Capítulo 18
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mas ainda sei me virar
- Lanterna dos Afogados - Paralamas do Sucesso
A Mônica se virou para a Míriam, pronta para dar um puxão de orelhas na amiga. Ela podia ter esperado, pelo menos, cinco minutos antes de começar a implicar com o Eduardo. E apesar do que disse antes, a Mônica estava queimando de vontade de saber, chupar o quê?
Mas não seria naquele momento que ela iria matar sua curiosidade, porque a última pessoa que a Mônica queria encontrar interrompeu a conversa.
— Olha só se não é a gata mais gata do curso de medicina?
A paisagem a sua volta ameaçou rodar, e a Mônica segurou na grade ao seu lado. Em outros tempos, o surfista com o sotaque carioca carregado tinha feito as borboletas dançarem dentro da sua barriga. Agora, seu estômago se embrulhava de repulsa com a simples visão do rapaz alto de cabelos loiros compridos e olhos verdes se aproximando com passos seguros.
— Que cheiro podre! — A Míriam franziu o nariz, agarrando sua mão. — Vamos sair daqui?
— Tem certeza que não é o seu perfume? — O rapaz desprezou a Míriam com um sorrisinho insolente e se plantou na frente da Mônica, impedindo-a de andar. — Vem ver o show com a gente, vem? — ele apontou para um grupinho de pessoas esperando por ele mais adiante. A Mônica reconheceu alguns rostos dos corredores da universidade, mas eles eram amigos do idiota e, mesmo se elas estivessem sozinhas, não iriam se misturar com aquela gente.
— Eu não ando em má companhia.
— Se fazendo de difícil, Mônica? Esse não é o seu estilo. — Ele se inclinou na direção dela, chegando mais perto que o apropriado. — Eu tô sozinho hoje e eu vim preparado.
Ele tirou um pacotinho quadrado do bolso. A Mônica agarrou a camisinha e jogou por cima do ombro, na escuridão de pedras e mata atrás dela.
— Você só pode ter bebido, fumado ou cheirado pra me fazer uma proposta dessas.
— Eu tenho outra, não tem problema. — Ele deu um sorriso de lado.
A Mônica não ia fazer escândalo. O bando de urubus assistindo tudo ia garantir que a fofoca se espalhasse pela faculdade. As águas tinham demorado tanto a se acalmarem e Mônica faria qualquer coisa para não causar nem mesmo a menor das marolas. O idiota na sua frente não desejava a sua companhia, o que ele queria era vê-la caindo na provocação, fazendo velhos assuntos voltarem à tona, e esse erro ela não ia cometer. Respirando fundo, a Mônica deu um passo para o lado, tentando se afastar, mas ele agarrou seu braço para impedi-la.
— Solta ela, seu babaca! — A Míriam tentou se enfiar entre os dois. O Sílvio colocou a mão no ombro dela e a empurrou. Ela começou a gritar. — Segurança! Segurança! Não tem nenhum segurança nessa merda desse lugar?
— Me larga, Sílvio! — A Mônica puxou o braço, e o aperto ficou mais forte.
— Não foi assim da última vez, lembra? Você me pediu mais. Você gemeu meu nome tão gostoso...
Ele a imprensou contra a grade, o corpo colado ao seu, a ereção indesejada contra a sua barriga. A Mônica se debateu e tentou empurrá-lo, mas ele segurou seu queixo e se aproximou.
Ele ia beijá-la à força!
A bile subiu na sua garganta. Bem feito se ela vomitasse na boca do imbecil, mas alguém veio em seu socorro.
— Você não tá vendo que ela não tá a fim? — A voz do Eduardo foi o som mais bonito que ela escutou na vida.
Ele colocou a mão no ombro do Sílvio, que era da mesma altura que ele, mas muito mais forte, o que não parecia estar intimidando seu salvador.
— Volta pra junto dos seus amiguinhos, vai, moleque. — O Sílvio fez um movimento com a cabeça, sem a soltar. — Isso aqui é papo de adulto.
— Adulto que é homem de verdade não agarra mulher contra a vontade. — O Eduardo encarava o Sílvio com uma raiva que surpreendeu a Mônica. O contrário do jeito sempre calmo e sensato dele. — Solta ela!
— E quem vai me obrigar? Você?
— Eu também, se precisar. — O Tony se juntou ao Eduardo. — Deixa de babaquice, Sílvio. Dá no pé.
Por cima do ombro do Sílvio, a Mônica viu os amigos dele se aproximando, prontos para a briga. Eles eram uns dez e o negócio ia ficar feio.
— O que tá acontecendo? — Uma voz grossa interrompeu tudo.
A Míriam vinha puxando a manga do terno de um homem três vezes maior que ela, seguidos por outros dois do mesmo estilo.
— Esse babaca! — A Míriam enfiou o dedo na cara do Sílvio, que finalmente soltou a Mônica ao ver os três armários os cercando. — Ele tá agarrando a minha amiga!
— Desculpa. — O covarde deu um passo para trás, com as palmas das mãos levantadas. — Foi um engano.
— Circulando! — o segurança gritou. — Se não vai todo mundo embora!
— Vem cá. — O Eduardo a puxou de lado para afastá-la da confusão que deve ter se dispersado, a julgar pelo súbito silêncio em volta. Ele a abraçou, e os braços dele eram tão seguros e cuidadosos que ela se guardou na fortaleza que eles ofereciam, e deixou o resto do mundo do lado de fora. — Ele te machucou?
— Não. — A Mônica enterrou seu rosto no peito dele, o corpo tremendo e as lágrimas caindo sem controle.
A resposta não foi totalmente honesta, mas os hematomas que o Sílvio deixou nos seus braços nessa noite, não eram nada perto do sofrimento que ele tinha lhe causado no passado. Uma carinha de anjo escondendo o canalha mais covarde e mentiroso que ela teve o desprazer de conhecer, e o responsável pelo pior momento da sua vida.
Na faculdade, mesmo estudando em prédios diferentes, a Mônica sempre andava com a guarda alta e cercada com uma fortaleza de amigos, e ele normalmente a deixava em paz. Ali, ele a pegou desprevenida, e trouxe uma enxurrada de lembranças e sentimentos negativos, quebrando a proteção que ela cuidava para nunca cair.
O Eduardo tirou a jaqueta e ajudou a Mônica a vesti-la. Ela quase disse que seus tremores não eram de frio, mas o cheirinho gostoso de sabonete misturado com perfume que a envolveu num manto de familiaridade, junto das batidas fortes e rápidas do coração encostado no seu ouvido, começaram a afastar a escuridão, e aos poucos, ela conseguiu parar de chorar.
— Desculpa. — A Míriam afastou os cabelos do seu rosto com suavidade. — O segurança estava lá do outro lado e eu demorei...
— Quer dizer que aquela história de faixa preta era mentira? — o Eduardo ganhou uma careta da Míriam.
— Na segunda-feira mesmo eu entro na aula de karatê. Da próxima vez que aquele filho da puta tentar chegar perto de você eu acabo com ele — a Míriam brincou e passou os dedos por baixo dos seus olhos, na certa para limpar a maquiagem borrada.
Próxima vez. O estômago da Mônica se retorceu e o rosto da amiga perdeu um pouco o foco. Não podia haver uma próxima vez. Uma pessoa que se quebra muitas vezes, acaba não conseguindo se reconstruir mais. Ela se agarrou na camisa do Eduardo, uma nova leva de lágrimas encharcando o tecido.
— Não fica assim — ele sussurrou no seu ouvido. — Você quer ir embora?
— Você não se importa? Eu sei que você queria ver o show...
Mais uma coisa que o toque venenoso do Sílvio tinha apodrecido. Logo na primeira noite em que o Eduardo estava livre da pressão do relógio, acontecia isso, acabando com o clima para eles ficarem.
— Dane-se o show. — Ele beijou sua cabeça. — O que me importa é você ficar bem.
A Míriam e o Tony também decidiram ir embora e os quatro deixaram o Morro da Urca para trás num bondinho vazio e silencioso.
— Você tá legal pra dirigir? — A Míriam a puxou de lado, estudando seu rosto com cuidado. — Se você quiser, o Tony leva o Eduardo e a gente vai lá pra casa.
— Eu tô bem, e eu queria ficar com o Eduardo, se você não se importa.
— Claro que eu não me importo. — A Míriam lhe deu um abraço rápido. — O seu boyzinho ganhou nota dez. Tem razão pra você estar tão apaixonada.
Um sorriso inesperado fugiu pelos lábios da Mônica. Só a Míriam para saber o que falar para quebrar a tensão numa hora daquelas. E era verdade, a Mônica estava apaixonada e não ia mais negar, nem para ela mesma, nem para mais ninguém. Sua mão se fechou em volta do pingente do colar que o Eduardo tinha lhe dado, rodocrosita, também conhecida como a pedra do amor. Uma simples consulta a um livro de cristais na sua estante revelou o que o Eduardo omitiu. Fosse porque ele não sabia, ou porque ele não quis, não importava. De qualquer maneira, a Mônica estava ali ou para ensiná-lo ou para ajudá-lo a superar os receios dele.
Depois de se despedirem, eles entraram no carro e o Eduardo apoiou o braço no banco, por trás dela.
— Se você quiser ir pra casa, por mim tudo bem — ele ofereceu, acariciando seu pescoço suavemente com as pontas dos dedos.
— Tá cedo ainda. Eu queria só dirigir.
A Mônica foi até Copacabana e seguiu pela orla, sem destino certo. A curiosidade do Eduardo era quase palpável na calma do interior do carro com o rádio tocando baixinho, mas ele se manteve calado, acariciando seus cabelos devagar, da maneira mais relaxada possível. A vontade da Mônica era continuar indo até São Conrado, Barra da Tijuca, Recreio, até o fim do mundo, ela e o Eduardo. Ao ver o mirante da Av. Niemeyer vazio, seguiu um impulso e parou. Depois de tê-la defendido, sem nem ao menos saber do quê, ele merecia uma explicação. Ela desceu, ele fez o mesmo, e eles se encontraram na frente do carro.
— Você não tá com frio? — Ele a sentou no capô, e se ajeitou entre as suas pernas.
O tempo parecia querer virar, e um ventinho fresco soprava do mar, mas ali estava silêncio e tranquilo e os dois estavam sozinhos.
— Se você chama isso de frio, devia visitar a Alemanha no inverno. — Ela apertou a jaqueta dele contra o corpo e o puxou para mais perto. — Eduardo, você é virgem?
Se a Mônica não tivesse sentido o leve sobressalto do corpo junto ao seu, ela teria achado que ele tinha virado uma estátua.
— Eu? — Ele limpou a garganta. — Não! Claro que não! Eu já... um monte de vezes.
— Não tem problema se você for. — A Mônica deslizou a mão de leve pela testa dele, franzida. — Acontece com todo mundo.
Ele deu uma risada e relaxou.
— Eu sou. Eu nunca... transei com ninguém.
— Eu não sou. — A confissão fez as mãos pousadas na sua cintura, se apertarem um pouco mais. — Eu transei com dois caras até hoje. O primeiro foi um namorado que eu tive em Paris. Eu era da sua idade na minha primeira vez. O namoro terminou quando eu vim pro Brasil, mas enquanto a gente ficou junto, ele foi tudo o que um namorado deve ser — ela fez uma pausa e respirou fundo. — O segundo foi o idiota que a gente acabou de encontrar.
— E pelo jeito que você ficou, as coisas não terminaram bem entre vocês.
— Não. Nada do que aconteceu com ele foi bom. — O peito dela se apertou e expulsou uma risada seca e amarga. — Eu conheci o Sílvio há pouco mais de um ano, ele faz engenharia na mesma universidade que eu. Eu estava lanchando, e ele pediu pra sentar comigo. A gente conversou, paquerou, eu fui embora e ficou por aquilo mesmo. Às vezes, a gente se encontrava pelos corredores, ele era simpático e engraçado, mas nunca rolou nada de mais. Até que teve uma festa.
As imagens daquela noite romperam pelo cérebro da Mônica. Ela não tinha bebido, os únicos culpados pela sua burrice foram um longo período de abstinência sexual e sua própria impulsividade.
— Vocês ficaram? — o Eduardo perguntou sem um pingo de julgamento ou crítica. O único sentimento na voz baixa e grave, era preocupação.
— A gente ficou. — Ela deitou a cabeça no ombro dele. Confessar seus pecados com o rosto escondido era mais fácil. — E por ficar, eu quero dizer transar num banheiro de uma casa que até hoje eu não sei de quem é. Eu nunca tinha sido leviana daquele jeito. Eu me lembro de pensar que eu não era criança e por que não, se eu estava a fim? Eu não tenho desculpas, Eduardo, eu deixei o tesão falar mais alto, e fiz o que eu não devia ter feito.
— O seu único problema foi ter escolhido um babaca, mas não tem nada de errado com o que você fez. — Ele segurou seu rosto com as duas mãos, a obrigando a olhar para ele. — Uma das coisas que eu mais admiro em você, é como você não tem vergonha de assumir o que você gosta e o que você quer, sem culpa, sem preocupação com os outros. Eu acho bacana uma experiência ruim não ter tirado isso de você.
O coração da Mônica se encheu dentro do peito e um calor suave tomou conta do seu corpo por dentro.
Só que a história, piorava e muito. E contar para o Eduardo seu maior segredo, poderia fazê-lo mudar de ideia em relação a ela, mas ele já era uma parte tão importante da sua vida que era impensável não saber tudo sobre ele, e que ele também não soubesse tudo sobre ela. O bom e o ruim. As partes felizes e as tristes. Tudo o que fazia deles quem eles eram.
— Ele não me procurou depois disso. — Ela foi acompanhando as linhas do desenho da camiseta que ele estava usando. Nada de desenho animado, só uma guitarra colorida. — De novo, eu pensei 'sem problema, eu sou madura o suficiente pra ter tido uma transa casual, bola pra frente', e de verdade, a única coisa ferida foi o meu orgulho, o que não foi nem um pouco difícil de recuperar. E ele nunca mais teria ocupado um segundo dos meus pensamentos, se no mês seguinte eu não tivesse descoberto que eu estava grávida.
— Mônica!
A maneira chocada e doída que o Eduardo disse o seu nome encheu seus olhos de lágrimas novamente. Aquele tinha sido o segundo pior dia da sua vida. Um papelzinho de nada com o resultado de um exame que virou seu mundo de cabeça para baixo.
— Eu nunca me senti tão perdida. — Ela tentou secar os olhos, só para uma nova leva de lágrimas ameaçar correr pelo seu rosto. Ela desistiu e as deixou cair. — Você sabe que eu não me dou bem com os meus pais, então ali eu não ia encontrar ajuda. Aliás, se o meu pai descobrisse, ele me colocava para fora de casa sem pensar duas vezes. Eu contei pra Míriam que me convenceu a procurar o Sílvio, afinal era responsabilidade dele também, certo?
— Deixa eu adivinhar.— A voz do Eduardo se encheu de ódio, mas não dirigido a ela. — Ele disse que não era dele.
— Ele me perguntou como eu podia saber que o filho era dele se eu era tão fácil, transando de primeira?
— Filho da puta!
— Foi horrível. — A Mônica não tentou aplacar a ira do Eduardo. Como, se ela se sentia da mesma maneira? — Eu não sei se você sabe como funciona o exame de sangue pra provar paternidade? Ou ele exclui com 100% de certeza que o homem não é o pai, ou ele dá um resultado dúbio, de que ele pode ou não ser o pai. O Sílvio disse que mesmo se esse fosse o resultado, ninguém podia obrigar ele a assumir um filho que podia ou não ser dele e lavou as mãos.
Além de espalhar para todo mundo que ela abria as pernas para qualquer um, causando uma onda de fofocas, piadinhas gritadas pelas suas costas e vários caras a parando pelos corredores da faculdade com propostas sórdidas. Ela só não desistiu do curso porque uma pessoa baixa como o Sílvio não podia levar a melhor. Com o tempo as coisas se acalmaram, outras fofocas tomaram o lugar da sua e ela já conseguia fingir que nada tinha acontecido.
— E o que você fez? — o Eduardo perguntou com a voz triste, porque ele devia desconfiar. A não ser que ele pensasse que a Mônica tinha escondido um filho esse tempo todo.
— Eu fiz um aborto. — Sua voz saiu num sussurro e o ar deixou os pulmões dele, num longo suspiro. — Não acha que essa não foi uma decisão pensada e repensada mil vezes. O dia em que eu tirei meu filho foi o pior dia da minha vida, e um peso que eu vou carregar nos meus ombros pra sempre. Eu penso nele todo dia. Todo dia. Eu cheguei a imaginar o que você teria me dito naquela festa, se eu tivesse te contado que eu tinha um filho. — Ela o abraçou, se agarrou a ele com força, porque tudo podia estar prestes a desmoronar. Todas as atitudes do Eduardo, até aquele momento, indicavam que ele era uma pessoa compreensiva e de mente aberta, mas nunca se podia prever com certeza a reação de um ser humano. — Eu sei que saber disso vai fazer você me olhar diferente. Por favor, não me julga com muita severidade. Você é homem, você não pode saber a agonia que dá, encarar uma barra pesada dessas sabendo que você pode se ver na rua com uma criança no colo, sem casa, sem dinheiro, sem poder contar com a ajuda de ninguém.
A Míriam foi seu único apoio e ofereceu a casa dela, mas ela morava com os pais. Eles a suportariam por alguns dias, talvez algumas semanas, não mais que isso. Na época, a Mônica ainda estava longe de ter acesso ao dinheiro que o avô tinha deixado. Ela ia precisar largar a faculdade e arrumar um emprego, mas sem experiência, ia ganhar uma mixaria que mal daria para bancar um aluguel quanto mais alguém para tomar conta do bebê enquanto ela ia trabalhar. Para todo o lado em que ela se virava tentando achar uma saída, ela dava de cara com um obstáculo maior que o outro, até que o desespero a obrigou a tomar a única decisão que ela daria tudo para não precisar ter tomado.
E que agora podia também acabar com a única coisa boa na sua vida.
Ela fechou os olhos e esperou seu veredito.
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