Ações têm Reações
Uma música ambiente sai pelas caixas de som espalhadas pela extensa sala de estar. A arquitetura da casa é ao mesmo antiga e contemporânea, com um conceito aberto que liga a cozinha com a sala. Uma escada em espiral leva para o andar de cima, ainda inexplorado pelas recém chegadas.
No sofá em L da sala, os outros três convidados conversam animadamente.
Liz passa rapidamente os olhos por todos. Dois desconhecidos, um conhecido. Seus olhos param em Erik, que no mesmo instante para de conversar com o moreno ao seu lado para cruzar seu olhar com o dela, com um sorriso caloroso. Ele se levanta, puxando a namorada ao seu lado.
Atravessa a sala a passos largos e dá um apertado abraço em Liz, como se o devesse a tempos. Ela retribui. Não são mais que velhos amigos.
- E aí, sumida? Nunca mais te vi! - Ele a solta para apresentar a namorada. - Essa é Daniela.
- Dani. É um prazer! - A garota que cumprimenta Liz é bastante magra, mas ainda assim muito bonita da cabeça aos pés. Tem sua altura, com olhos castanhos que parecem quase amarelos, uma tonalidade que ela nunca havia visto antes. Seus cabelos pretos pendem sobre seu peito com ondulações que parecem feitas em photoshop. Liz se pergunta se são naturais.
- O prazer é meu. - Ela abraça Daniela, perguntando-se se Erik havia contado sobre o passado deles. Não tiveram nada relevante o suficiente para comentar.
- Sou Caio. - O garoto negro se levanta do sofá. Com os cabelos curtos levemente armados, lábios grossos e olhos negros como jabuticabas, é de longe um dos garotos mais bonitos que Liz já vira. Têm um corpo magro, mas definido, por baixo da jaqueta azul marinho.
Ele a cumprimenta com um beijo na bochecha e Liz se pergunta se está corada. Que besteira, já é uma mulher adulta.
Ela troca olhares com Gabrieli. Com os anos de convivência, aprenderam a se comunicar apenas por olhares e movimentos de sobrancelha. Gabi começa.
"Disse que valia a pena se arrumar."
"Não seja atirada!"
"Eu, não! O aniversário é seu! Olha esse presente!"
Os presentes se reúnem todos na sala, grande o suficiente para os oito sentirem-se distantes.
Samantha passeia pelo andar, com autorização de Alice. Ela adentra um corredor extenso com portas fechadas. Não se sente confortável espionando, por mais que queira. Bem, ainda não.
O corredor a leva para uma espécie de varanda. As janelas de vidro extensas do chão ao teto parecem substituir as paredes. Ela abre a porta de vidro. Uma área de lazer deliciosa se estende. Uma piscina aquecida de vinte metros fica ao lado da churrasqueira. O piso de pedra contorna toda a área, terminando antes de tocar um ipê amarelo, que cresce majestoso e derruba suas pétalas e folhas sobre a límpida água.
Sam volta pelo mesmo caminho, tentando não se perder. Para no corredor assim que chega à um aparador de granito com cerâmicas estilosas e fotos de família. Ela toma um porta-retrato em mãos - o que lhe chamou a atenção. Na foto, Alice está entre os pais e um garoto ao seu lado está com a cara fechada. Talvez pouco mais velho que ela.
- Meu irmão. - Alice se aproxima devagar, o que faz Samantha se sobressair. - Dante.
- Ele é bem bonito. - Samantha comenta. - Desculpa ser meio intrometida.
- Não foi nem um pouco. A casa é sua!
Mesmo assim, Sam deixa o porta-retrato aonde encontrou, não ousando mais mexer nas coisas da anfitriã. Ela volta para a sala, mas antes olha para trás discretamente. Alice olha para a foto com uma expressão indecifrável. Parece triste.
A noite já havia caído lá fora. Com ela, um frio inesperado.
Sentados em volta da mesa de centro, os oito jogam todos os jogos de baralho que conhecem.
Erik se senta novamente no sofá, ocupando seu lugar. Volta da cozinha com duas cervejas - uma para ele e outra para Dani. Seus olhos pousam nas mãos de Liz.
- Para de olhar minhas cartas! Pelo menos seja menos descarado. - A ruiva reclama.
Ele ri, envergonhado.
- Não, eu tava olhando seu punho. - Ele puxa a mão esquerda da garota para ele. Vira para olhar logo abaixo do relógio, em cima de uma veia pulsante, o delineado claro de uma borboleta. - Desde quando tem ela?
Liz sorri tristemente.
- Aniversário de dezenove.
- E o que significa?
Liz poderia dar uma explicação extensa. Significa muita coisa, mas ela resume, deixando-o interpretar livremente.
- É pra eu lembrar que ações têm reações.
Por um segundo, Erik não entende, mas repousa as costas no sofá novamente e liga os pontos. Ela se refere à Henrique.
Aquela noite também não sai de sua cabeça - e ele imagina o que não faz com a dela.
- Ok! - Gabrieli se levanta e joga as cartas na mesa. - Eu ganhei de novo e como eu cansei de envergonhar os senhores... - Ela não termina a frase e se dirige à cozinha. - Quero ficar bêbada.
Alice olha em seu relógio. 22h48.
- Acho que já está na hora. - Diz, docemente, e sorri para Mateus. Ele claramente está apaixonado por ela. Dá para ver só pelo jeito que se olham.
- Hora do quê? - Sam pergunta, mas Alice já está de pé. Se dirige ao interruptor no canto da sala e apaga as luzes. Por um instante, todos mergulham no mais intenso breu, com apenas a luz da lua entrando pelas janelas. Logo, uma iluminação fraca e roxa sai do rodateto de toda a casa, primeiro e segundo andar. A música ambiente tocada no violão transforma-se em uma batida eletrônica que chacoalha as paredes.
- Parece um puteiro. - Caio comenta, fazendo todos caírem na risada.
- Ouvi dizer que daqui há algumas horas é aniversário de alguém. - Alice sorri e dirige-se ao freezer da cozinha, abrindo a porta do mesmo e mostrando o interior com todos os tipos de bebida que existem, para todos os gostos.
Gabrieli é a primeira a comemorar, já com um maracujá meio cortado e uma faca em mãos.
- Vamos fazer um esquenta! - Alice conclui e pisca para Liz, que cora.
Odeia ser o centro das atenções. Mentira que conta para si mesma. Ela abre um sorriso e se levanta, apoiando-se no sofá. Promete a si mesma que naquele fim de semana vai tocar a vida para frente.
Desde o incidente Liz não ficava bêbada. Agora, com seu terceiro copo de vinho seco em mãos, começa a rir de qualquer comentário. Está dançando com a namorada de Erik já não sabe há quanto tempo, como se fossem velhas amigas.
As músicas da playlist parecem ter vindo diretamente do celular dela - são suas favoritas.
Ela se joga no sofá, matando o último gole da taça de vinho, que desce queimando por sua garganta com uma sensação gostosa e familiar.
Do outro lado da sala, a parceira de dança cai sobre Erik. Os dois não se importam em se beijar na frente de todos, deitando-se no sofá.
Liz ri.
É, com certeza está bêbada.
Está prestes a levantar quando alguém se senta ao seu lado, afundando-se no sofá.
Caio aparece com o resto da garrafa de vinho em mãos.
- Já que você é refinada demais pra se embebedar com vodka como uma pessoa normal, pensei em te acompanhar com esse vinhozinho aqui, o que acha?
Liz sente saudades da confiança que tem quanto está bêbada. Ela sorri e pega a garrafa das mãos de Caio, dando um demorado gole. Ele finge se impressionar, aproximando-se mais alguns centímetros.
- E então... - Ele tenta puxar um assunto. - Você faz o quê? Tá na faculdade?
- Ah, qual é, Caio. É Caio, né? Não precisa desse papo furado. É quase meu aniversário.
Ela aproxima o rosto do dele.
Ele ri. Um sorriso de derrubar qualquer um.
- Eu não sou muito bom nesse negócio.
- Que negócio?
- Sabe... flertar.
- Eu duvido muito. Isso é papo de pegador. Mas eu não ligo.
Caio não queria conversar e ficou feliz de ela ter percebido. Rouba um beijo dos lábios dela, rápido demais, e se afasta. Ela só sente desejo.
- Vai bancar o difícil agora?
- Não. - Ele beija seu cangote. - Só quero mais privacidade.
Caio inclina-se sobre ela e coloca uma das mãos no topo de sua coxa. Liz arfa de excitação.
Ela se lembra que Alice dera passe livre para toda a casa. Inclusive, a loira não estava mais lá. Ninguém estava, tirando o casal meloso do outro lado da sala.
- Onde? - Ela sorri maliciosamente, o rosto a centímetros do de Caio.
- Lá fora.
- Está congelando.
- Eu te esquento.
Ela solta uma gargalhada.
- É, você é péssimo nisso.
Ele se sente minimamente ofendido, e despeja o mais desesperado beijo nos lábios de Liz, puxando-a para mais perto e findando o mísero espaço entre eles.
Ela percebe o quanto está desajeitada.
- Ok, lá fora. Me dá cinco minutos?
- Te espero lá.
Liz sobe as escadas o mais rápido que suas pernas conseguem responder. Nem ao menos chegou a ver o quarto em que vai dormir.
Segue para onde viu Mateus entrar com as malas.
Um corredor escuro lhe aguarda. A música vinda de todos os lados encobre qualquer outro som do ambiente. Os outros sumiram há tempo demais, ela percebe.
A sensação de mergulhar em um corredor escuro estando com os sentidos deturpados é péssima.
Uma luz fraca invade o corredor pelas frestas de uma porta. É para lá que ela vai, guiada pela luminosidade como um inseto.
A porta se abre silenciosamente e ela entra sem pensar nas consequências.
Gabrieli está sobre Samantha, beijando-lhe os lábios com fervor e entrelaçando os desesperados dedos de uma das mãos nas madeixas loiras da outra. Sua outra mão puxa a blusa da amiga para cima. Liz apressa-se a pigarrear.
Elas se assustam e desembaraçam-se.
A reação da ruiva é apenas sorrir para Gabrieli.
- Sabia que não ia ficar sozinha.
- Eu dou os meus pulos.
- Tranque a porta quando der seus pulos.
Sam cora e agradece pela luz fraca a encobrir.
Liz solta o cabelo e balança a cabeça para os fios se acertarem.
- Desculpa a intromissão, mas eu estou um nojo.
- Um nojo bom ou um nojo ruim? - Samantha pergunta, já se levantando. Se sente esquisita. Nunca pensara em pegar uma garota, muito menos a amiga. Não disse que não gostou.
- Existe nojo bom?
- Claro que sim.
- Então um nojo ruim. - Ela encara o espelho.
- E por que está se importando com isso agora? - Gabrieli pergunta, deitada na cama, a observando passar um batom nos lábios e um rímel rápido nos olhos.
- Porque é meu aniversário.
- E? - Ela a conhece bem.
- E eu vou dar uns beijos no moleque com cara de modelo lá embaixo.
Liz deixa as duas sozinhas no quarto de novo. Ainda não encontrou Mateus ou Alice, mas imagina que devem estar aproveitando da imensidão da casa como os outros. Ela percebe como coincidentemente estão todos aproveitando aquele noite. A dela ainda está para começar. Olha no relógio. 00:15.
Sorri por ser seu aniversário pela primeira vez em tempos, data que antigamente ela adorava comemorar.
Ruma para o lado de fora, passando discretamente por Erik e Dani, que nem ao menos a percebem no recinto. Ela abre a porta de vidro que dá para a área da piscina. O vento gelado a recebe, cortante. Ela fecha a blusa.
- Caio? - O som da música fica guardado dentro da casa. Do lado de fora, sai abafado.
Ela não ouve resposta. Ruma para a área da churrasqueira e dá uma volta.
- Caio? - Repete o nome do garoto, impaciente. Não se arrumou para ficar prostrada como uma árvore no frio esperando a boa vontade de um cara que ela sequer conhece.
O vento atravessando as árvores produz um som sinistro, como se um fantasma sussurrasse em seus ouvidos. A escuridão da mata atrás dela é o mais puro breu. Ela se sente observada - uma sensação idiota, mas não quer mais ficar ali, estática, sozinha.
Batendo o pé, ruma para dentro da casa. Pensa em dar mais uma volta e entrar pela lateral. Ela ainda não viu tudo o que a espera no fim de semana.
À medida que se afasta da área da piscina, o som da música vai diminuindo, dando lugar apenas ao vento soprando as folhas para cima dela. Seu queixo começa a tremer de frio e Liz se abraça dentro do agasalho fino.
Dá uma breve corrida até a casa, olhando apenas para o chão, quando vê seus pés pisarem em um líquido escuro. Ela se sobressai, arqueando as sobrancelhas.
O líquido viscoso escorre até seus pés saindo de uma pequena porta a alguns passos dela, na lateral direita.
Sua respiração mostra-se entrecortada e sua curiosidade grita mais alto que qualquer instinto.
Passo ante passo, aproxima-se da porta e gira a maçaneta gelada devagar.
O que vê a aterrorizará até seus últimos dias.
O sangue vermelho de Caio tinge os ladrilhos brancos do banheiro externo. Sangue esse que jorra de um corte profundo em sua garganta, mergulhando-o em uma piscina vermelha.
Em seu peito, uma folha de caderno pautada está grampeada com escritos em sangue:
"Ações têm reações".
Seus olhos estão arregalados, sem vida, como se a última coisa que tivesse visto o tivesse apavorado até a morte.
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