Capítulo 10
E quando um certo alguém
Desperta o sentimento
É melhor não resistir
E se entregar
- Um Certo Alguém - Lulu Santos
Um gramado verdinho cheio de árvores e flores de todas as cores, cortado por um riacho. A água transparente dava a impressão de ser marrom por causa do fundo de terra e corria calmamente por baixo de uma pequena ponte em forma de arco. Os olhos da Mônica absorveram com avidez os detalhes do lugar em que o Eduardo celebrava seus piqueniques de aniversário.
Ela era leão, signo de fogo, e contraditoriamente sempre foi atraída por rios, cachoeiras, lagos e mares. Até as águas de uma piscina lhe inspiravam uma serenidade incrível. Eles subiram na ponte, ainda de mãos dadas.
— Quando você tá chateado, é só ficar olhando água corrente que ela leva seus problemas embora, sabia? — A Mônica se debruçou no parapeito, hipnotizada pelo burburinho relaxante, que junto com o cantar dos passarinhos e o farfalhar suave do vento nas folhas das árvores criavam a ilusão de estarem sozinhos no mundo.
— Você tá com problemas? — O Eduardo deu um puxão de leve no seu braço.
— E quem não tem problemas? — Ela deu um sorriso para quebrar a seriedade da resposta, porque seu maior problema naquele momento era disfarçar o suspense com a falta de reação do Eduardo.
Depois de ter escutado impassivelmente sua confissão, ele recomeçou a andar em silêncio. Se ele não estivesse segurando sua mão como se não quisesse largá-la nunca mais, ela poderia pensar que ele não estava interessado. Mas ainda que seu peito estivesse apertado de vontade em insistir na conversa, era melhor não forçar a barra. Ela precisou de tempo para ultrapassar seus próprios preconceitos e se abrir à possibilidade de um relacionamento com ele, e ele tinha o direito de chegar a essa mesma posição por si mesmo. Todo cuidado era pouco para não pressioná-lo a dar uma passo para o qual ele ainda não estava preparado.
Clareza, honestidade e muita paciência, era a tríade que ela seguiria.
— Então você fala alemão. — O Eduardo a guiou para fora da ponte, até um banco de pedra perto do riacho. Mais um pouquinho e a Mônica poderia tirar o tênis e mergulhar os pés na água. — Você também morou na Alemanha?
— Morei.
— Bem que eu achei que você tinha um jeitinho de cigana — ele brincou e estendeu a palma da mão para ela. — O que o meu futuro me reserva?
— Hum, deixa eu ver... Fama, dinheiro, sucesso e um monte de mulheres bonitas.
— Nada do que eu quero. — Ele suspirou, e a Mônica não conseguiu saber se era brincadeira ou não. — Agora me conta, como é que você foi parar na Europa?
— O meu pai trabalhava no Itamaraty. Quando a capital foi transferida do Rio para Brasília, ele foi também. Eu nasci e morei lá até os cinco anos. — Um calor agradável se espalhou pelo seu peito. Suas melhores lembranças eram daquela época, quando ela ainda era pequena demais para entender a indiferença dos pais. — O meu pai foi nomeado conselheiro na Embaixada do Brasil em Portugal, e nós mudamos pra Lisboa. Depois, Espanha, Alemanha Ocidental e França. Há três anos o meu pai se aposentou e voilà, aqui estou eu.
— Caramba! Quer dizer, deve ter sido o máximo morar nesses países todos, mas não deve ter sido fácil ficar pulando de um lado pro outro. Eu conheço o Renato desde moleque, eu não consigo me imaginar não tendo um amigo de infância, tipo que passou por tudo comigo.
A maioria das pessoas que escutava a história da Mônica fazia mil perguntas sobre todos os lugares maravilhosos que ela conheceu, dizendo como ela tinha sorte. O Eduardo foi o primeiro a tocar num dos seus pontos mais sensíveis, e um sobre o qual ela evitava falar.
— Não ter amigos de infância foi o preço que eu paguei. Se eu reclamar fica parecendo que eu sou mal-agradecida quando, na verdade, eu tive uma oportunidade incrível.
— O fato de ter sido uma oportunidade incrível não quer dizer que foi perfeita. Claro que você tem o direito de reclamar da parte que foi ruim. Repete comigo, eu amei morar na Europa, mas não ter amigos de infância é uma merda.
Ela abriu e fechou a boca como um peixe fora d'água. Ele estava falando sério e com cara de que não ia desistir. Depois de alguns segundos de um duelo de olhares, ela acabou cedendo.
— Eu amei morar na Europa, mas não ter amigos de infância é uma merda.
— Mais alto. EU AMEI MORAR NA EUROPA, MAS NÃO TER AMIGOS DE INFÂNCIA É UMA MERDA!
A Mônica encheu o pulmão e berrou o mais alto que pôde.
— EU AMEI MORAR NA EUROPA, MAS NÃO TER AMIGOS DE INFÂNCIA É UMA MERDA!
— EU ESCUTEI DA PRIMEIRA VEZ! — O grito veio das árvores atrás deles, e o Eduardo e a Mônica desabaram um contra o outro, às gargalhadas.
— Ai, meu Deus, tomara que nenhuma criança tenha escutado. — Ela passou as mãos pelos olhos cheios de lágrimas, com a barriga doendo de tanto rir. Há muito tempo ela não ria tanto. E podia ser idiotice, mas ela estava um pouco mais leve, como se parte do peso que ela carregava tivesse voado junto com o grito. — E você? É daqui mesmo?
— A minha vida é bem menos emocionante que a sua — ele confirmou, em meio a tentativas de recuperar o fôlego. — Eu nasci no Méier, e quando a minha avó morreu, a gente veio morar com o meu avô. Eu tenho dois irmãos e uma irmã, menores. Que mais? Eu tô na segunda série do científico e ainda não tenho a menor ideia do que eu quero fazer na faculdade. Eu faço cursinho de inglês, só não me pede pra falar nada que eu sou péssimo. Nas férias, eu ajudo meu pai na loja de sapatos dele. Eu gosto de jogar bola com os meus amigos, que era o que eu estava fazendo hoje de manhã, quando você ligou. Eu e o meu avô gostamos de jogar futebol de botão. E eu vou admitir pra você que eu gosto de novela, mas se você repetir pra alguém, eu nego até a morte.
— Eu nunca consegui pegar o hábito de assistir novela — a Mônica confessou. Ela não via a graça de dedicar tanto tempo a uma história, para ela acabar de repente e ser substituída por outra. Era seu desapego se ramificando para além dos domínios dos relacionamentos pessoais. O Eduardo recebeu sua revelação como se ela tivesse acabado de admitir que era comunista e comia criancinhas no café da manhã. — Mas eu já assisti alguns capítulos da novela das oito. Parece engraçada. Tô certa ou tô errada? — ela balançou o braço cheio de pulseiras, tentando cair nas boas graças dele novamente.
— Tá certa. — A risada satisfeita indicou que ela estava perdoada.
— Quer dizer que você mora com os seus pais, seu avô e seus irmãos? — Ela deu vazão à curiosidade. O conceito de dividir uma casa com tantas pessoas a fascinava.
— Todo mundo num apertamento de três quartos. Eu sei que parece horrível e, às vezes, é, como quando você tem que entrar na fila pra usar o único banheiro da casa, mas eu não consigo imaginar uma vida diferente. — A voz do Eduardo assumiu um tom carinhoso ao falar na família, e a Mônica desviou o olhar. Sua casa era enorme, com mais banheiros que moradores, na maioria dos dias ela via seus pais de passagem e eles mal trocavam duas palavras. Esse era o seu normal e doía ser lembrada que não, que normal era o que o Eduardo tinha.
— Eu não acho que deve ser horrível. — Sua voz saiu num sussurro. — Já que você me confessou um segredo super secreto, eu também vou te contar um. No sábado passado, quando você disse que ia se ferrar se não chegasse em casa na hora que a sua mãe mandou, eu quis estar no seu lugar. Engraçado, né? Ter inveja de ficar de castigo.
— Você não se dá bem com os seus pais? — Ele voltou a segurar sua mão, que ele tinha soltado enquanto gesticulava ao contar suas histórias, e fez pequenos círculos reconfortantes com o polegar.
— Eles eram mais velhos quando eu nasci. Eu acho que eles estavam acomodados na vida de casados, só os dois, sem filhos e não conseguiram abrir um lugarzinho pra mim.
A Mônica se arrependeu pela tangente na conversa que estragou o clima descontraído e leve da tarde, mas ela se sentia tão bem com ele que sua amargura escapuliu com naturalidade. Antes que ela pudesse pensar em como consertar a situação, o Eduardo se levantou.
— Bom, agora que eu te mostrei meu lugar preferido, eu vou te mostrar o que eu mais gosto de fazer aqui.
Ela o seguiu, agradecida pela mudança de assunto, enquanto sua mão era novamente aninhada pela dele. A trilha de pedras serpenteando árvores de copas altas e cheias, que impediam a luz do sol passar, os levou a um gramado imenso, cheio de crianças correndo e brincando. Um vendedor ambulante, para desespero dos pais, tinha espalhado uma porção de brinquedos pela grama.
— Escolhe uma. — O Eduardo tirou a carteira do bolso e apontou para as pipas. Elas eram todas iguais, um losango, dividido em quatro triângulos de duas cores alternadas. A Mônica pegou uma azul e branca, porque ela ia ficar bonita no céu cheios de nuvens.
— Você me ajuda a colocar ela no ar? — ele perguntou quando eles chegaram no meio do gramado, bem longe das árvores.
— O que é que eu tenho que fazer? — Ela deu dois pulinhos. Ela adorava novas experiências. E a companhia do Eduardo deixava até uma simples pipa mais emocionante.
— Segura aqui. — Ele lhe entregou a pipa e foi chegando para trás, desenrolando a linha de uma latinha de massa de tomate. — Agora solta!
No início, parecia que não ia dar certo, a pipa cambaleou e ameaçou despencar no chão. O Eduardo soltou mais a linha, deu alguns puxões de um lado para o outro, e de repente, ela subiu e subiu e subiu. Ele fez sinal para a Mônica se aproximar.
— Toma.
— Não. — Ela deu um passo para trás, admirando a liberdade da pipa voando tranquila lá no alto. — Eu não sei o que fazer.
— O pior que pode acontecer é a pipa cair. Daí a gente empina ela de novo.
— Tudo bem. — Não era como se ela precisasse de muito convencimento, no fundo, ela estava doida para tentar. — O que é que eu faço?
— Nada, deixa ela voar. — Ele a mostrou como segurar a linha. — Você tem que sentir o vento nas suas costas, se você notar que ele tá mudando, você também muda de posição.
Parecia bobeira, mas era incrivelmente relaxante. Ela só precisava se concentrar no vento e admirar sua pipa tão longe e, ao mesmo, tempo conectada e sensível a qualquer movimento seu.
— Tá vendo aquela outra pipa? — A voz profunda, atrás dela, bem perto do seu ouvido, a fez dar um pulo. A Mônica olhou para onde o Eduardo apontava por cima do seu ombro. — Ela tá tentando chegar perto pra te cortar.
— Me cortar? — A Mônica apertou a lata com força contra o peito.
— Cerol é uma pasta de vidro pra passar na linha e deixar ela bem afiada e cortar as outras pipas, e a nossa linha não tem nenhum.
— Cortar as outras pipas? A troco de quê?
— Pra provar que você pode mais, dar emoção, sei lá.
— Você disse que o pior que podia acontecer, era a pipa cair.
— Não precisa ficar nervosa, a gente só tem que fugir.
— Como? — Ela deu alguns passos para o lado, vendo a outra pipa se aproximar cada vez mais rápido. — Me ajuda!
A Mônica estava pronta para devolver a pipa para o Eduardo quando o sentiu o peito rijo se colando a suas costas e a mão grande escondendo a sua, por cima da linha. A pipa, o vento e tudo em volta deles sumiu, o mundo passou a ser o calor que irradiava do corpo colado ao seu. Foi quase uma dança, ele tentando movimentar a pipa sem perder o vento, com ela aconchegada entre os braços. Eles se encaixavam perfeitamente bem, e a Mônica não resistiu a virar seu ouvido contra o bater acelerado do coração no peito atrás dela. Quase tão descontrolado quanto o seu.
Quando a linha deles se partiu e a pipa se soltou, a força da gravidade voltou a prender a Mônica no chão. Ela daria qualquer coisa para continuar ali, mas o Eduardo não tinha mais motivos para ficar perto dela, e se afastou. Ela passou as mãos pelos braços, sentindo frio na tarde quente.
— Da próxima vez eu trago a minha linha de casa. Eu quero ver quem vai cortar a nossa pipa — o que era para ser uma ameaça, soou como uma promessa.
— Da próxima vez? — Ela se virou de frente para ele.
— Por quê? Você não gostou? — ele perguntou, enrolando o resto de linha solta, sem olhar para ela.
— Eu adorei. E marca bem a cara dele. — A Mônica seguiu a linha da pipa que tinha detonado a deles até chegar a um menininho de uns dez anos. — Eu faço questão de cortar a pipa daquele moleque.
— Pivete covarde — o Eduardo xingou entredentes.
— Baixinho sem vergonha — a Mônica concordou.
— Pentelho ladrão. — O Eduardo deu um meio sorriso.
Antes que a Mônica achasse mais uma ofensa, uma sirene alta ecoou pelo parque.
— Hora de fechar. — Ele foi até o vendedor e devolveu a latinha com o resto de linha.
Os dois desceram o caminho em direção ao estacionamento, acompanhados pelas outras pessoas do parque, num silêncio confortável.
— Obrigada, Eduardo. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou o rosto dele quando eles chegaram na moto. Não um desses beijinhos socialmente falsos em que um rosto mal roça no outro, mas um beijo de verdade, seus lábios encostados com firmeza e suavidade na bochecha macia e coberta por uma penugem fininha. — Faz muito tempo que eu não passo uma tarde tão perfeita.
— Você não precisa me agradecer. Eu também gostei muito.
— O que você vai fazer hoje à noite? — Ela soltou o cabelo, correndo o dedo pelos fios.
— Você me pegou desprevenido. — O Eduardo enfiou as mãos nos bolsos como se procurasse por algo. — Eu não tô com a minha agenda. Sorte que eu prestei atenção quando eu desmarquei todos os meus compromissos da tarde pra vir te encontrar, e a resposta é... nada.
— Seu bobo. — A Mônica riu. Ela sempre estava rindo do lado dele, era como se ele se esforçasse para não vê-la séria. — Como eu fiz uma coisa que você gosta, eu queria te levar pra fazer uma das coisas que eu mais gosto.
— Mônica... — Os ombros dele caíram e ele soltou um suspiro. Será que ela entendeu tudo errado? A Mônica prendeu a respiração. — Eu fico muito honrado, mas a gente acabou de se conhecer, eu acho melhor ir devagar e...
— Seu idiota! — Ela voltou a respirar e deu um soco no braço musculoso, de brincadeira. Ou não. — Só por causa disso, eu não vou te dizer o que é. E pode ficar tranquilo, eu te pego depois da novela.
— Que novela? — Ele balançou a cabeça para um casal que passava perto, e apontou para a Mônica com o polegar. — Ela acha que eu gosto de novela.
O casal os olhou como se eles fossem malucos.
— Você tá impossível. — Ela prendeu os lábios para não rir e abriu o cadeado do capacete preso na moto. — Quer carona?
— Eu juro que se a minha bicicleta tivesse alguma chance de não ser roubada até amanhã de manhã, eu subia na sua garupa agora mesmo. — Ele lançou um olhar derretido. Para a moto, não para ela.
— Outro dia, então. E se você se comportar, eu posso pensar em te ensinar a pilotar. O que você acha?
— Eu acho que você precisa parar de ficar cada vez mais perfeita, senão meu coração não aguenta. — Ele retribuiu o beijo da mesma maneira que ela, com os lábios quentes na sua bochecha, e foi o coração da Mônica que não aguentou.
— Até mais tarde. — Ela subiu na moto com as pernas trêmulas.
A Mônica colocou o capacete e deu partida, observando o Eduardo soltar sua bicicleta e acenou antes de sair devagar pelo estacionamento. Assim que atravessou o arco de pedra, o Eduardo passou por ela como um foguete. Até parece que uma bicicleta ia fazê-la comer poeira. Ela acelerou com tudo e o deixou para trás.
Mas só de brincadeira, porque se tinha uma realidade que a Mônica ia fazer de tudo para não se repetir, era não ter o Eduardo do seu lado sempre que possível.
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