Capítulo 8
Menina do anel de lua e estrela
Raios de sol no céu da cidade
Brilho da lua oh oh oh, noite é bem tarde
Penso em você, fico com saudade
- Lua e Estrela - Caetano Veloso
Sexta à noite e a Mônica estava atrasada.
Nada como dançar para afastar o desânimo que tinha lhe assombrado durante a última semana. Ela retocou o ruge e o batom, prendeu o cabelo num rabo de cavalo no alto da cabeça e deu a última remexida na frente do espelho. A blusa curtinha de pano mole e brilhante ia ficar bacana na luz da danceteria onde ela pretendia se acabar na pista com os amigos. Ela encheu os braços de pulseiras e colocou o anel de lua e estrela para dar sorte. Sempre que usava o anel, ela fingia que o Caetano compôs a música para ela, o que era ridículo porque a música já tinha sido lançada quando ela comprou o anel, e ela comprou o anel por causa da música.
A casa estava silenciosa e escura, e ela deixou um bilhete dizendo onde ia, novamente só para apaziguar sua consciência. Bastou entrar no carro e um olhar para o banco do carona, para ele driblar todas as defesas do seu cérebro e pular na sua cabeça sem ser convidado.
Eduardo. Eduardo. Eduardo!
O menino conseguiu se entranhar pelos poros da Mônica e se instalou no seu organismo com mais eficiência e intensidade que uma infecção indesejada. O domingo seguinte à festa foi um tormento. Ela fez uma coisa inédita e passou o dia em casa, grudada no telefone, esperando ele ligar. À noite, ela precisou encarar que o Eduardo não era o tipo de cara que fazia joguinhos, se ele não tinha ligado, foi porque não quis e era provável que não ligasse mais.
Por isso, ela invadiu a semana como um furacão, se enchendo de distrações para evitar pensar nele. Praia quase todos os dias, uma tarde inteira no salão fazendo todos os tratamentos de beleza que pôde, cinema, compras que não precisava no shopping e, na noite anterior, varou a madrugada num show no Circo Voador.
A noite tinha começado mal. Ela quase voltou para casa quando viu o Ivan entre os amigos que a esperavam em frente aos Arcos da Lapa. Felizmente, depois que se tocou que ela não queria repetir a dose do final de semana anterior, ele não forçou a barra e os dois curtiram o show como amigos. Graças aos deuses pela música alta que impediu qualquer tentativa de conversa. No final das contas, ficou tudo bem, o Ivan parecia contente apenas com a sua amizade. A Mônica não queria nenhum mal-estar entre eles, o único que precisava sair irritado dessa história, era seu pai.
O plano de exilar o Eduardo da sua memória quase funcionou com perfeição, não fosse todas as músicas que ela escutava lhe lembrarem dele, ou a revolta com todos os meninos que passavam de mãos dadas com a namorada não serem os dois, ou o filme que ela assistiu pensando se era do gênero que ele gostava, e que se danasse se não fosse porque sempre havia uma alternativa para passar o tempo no escurinho do cinema. Às vezes, ela se arrependia por não ter pedido o telefone dele, só para se dar os parabéns logo em seguida. Menos uma tentação para resistir. E ela não se orgulhava do momento de fraqueza e a volta de carro pela Gávea na esperança de vê-lo. A única coisa que a impediu de entrar na rua em que ele morava foi o fato de não existir uma desculpa convincente para justificar a razão de estar 'passando' numa rua sem saída.
Hoje, seria diferente.
Hoje, o Eduardo não tinha vez.
A Mônica deu partida no carro com a mesma determinação do sábado passado. Ela não ia ser exigente, nem procurar nem defeitos ou desculpas. Não deu certo uma vez, mas poderia dar certo naquela noite. O importante era ficar atenta à faixa etária de suas companhias. A não ser que o Caetano estivesse lá. Esse era um coroa com quem a Mônica não se importaria de passar a noite conversando. Respeitosamente, claro. Mas só porque ele era casado.
A Míriam e o Tony esperavam por ela na porta da danceteria com as entradas compradas, senão ela teria que voltar para casa. Um cartaz enorme avisando que a lotação estava esgotada tinha sido colocado na frente da bilheteria.
— Obrigada. — A Mônica pegou o ingresso da mão da amiga e juntou com sua identidade para mostrar ao porteiro. — Cadê todo mundo?
— Lá dentro.
A Mônica agarrou a mão da Míriam para não se perder na multidão. Sua pele se arrepiou com a energia da música alta, as luzes coloridas, o calor dos corpos a sua volta, todo mundo ali com o mesmo objetivo, se divertir dançando e paquerando. Duas coisas que ela pretendia levar ao extremo.
Quando eles finalmente encontraram os amigos, o Tony fez sinal para ela e a Míriam se aproximarem.
— VOCÊS QUEREM BEBER ALGUMA COISA?
— EU QUERO UMA BATIDA — a Míriam gritou de volta.
— PODE SER. — A Mônica entregou o dinheiro para o Tony, que corajoso, ou com sede demais, foi desbravar a selvageria em volta do bar.
Ela começou a se balançar na rodinha que eles estavam tentando manter aberta na pista de danças. Na terceira música, a Mônica já tinha achado alguns pretendentes interessantes. O problema era que a música alta não fazia da danceteria o melhor lugar para se bater papo e não era legal usar a aparência física como único fator de escolha.
Situações extremas merecem decisões extraordinárias.
Ela endireitou os ombros e levantou a cabeça. Escrúpulos não iam ajudar a provar para si mesma que toda aquela incessante obsessão pelo Eduardo poderia ser resolvida mudando o foco da sua atenção.
— Obrigada. — Ela tomou um gole da bebida que o Tony lhe entregou.
Álcool e irresponsabilidade. Não tinha como seu plano dar errado.
Tudo pareceu se resolver quando uma das suas amigas se aproximou de mãos dadas com um rapaz.
— Ei, Mônica. Esse é o meu primo, Ricardo. Ele tá super a fim de te conhecer.
— Oi, Ricardo. — A Mônica ficou na ponta dos pés e deu dois beijinhos nele. O gatinho loiro dos olhos verdes ou azuis - impossível dizer com as luzes coloridas piscando - tinha sido considerado e descartado porque ela achou que ele era namorado de uma das meninas. Mas, não. Ele estava super a fim de conhecê-la! E o melhor de tudo? Ele não era nem muito mais novo, nem muito mais velho.
— O PRAZER É MEU.
Os dois abandonaram a rodinha e começaram a dançar juntos. A distância entre eles foi diminuindo com o passar das músicas até estarem colados um no outro.
— Vem comigo? — A voz grave fez cosquinha no seu ouvido. Ele entrelaçou os dedos nos seus, e sem esperar pela resposta, a tirou da pista.
Ele queria um lugar privativo, era óbvio. Era um pouco mais rápido do que ela estava acostumada, e num outro dia a Mônica teria se negado a acompanhá-lo.
Hoje, não.
A Mônica largou seu copo vazio numa mesa qualquer e o seguiu por um lance de escada que dava num mezanino contornando a danceteria, e depois de atravessarem uma porta alta e larga, saíram num terraço de frente para o mar. O ventinho refrescou seu corpo suado no relativo silêncio e isolamento aproveitados por vários outros casaizinhos. O Ricardo se encostou na proteção de madeira, com uma perna esticada e a outra apoiada atrás dele e puxou a Mônica para perto.
— Eu preciso te confessar uma coisa. — Ele passou os braços em volta da sua cintura. — Eu sabia que você vinha aqui hoje, e eu vim por sua causa.
— É mesmo?
— Eu estava na festa de amigo oculto da sua turma na casa da Vanessa, no ano passado. Quando eu fui pedir a minha prima pra te apresentar pra mim, você tinha vazado.
A Mônica estava com pressa naquele dia. Assim que a troca de presentes acabou, ela se mandou para uma outra festa. Se ela tivesse conhecido e ficado com o Ricardo naquele dia, talvez eles pudessem ter começado a namorar e ela não teria conhecido–
Não! Não era hora de pensar nele.
— A gente tá aqui, agora. — A Mônica passou a ponta dos dedos pelos cabelos loiros macios e sem cachinhos.
— E eu não sou de perder tempo, gatinha. — Ele abaixou a cabeça e foi direto ao ponto.
A Mônica se entregou aquele beijo afoita e até mesmo desesperada pela necessidade de que fosse bom. E foi. O Ricardo beijava com segurança e prática, e ela o abraçou com entusiasmo, precisando sentir mais, precisando que esse momento fosse um divisor de águas na sua vida, apagando tudo o que tinha acontecido antes.
Um alarme soou na sua cabeça ao sentir as mãos mornas tocarem sua cintura por dentro da blusa. Ela se obrigou a relaxar. Era ousado, mas não ultrapassava nenhum limite grave. Quando ele começou a deslizá-las para cima, e tocou o elástico do seu sutiã, a Mônica parou tudo. Isso era muito, mas muito mais longe do que ela queria ir com um carinha que ela tinha acabado de conhecer. Uma burrada gigantesca por vida era suficiente.
— A gente podia ir pra um lugar mais calmo — ele sugeriu, os olhos pesados e a voz rouca.
— Eu acho melhor a gente voltar lá pra baixo.
— Por quê? Eu tô com a menina mais bonita daqui, e eu quero mais. — Ele deslizou os dois polegares pela frente do seu sutiã.
— Qualé, cara! — Ela deu um passo para trás e se desvencilhou do idiota.
O Eduardo também disse que ela era a menina mais bonita da festa e nem por isso se comportou como um cachorro no cio, se é que tal aberração existia. E ele nunca desrespeitaria a a Mônica passando por cima da insinuação de que ela queria parar.
Que droga!
Será que ia ser sempre desse jeito? Ela ia comparar todo mundo com o Eduardo? E ele ia ganhar todas as vezes, porque ele era melhor que todo mundo.
Droga! Droga! Mil vezes droga!
A Mônica entrou na danceteria irritada com o imbecil do Ricardo que tinha estragado tudo, e furiosa consigo mesma por achar que um plano estúpido daqueles poderia ter dado certo.
— Ei, espera. — O Ricardo acompanhou os passos rápidos da Mônica com facilidade. — Desculpa. Eu peguei pesado. A gente pode só dançar se é só o que você quer.
— Vai pro inferno! — Ela desceu as escadas correndo. A noite estava estragada e a única coisa que ela queria era ir para casa.
Foi fácil para a Mônica se perder dele na pista de danças lotada. Ela foi direto até onde a Míriam dançava com o Tony.
— Eu tô indo — ela falou no ouvido da amiga.
— O que foi que aconteceu? — A Míriam segurou seu braço.
— Nada. Eu tô com dor de cabeça.
A Mônica acenou um tchau para o resto dos amigos e foi direto para a saída, recusando o oferecimento do porteiro de carimbar sua mão. Ela não tinha a intenção de voltar lá para dentro por motivo nenhum. Meio andando, meio correndo pela calçada, ela limpou as lágrimas para conseguir enxergar. O carro. Ela precisava entrar no carro para chorar em paz.
— Ei, Mônica! Espera! — A voz da Míriam a alcançou quando ela colocava a chave na fechadura. — Você tá chorando? Aquele babaca te machucou? Se você quiser eu mando o Tony ir tirar satisfações com ele.
— Não precisa. — A Mônica passou as mãos pelo rosto. — Aquele cara é um babaca, mas eu já resolvi o assunto.
— Então, o que foi? Você não chora à toa.
— Não é nada. — Bastava uma com a noite estragada.
— Claro que é alguma coisa. — A Míriam sentou no capô e puxou a Mônica para o seu lado. — Eu não vou ficar tranquila enquanto eu não souber que você tá bem.
Por que não? A Mônica precisava desabafar ou ia explodir.
— Sabe a festa da semana passada? Você não reparou, mas eu fiquei conversando com um carinha e ele... Eu não consigo parar de pensar nele.
— E ele não gostou de você? É por isso que ele não tá aqui com a gente?
— Não. Quer dizer, eu acho que ele também gostou de mim, eu não sei. — A Mônica torceu o anel no dedo. Era a primeira vez que seu amuleto lhe falhava. — Mas ele não ia poder vir. Ele ia ser barrado porque ele tem dezesseis anos.
— Entendi. E porque ele é novo, você dispensou ele.
— Eu não dispensei, eu só não encorajei. E eu dei meu telefone pra ele, ele não me ligou.
— Claro que ele não ligou. Ele não deve ter muita experiência e eu imagino que os seus sinais todos confusos devem ter deixado claro como você estava a fim dele — a voz da Míriam pingava ironia. — Mônica, quando é que você vai tomar jeito? Se não é uma coisa, é outra. Você arruma uma maneira de escapulir sempre que o lance fica sério.
A Mônica levou um choque com as palavras da amiga. O sermão era antigo, mas a Míriam precisava ver que essa situação era diferente. Não era o caso de um defeito exagerado ou uma desculpa inventada, a diferença de idade entre ela e o Eduardo era um motivo sólido e justificável.
— Míriam, eu sou cinco anos mais velha que ele. Não cinco dias, nem cinco meses. Cinco anos!
— Se você tivesse quinze anos e ele, dez, eu ia dizer: Eca! Mas ele não é nenhuma criança, e se você se interessou por ele, ele não deve ser nenhum bobão.
— Não, ele não é nenhum bobão, mas ele é diferente... Sem maldade. Eu ia me sentir como se estivesse corrompendo ele.
— Presta atenção. — A Míriam abriu um sorriso. — O meu irmão tem dezessete anos. Esses adolescentes estão com os hormônios fervendo e tudo o que o Marquinhos quer é arrumar uma menina bonita pra brincar de papai e mamãe com ele. Vai por mim.
— E se isso for tudo o que o Eduardo quiser? — Essa possibilidade não tinha passado pela sua cabeça, mas não deixava de ser uma preocupação válida.
— Nem todos os caras são iguais ao Sílvio. — O olhar da Míriam se suavizou. — Você não pode se esconder atrás do que ele te fez pra sempre. A não ser que você esteja planejando ficar pra titia, que no seu caso não vai funcionar porque você é filha única. E você não disse que ele era diferente?
— Ele é. Esse não é o problema. O problema é que todo mundo vai reparar. Todo mundo vai falar. — A paisagem a sua volta ameaçou rodar, e ela se segurou no carro.
— Que se dane todo mundo, Mônica! O que interessa é o que você quer, e o que ele quer. E se o que você quer e o que ele quer for a mesma coisa, ninguém tem nada com isso. — A Míriam pulou do capô e a encarou com as mãos na cintura. — Eu juro que eu não tô te reconhecendo. Pelo jeito esse boyzinho embaralhou sua cabeça. E como sua melhor amiga, eu acabei de decidir que eu vou resolver seu problema. Você tem o telefone dele?
— Não. Eu sei onde ele mora? — O coração da Mônica se encheu de esperança e disparou com a possibilidade de vê-lo novamente, e um sorriso involuntário espichou seus lábios.
— Cara, você tá caidinha. — A Míriam balançou a cabeça com um olhar divertido. — Mas ir na casa, assim do nada, é demais. A gente arruma o número. Eu te ajudo. Você vai ligar e, dependendo da reação dele, marca um encontro. De repente, você até descobre que ele nem é tudo isso que você lembra.
Sem chance. O Eduardo era tudo o que ela lembrava, gentil, inocente, atento, tímido... a lista era longa. E a Míriam estava certa, ele era maduro o suficiente para não ser coagido a fazer nada que não quisesse.
O que não dava era para ficar nesse limbo. Ou ela resolvia essa situação ou passaria o resto da vida se perguntando o que poderia ter acontecido. E se o Eduardo não tivesse telefonado porque não estava a fim, pelo menos ela teria um desfecho e um motivo, que nem a Míriam poderia argumentar que não era válido, para esquecer dele.
— Tudo bem. Eu vou ligar pra ele amanhã.
— E não ficar se sabotando.
— Eu prometo. — Ia ser tudo ou nada. Ia ser tudo.
— Vamos voltar lá pra dentro?
— Não, eu quero ir pra casa.
— Tudo bem, pelo menos você parou de chorar. Amanhã a gente se fala. E pensa bem, experiência como babá, você já tem.
A Mônica abriu a boca sem saber se ria ou xingava.
— Ei, eu falei que eu ia te ajudar, não que eu não ia fazer piadinhas. — A Míriam caiu na gargalhada, e a Mônica a acompanhou simplesmente porque estava feliz demais para não rir.
— Idiota! — a Mônica gritou para as costas da amiga, que levantou a mão por cima do ombro com um tchauzinho.
Ela entrou no carro com outro espírito, flutuando leve.
Quanto mais cedo ela chegasse em casa e dormisse, melhor.
Assim amanhã chegava mais rápido.
E amanhã era dia de ver o Eduardo.
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O Circo Voador é um espaço cultural localizado no bairro da Lapa , na cidade do Rio de Janeiro. Inaugurado em janeiro de 1982, esse templo do rock brasileiro nos anos 80 teve seu primeiro endereço na praia do Arpoador e foi a grande alavanca para muitos grupos, como Legião Urbana, Blitz, Barão Vermelho e Capital Inicial, entre outros. Essa primeira montagem acabou durando três meses, dois a mais que os planos iniciais, e só terminou porque a fiscalização desmontou e retirou a estrutura da praia. Em outubro de 1982, foi levantado novamente em frente aos Arcos da Lapa onde funcionou até 1996 quando foi cassado pelo então prefeito César Maia. Em ação popular, teve o seu direito reconquistado na Justiça para retornar às atividades. A Prefeitura do Rio de Janeiro - que havia demolido o espaço - teve que reconstruí-lo por determinação judicial. Em 2004 foi devolvido aos produtores e funcionários que lá estavam em 1996, sendo atualmente administrado pela "Associação Circo Voador" de forma independente, com recursos próprios. - Fonte Wikipédia
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