas achei melhor conversar antes com você. Ela está muito excitada com a perspectiva de ver seus pontos.
— É o que acontece com todas as crianças, não?
Os dois entraram no quarto. A tensão da véspera não se refletia mais no rosto de Anne. Seus olhos brilharam quando os viu entrar. A Dra. Houston examinou-a e, assim que ela removeu-lhe a atadura, ela disse, envergonhada, que precisava ir ao banheiro.
Charlotte segurou o braço de Anne, enquanto ela punha lentamente os pés no chão.
Assustada, ela levou a mão à barriga.
— Parece que tudo vai desabar!
— Não se preocupe — Disse Charlotte, procurando tranquilizá-la. Anne sorriu e, com a ajuda de Charlotte, foi lentamente até o banheiro. Lá entrando, ficou parada diante do espelho, levantou a camisola e contemplou fascinada o corte da operação.
— Os pontos vão ficar na minha barriga para sempre? — Perguntou, muito alarmada.
— Não. O Dr. Blosson os removerá dentro de uma semana. Quando o corte sarar de uma vez, ficará apenas uma pequena marca.
— Que legal! Não vejo a hora de mostrar para o tio Dante. Ele havia me prometido se caso ficasse alguma cicatriz, eu poderia fazer uma tatuagem no lugar. Meu tio tem algumas pelo corpo, elas são lindas. Meu pai e minha mãe também tinham... E eu também quero ter algumas. Ele vem almoçar comigo e disse que será igual a um piquenique.
— Que divertido!
— A senhora também não quer vir? Tenho certeza de que vai sobrar comida.
— Sinto muito, mas não posso, Anne.
A última coisa que Charlotte queria era ver Dante Mayweather. Claro que teria de avistar-se mais tarde com ele e fazer um breve relatório a respeito de Anne, além de combinar o horário das sessões de psicoterapia, mas não aquela manhã. Ainda estava viva em sua memória a cena da véspera.
— Sabe, hoje preciso ver outros pacientes. — Explicou. — Virei visitá-la enquanto você estiver aqui no hospital. Depois que você for para casa, poderá me procurar e conversaremos.
— Sobre o quê? — Perguntou Anne, um tanto desconfiada.
— Sobre o que você quiser. Poderá me falar das coisas que a deixam feliz, daquilo que gosta, da escola, de qualquer assunto, enfim.
— Posso falar, por exemplo, da minha melhor amiga?
— Sem dúvida! Anne, será que precisa de minha ajuda neste momento?
— Bem... eu não estava com vontade de vir ao banheiro. — Confessou a menina, encabulada. — Fiquei com medo de que a médica pusesse uma nova atadura e não me deixasse ver o corte da operação.
— Não tem importância. Agora é melhor você voltar para a cama, pois a Dra. Houston precisa ver outros pacientes. Se ela concordar, poderemos dar um pequeno passeio pelo corredor.
Daí a pouco a médica retirou-se e elas ficaram a sós.
— Podemos passear agora? — Perguntou Anne, mais do que decidida a se levantar.
— Daqui a pouco. Primeiro quero conversar com você, Anne, sabe o que é uma psicóloga?
— Não.
— Bem, uma psicóloga é alguém que conversa com as pessoas ou que ouve gente que tem problemas ou que enfrenta fatos que os magoam. Pois é exatamente isso o que eu faço. Sou psicóloga. Quero que sejamos amigas, mas quero também que você converse comigo. Gostaria muito que você me falasse de seus pais. Posso entender muito bem...
— Não pode, não! — Interrompeu-a Anne. — Ninguém pode. Eles me abandonaram... Mentiram para mim! Mentiram para o meu tio e...
— Não, Anne, eles não a abandonaram, apenas morreram. A culpa não foi deles. Sofreram um acidente.
— Não quero falar disso. Você não sabe de nada! — Anne desviou o rosto e ameaçava chorar.
— Está certo. Vou respeitar o seu desejo, mas se mudar de ideia. Estou aqui para lhe ouvir.
Charlotte segurou o queixo da menina e fitou aqueles olhos tão azuis. Não costumava usar sua própria experiência a fim de ganhar a confiança de seus pacientes, mas ganharia um tempo precioso se Anne entendesse que aquilo que lhe acontecera não era um acidente isolado. Outras pessoas tinham sofrido exatamente a mesma perda.
— Sabe, quero lhe contar um segredo. Sei muito bem como você se sente e entendo-a talvez melhor do que qualquer outra pessoa. O que aconteceu com você aconteceu também comigo.
— É mesmo?
— Sim, e levei muito tempo para acreditar que era verdade. Eu compreendo o quanto isso dói. Algumas vezes é um alívio a gente poder conversar este assunto com os outros e é isto que eu quero que você faça. Não sei se você já se abriu com o seu tio Dante.
— Ele me pediu, mas eu não quis contar.
— Contar o quê?
Anne não disse nada e desviou o olhar.
— Quero que você saiba de outra coisa, Anne. Cuidarei de você, mas também serei sua amiga, ouviu?
Anne concordou com certa timidez. Ainda não estava pronta para aceitar Charlotte, mas a confiança chegaria com o tempo. Charlotte sorriu e levantou-se.
— E então, vamos dar nosso passeio? — Propôs à menina.
Charlotte ia ajudar Anne a levantar-se quando pressentiu que havia mais alguém no quarto. Voltou-se e deparou com Dante Mayweather. Ele a encarava com tamanha intensidade que ela chegou a sentir um frio na boca do estômago. Há quanto tempo ele se encontrava lá? Teria ouvido sua conversa com Anne?
— Bom dia, doutora.
— Você chegou cedo, tio Dante! — Anne começou a rir quando ele a ergueu da cama, segurando-a por alguns momentos. — íamos dar um passeio. A Dra. Laura deixou. Você não quer vir também?
— Por que não passeia com seu tio, Anne? Poderemos ir juntas um outro dia.
— Não, quero ir com vocês dois!
— Está bem, está bem! — Disse Dante, olhando rapidamente para Charlotte. Pôs a menina no chão e pegou em sua mão. Ela deu a outra mão a Charlotte.
— Sabe que vi meus pontos agora há pouco? Achei tão legal! Charlotte disse que serão retirados daqui a uma semana e que vou ficar com uma cicatriz, mas muito pequena. sendo assim, posso fazer uma tatuagem quando for mais velha?...
Enquanto andavam pelo corredor, a menina falava sem parar, toda feliz. Dante ficou surpreendido quando ela chamou Charlotte pelo nome e em seu olhar surgiu um pedido de explicação. Ela, porém, evitou encará-lo e limitou-se a prestar atenção em Anne, embora percebesse muito bem a atitude de Dante. Quanto mais ele a encarava, mais constrangida ela se sentia. Gostaria de encontrar uma desculpa para poder retirar-se e foi socorrida mais depressa do que esperava. Aproximavam-se da recepção e a enfermeira dirigiu-se a ela.
— Dra. Charlotte, um telefonema para a senhora.
Dante e Anne prosseguiram pelo corredor. Kira, a secretária de Charlotte, comunicou que a mãe de uma das pacientes pedia para mudar o horário da consulta. Após resolver o assunto, ela foi até o quarto de Anne a fim de despedir-se.
— Voltarei amanhã... — Disse, ao notar que a menina ficara um pouco desapontada.
— Não pode vir para o nosso piquenique? Tio Dante disse que vai trazer uma porção de coisas gostosas.
— Bem que gostaria, mas hoje não é possível. Quem sabe outro dia?
— Promessa é dívida! — Observou Dante.
Pela primeira vez, desde que ele chegara, Charlotte notou uma expressão de desafio em seu olhar. Acenou para Anne e retirou-se rapidamente. Mal tinha acabado de apertar o botão do elevador, alguém segurou em seu braço.
— Preciso conversar com você. — Disse Dante baixinho.
— Eu estava imaginando quando é que a comédia ia terminar. — Disse Charlotte.
— Que comédia?
— A comédia em que você representou o papel de parente da doente, enquanto eu representava o papel de médica.
— Queria que eu agisse de outra maneira?
— Não, mas também não quero falar com você.
— Isso será um tanto difícil, levando-se em consideração o fato de que você está tratando de minha sobrinha. Por outro lado, tenho algumas perguntas a fazer.
— Pois não. — Disse Charlotte, um tanto constrangida por ter interpretado mal as palavras de Dante. — Tenho de atender vários pacientes até o fim da tarde. Apareça lá pelas seis horas.
— Ótimo.
Assim que o elevador chegou, Charlotte entrou e, para grande surpresa dela, Dante fez o mesmo. Quando a porta se fechou ele pôs as mãos em seus ombros.
— O que você está fazendo? — Perguntou ela.
— Podemos conversar a respeito de Anne em seu consultório, mas sei o quanto você se preocupa com a sua reputação. Nesse caso, onde é que sugere uma conversa a nosso respeito?
— Não há o que conversar.
— Ainda não, Charlotte, mas em breve haverá...
Dante se exprimia com tamanha autoconfiança que ela hesitou.
— Como você é convencido, egoísta!
— Não é convencimento e muito menos egoísmo reconhecer o que acontece entre nós. É preciso aceitar esse fato exatamente como ele se apresenta.
— Não, obrigada.
— Mas por que não? Por que não devemos voltar a nos ver? Dê-me uma explicação.
— Estou tratando de sua sobrinha.
— Isto não é uma explicação, mas uma desculpa.
— Ouça, Dante, esta conversa não nos levará a lugar algum.
— Concordo plenamente.
— Sr. Maywearther, para falar com toda franqueza, saiba que não estou nem um pouco interessada em...
Dante inclinou-se e seus rostos quase se tocaram.
— Não está mesmo? Não consigo esquecer que a tive em meus braços por um breve momento e que você, por uma razão que desconheço, quer negar a sua sexualidade.
"Eu também não esqueci", pensou Charlotte. Sonhara com Dante: eles trocavam um beijo prolongado, mas que não os satisfazia. Ao recordar esse fato, seus lábios começaram a tremer. Ele se encontrava tão próximo que Charlotte conseguiu perceber as rugas em torno de seus olhos e as sobrancelhas negras e longas. Cometeu, então, o engano de encará-lo e sentiu-se perdida, ao se ver refletida naquelas íris de um azul intenso. Embriagou-a a promessa de paixão. Sentiu o hálito quente de Dante, o cheiro da água-de-colônia que ele usava e viu o mais ardente desejo em seus olhos.
Dante percebeu a inquietação de Charlotte. Ela lhe dava a sensação de que prendia a respiração, ansiosa, à espera de que ele agisse. Acaso ela queria que a beijasse ou que se afastasse? Ele não soube dizer. Tinha certeza do que queria, mas o mesmo não acontecia com ela. Segurou de leve em seu queixo e, com um dedo, traçou o contorno de seus lábios. O ar vibrava carregado de desejo, paixão e de dúvidas.
— Charlotte, você não precisa ter medo de mim. — Ele disse.
— Mas não tenho! — Ela declarou com toda honestidade. Não temia Dante, mas os compromissos que um relacionamento entre eles sem dúvida exigiria.
— Ainda bem. — Ele murmurou.
Charlotte sentiu-se desapontada quando Dante se endireitou sem beijá-la. As sensações perturbadoras deram lugar à melancolia. Ela ajeitou os cabelos, sentindo que tinha entrado e saído de um sonho, naqueles breves momentos em que se encontrava no elevador. A porta se abriu e ninguém poderia ter a menor desconfiança de que se passara algo entre eles. Dante tocou de leve em seu braço.
— Virei vê-la às três.
Ela concordou e ele se afastou. E agora, o que faria? Ficar perto de Dante era o mesmo que brincar com dinamite. O pavio estava aceso e tudo poderia terminar numa explosão. Talvez o melhor fosse sugerir outra psicóloga para Anne. Assim evitaria as ocasiões de encontrar-se com aquele homem.
— Para tudo dá-se um jeito. — Murmurou Charlotte.
No entanto algo a prevenia para afastar-se das emoções que a sacudiriam por inteiro.
1995 Palavras
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