Capítulo 16
A feira de antiguidades da cidade ocupava três enormes galpões muito velhos e oferecia uma variedade impressionante de objetos. Charlotte seria capaz de passar horas visitando as barracas, à procura de pequenas garrafas de vidro que vinha colecionando há anos.
Lá havia um pouco de tudo: Além de peças e colecionáveis recheados de "memória afetiva", a feira oferece brechó, artesanato, venda de objetos de decoração, bicicletas e triciclos antigos, itens coloniais e de galpão, louças, porcelanas, ferramentas, brinquedos de outrora, geladeiras vintage, baleiros, pratarias e cristais, lampiões de bronze e latão, espelhos com belas molduras douradas, quadros, móveis, etc. Charlotte achava tudo aquilo fascinante e até mesmo sua mãe acabou admitindo que se divertia.
Sônia contemplava a filha e, como era muito boa observadora, percebia nela uma certa mudança. A menos que se enganasse, a seriedade dela dera lugar a uma descontração inesperada. Seus olhos brilhavam e ela estava corada. O que teria acontecido para deixá-la novamente feliz?
— Como vai sua nova paciente? — Perguntou tentando descobrir alguma coisa. — Sei que você estava preocupada.
— Ela está indo muito bem. Creio que hoje a menina chegou num momento muito importante da terapia.
— Não me diga?
— Pois é. Dante me procurou agora de manhã. Ele estava muito preocupado com uma sugestão que eu fiz, pois achava que sua sobrinha o estava fazendo somente por indicação minha, o que não foi o caso. Creio que agora ele entende tudo muito melhor.
Sônia notou o leve sorriso que acompanhou a explicação dada por sua filha.
Não se intrometia na vida de Charlotte, mas ela se tornara excessivamente reservada, sobretudo quando lhe faziam perguntas relativas à sua vida social. Talvez fosse Dante o causador daquelas mudanças sutis em sua filha, mas Sônia não queria fazer um interrogatório. Escolheu outra tática a fim de satisfazer a curiosidade que sentia.
— Acho que isso tornará tudo muito mais fácil para o tio da menina e para a mulher dele.
— Bem, ajustar-se a uma nova mãe é um problema que a menina não tem. O tio dela é solteiro.
Naquele instante Charlotte contemplava um belo armário de mogno, com puxadores de marfim, e não percebeu o sorriso de Sônia.
— Se eu tivesse meios, provavelmente mobiliaria minha casa com móveis antigos. — Ela comentou.
As duas prosseguiram e a atenção de Charlotte foi desviada para algumas garrafas de vidro, nos fundos de uma barraca. Uma delas era cor de ametista, semelhante à que tinha no parapeito da janela da cozinha, mas estava com defeito.
— Essas peças se tornam cada dia mais raras. — Disse o proprietário da barraca.
— Se a senhorita gosta de vidros antigos, conheço uma loja nos arredores da cidade que possui uma bela coleção. Na verdade é lá que compro a maior parte de meus objetos e os preços são muito bons.
— Por que não vamos até lá? — Sugeriu Sônia. — Em seguida poderemos ir almoçar.
— Mamãe, você me surpreende! Julguei que as antiguidades não a interessavam.
— Bem, quem sabe acabo encontrando uma coisa que venho cobiçando há algum tempo?
— O que é? Pois me deixou bastante curiosa agora.
— Não caçoe de mim!
— Prometo que não. Diga logo! Está me deixando curiosa! Repetiu a frase como se fosse ainda uma criança o que fez a mãe sorrir.
— É uma cadeira de balanço!
— O quê? — Charlotte caiu na risada.
— Eu sabia que você zombaria de mim!
— Não, de modo algum! É que é tão difícil imaginá-la sentada numa cadeira de balanço, fazendo tricô ou costurando... E onde pretende colocar a cadeira? Na varanda ou na frente da televisão?
— Engraçadinha!
— Mamãe, você tem de convir que uma cadeira de balanço não combina muito bem com a sua imagem! Bem, vamos para a tal loja. Não tive a intenção de ofendê-la!
O proprietário da barraca deu-lhes o endereço. Há muito Charlotte não ia para aqueles lados da cidade e ficou surpreendida com o que viu. Escritórios, lojas e prédios de apartamentos levantavam-se de todos os lados. A cada ano que passava a cidade ficava diferente e logo seria um grande centro de múltiplos negócios.
Num prédio em construção viu uma placa que lhe chamou atenção: o nome Mayweather estava escrito em letras negras sobre fundo amarelo. O carro de Dante estava estacionado a meio quarteirão dali.
— O que foi? — Perguntou Sônia, interessada.
— Nada, mamãe. Não imaginava que isto aqui tivesse se desenvolvido tanto.
Charlotte sentiu um frio na barriga. Era estranho aproximar-se do local de trabalho de Dante e saber que ele se encontrava lá.
O sinal havia fechado e ela aproveitou para observar melhor o prédio em construção. Estava na fase de revestimento com tijolos vermelhos e tinha uma aparência elegante. Que engraçado! Achava que Dante se interessava por aquelas monstruosidades de vidro e concreto aparente, que eram tão populares. Fazer suposições errôneas a respeito dele já estava se tomando um verdadeiro hábito.
Dante estava no terceiro andar do prédio, sozinho, pois o empreiteiro descera, à procura de algumas plantas. Acendeu um cigarro e, pensativo, contemplou o tráfego na rua em frente. Não conseguia controlar muito bem seus pensamentos e tentava, sem o menor sucesso, expulsar para bem longe a imagem daquela bela criatura de cabelos loiros levemente ondulados...
No fundo, sentia-se aliviado pelo fato de ter telefonado a Charlotte, após aquela visita dramática à sua casa. Estava a tal ponto obcecado pela rejeição e pelo total desinteresse dela, que nem mesmo procurara examinar melhor o que a teria levado a não se envolver emocionalmente com quem quer que fosse. Por outro lado, ele havia feito quase a mesma coisa, quando voltara do Vietnã, há alguns anos atrás. O choque da guerra e do fato de ter sido prisioneiro pesaram muito, mas a revelação que o esperava em casa fora mais traumatizante do que todas as provações por que passara.
Descobriu que tinha sido enganado e levou muito tempo para livrar-se daquela sensação de vazio. Lutou muito para aceitar que seu irmão casara-se com a namorada dele durante sua ausência. Só quando conseguiu pôr o orgulho de lado é que compreendeu por que Sloan e Izzie não tinham lhe contado nada. Mas o pior foi ficar com aquela desconfiança que o seu próprio irmão e sua antiga namorada o haviam traído. A desconfiança principal era saber se até mesmo quando estavam juntos, Izzie e Sloan mantinham um relacionamento as escondidas e que talvez o seu desaparecimento em combate teriam trazido alívio aos dois. Além disso, havia Anne, a filha dos dois que Dante sempre desejou ter um dia com Izzie, mas no fundo tudo apenas passou de uma grande ilusão. Fora um pouco sincero ao dizer a Charlotte que o passado pode arruinar o futuro, pois sentira aquilo na carne. Pois ainda não tivera coragem de revelar os nomes dos envolvidos, e talvez num futuro próximo teria que contar essa história para Anne também. Não permitiria, porém, que esse fato interferisse na possibilidade de um relacionamento positivo com ela. Havia aprendido a duras penas que deixar as coisas para depois poderiam trazer mais infelicidade ainda.
Dante deu uma tragada no cigarro e de repente um carro popular de cor clara chamou sua atenção. O sol punha reflexos mais dourados ainda nos cabelos de Charlotte e ela fez um gesto com a mão, protegendo os olhos. Ele sorriu e jogou o cigarro fora.
Naquele momento decidiu que seu futuro ao lado de Charlotte não seria deixado por conta do acaso. Ela havia atingido uma parte profunda de seu ser, onde ninguém até então penetrara, sem sombra de dúvidas Charlotte era completamente diferente das mulheres que tinham passado por sua vida durante aqueles anos todos. Ela sobrevivera ao sofrimento e trazia cicatrizes, assim como ele também, mas Dante conhecia o bálsamo que poderia aliviar não somente aquele coração perturbado, como também o dele...
Quando o farol abriu, o carro de Charlotte afastou-se e logo Dante o perdeu de vista.
Continuou mergulhado em seus pensamentos e bem que gostaria de saber para onde ela ia.
A loja ocupava uma casa inteira. Tratava-se de uma velha construção do final do século XIX, mas em muito bom estado. Uma pequena tabuleta era a única indicação que aquela era a casa que Charlotte e sua mãe procuravam.
Quando entraram, tiveram a sensação de que retrocediam no tempo. Os objetos não se apresentavam misturados, como costumava acontecer em antiquários. Cada vaso, cada castiçal ou lampião achava-se em seu lugar, sem outras peças que diminuíssem sua beleza.
— Há alguém aqui? — Disse Sônia, e imediatamente alguém que se encontrava no andar de cima respondeu.
— Olá! Fiquem à vontade e espiem o que quiserem. Desço daqui a pouco.
Charlotte logo descobriu que apenas a sala da frente estava mobiliada no severo estilo vitoriano. Cada um dos ambientes se referia a determinado período. Ela não conhecia suficientemente as antiguidades para distinguir os estilos, mas tinha bom gosto e apreciava o que era belo. Um conjunto de móveis chamou especialmente sua atenção.
Era uma cama de casal, de mogno escuro, com um dossel de rendas. Toda entalhada, os motivos que a decoravam se repetiam na cômoda, nas mesinhas-de-cabeceira e na penteadeira.
— O homem que nos deu o endereço não exagerou. Este lugar é incrível mesmo! — Observou Sônia.
Charlotte descobriu uma prateleira repleta de garrafas de vidro. Uma delas era de um vermelho quente, cor de rubi. Encantou-a também um par de vasos em miniatura, pintado com delicados ramos de flores. Decidiu adquirir as três peças e, de repente, mais uma peça chamou sua atenção. Era um canecão de vidro, tendo na parte central um unicórnio pintado de branco. Sem saber exatamente por que, acrescentou-o às peças que tinha escolhido.
— O dono ou a dona desta loja tem um enorme bom gosto. — Comentou Charlotte.
— Obrigada!
A proprietária aproximou-se; era muito mais jovem do que Charlotte esperava. Tinha cabelos muito negros, amarrados com um lenço azul, e usava uma saia comprida que quase lhe chegava aos pés.
— Meu nome é Catalina Baraldo. — Disse, sorrindo com muita simpatia. — Querem ver alguma coisa em especial?
Charlotte mal acreditava no que via. Olhou mais uma vez para a criatura, pois não tinha certeza de reconhecê-la sem a maquilagem e as roupas elegantes que a ajudavam a criar um tipo.
— Lina? — Perguntou, hesitante.
— Um momento, um momento. Não enxergo um palmo adiante do nariz sem os meus benditos óculos.
— Bem, pelo menos isso não mudou! — Comentou Charlotte.
— Mudei muito, mas ainda continuo cega como um morcego! Caso contrário eu a teria reconhecido imediatamente, se não fosse o seu novo corte de cabelo, que é fantástico!
Charlotte conhecera Lina quando ainda estudava na faculdade. Após seu casamento, viam-se de vez em quando, mas acabaram por perder o contato.
— Esta loja é sua?
— É, embora hipotecada...
— Lina, não sei se você se lembra de minha mãe.
— Mas é claro! Como vai, Sra. Mckagan?
— Bem, obrigada. Parabéns pelo bom gosto, Lina. Sua loja é linda.
— Faço o que é possível!
— Como é que isso foi acontecer? — Perguntou Charlotte.
— Da última vez que tive notícias suas, você estudava medicina tropical.
— É uma profissão impraticável, a menos que se queira ensinar ou fazer pesquisa, o que, aliás, não me atraía. Fui trabalhar numa loja de antiguidades, mas quando minha mãe morreu herdei esta loja, junto da casa nos fundos da loja e decidi me arriscar a abrir meu antiquário.
— Mas então esta loja é sua?
— Minha e do banco que me fez um empréstimo. Gastei um bocado, pois tive de reformá-la. Moro nos fundos da loja, o que para mim significa uma grande economia.
— Tenho uma ótima idéia. — Disse Charlotte. — Vamos almoçar. Você não quer vir conosco?
— Bem que gostaria, mas não tenho com quem deixar a loja. Ela ocupa a maior parte do meu tempo, mas não me queixo. Fica para a próxima vez. Sabe que vi Arthuro com o filhinho de vocês num supermercado? Deve ter sido há uns dois anos...
Charlotte deu um sorriso amarelo, mas comportou-se com uma naturalidade que surpreendeu a si mesma.
— Deve ter sido pouco antes do acidente. Perdi os dois.
— Oh, Charlotte! Que terrível! Mil perdões, eu não sabia. Sinto tanto, eu...
— Mas fale-me de você. Casou-se?
— Quase! Eu vivia num mar de rosas, toda iludida, mas descobri que, enquanto estudava a evolução das doenças tropicais, ele estudava a anatomia de outras mulheres. Suas pesquisas eram bem práticas... Ainda bem que a descoberta veio antes do casamento. Quem sabe um dia voltarei a tentar? No momento estou satisfeita namorando e me divertindo bastante. Agora conte-me o que andou fazendo esses anos todos.
Charlotte falou a respeito de seu trabalho, das crianças a quem ajudava e do quanto isso a realizava.
— Eu também encontrei vários desafios quando comecei este negócio. — Comentou Lina. — O que mais me incomoda é a campanha das construtoras, para que venda minha casa. Conforme você notou, o bairro está sendo praticamente demolido e reconstruído.
— Mas você me parece muito feliz.
— De fato. Lembra-se de como nos preocupávamos com o futuro e com quem iríamos nos casar? Que perda de tempo e de energia! Tudo acaba se encaixando no seu devido lugar, não é mesmo?
— Parece que sim.
Charlotte e sua mãe despediram-se.
— Não vamos deixar passar mais anos sem nos vermos! — Disse Lina. — A mais ou menos uns duzentos metros daqui existe um restaurante, com um café ao ar livre. Fica à direita e você logo perceberá. Eu o recomendo a vocês, tem uma atmosfera bastante agradável.
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