09. Purgatório - Parte II
— Você é real?
Que saudades que Ana Beatriz estava daquela voz, daquela entonação e daquele sotaque puxando de maneira tremida a letra R. Que saudades do seu estimado nonno!
Ela, mesmo que já estivesse preparada para aquele reencontro, não conseguia emitir uma só palavra. Somente se ergueu de onde estava sentada, encarou fixamente o homem à sua frente, mesmo que sua vista já estivesse embaçada, e assentiu.
Ele chegou mais perto dela – aqui, ela percebeu o caminhar lento dele por conta do pós-operatório – e esticou o braço, intencionando tocá-la. Contudo, vacilou. Em contrapartida, Beatriz, em um impulso, agarrou a sua mão.
Houve mais uma troca de olhares e, no próximo segundo, os dois já estavam grudados em um terno abraço. Mesmo com o jeito aparentemente frágil, Francesco apertou forte a neta em seus braços. Ela, por sua vez, apenas teve um vislumbre das pessoas que testemunharam aquela linda cena: suas amigas e os pais delas.
Sorrindo, fez um agradecimento não verbal a todos eles por terem ajudado a promover o que já considerava como um dos mais belos momentos de sua vida.
Era verdade que seu Francesco estava mais ranzinza nos últimos anos. Entretanto, nada disso foi captado por Beatriz. Desde o instante em que a viu, o senhorzinho simplesmente agiu com a costumeira simpatia de outrora. Pelo visto, ela não era a única que tinha resetado algo em sua vida com aquele reencontro.
Sem pestanejar, o vovô já saiu quase que a arrastando rumo ao apartamento 21. Nesse ínterim, as amigas de Ana Beatriz viram que aquela pequena grande família precisava de um tempo a sós. Portanto, cada uma se dirigiu às respectivas casas de seus pais.
Apesar de felizes em se reverem, havia um grau de constrangimento entre Beatriz e Francesco. Tinham tanta coisa para falar, mas... por onde começariam?
Uma luz, que poderia nortear a resposta para aquele questionamento, veio com um ruído que se fez audível quando eles mal pisaram na sala de estar. Era o estômago de Beatriz roncando.
— Vejo que alguém está com fome... — Francesco brincou.
A moça apenas deu um sorriso sem graça e já estava querendo desconversar sobre aquele sinal involuntário de seu próprio organismo. Porém, o nonno indagou:
— Você no mangiò nada?
— Eu... eu...
— Aliás, de dove você está vindo?
Ela parou. Poderia ser algo bobo, trivial, revelar o lugar onde estava morando para o próprio parente, mas não era no caso dela. Temia pelo seu avô, pelas amigas e pelos moradores do prédio em geral se Paulo viesse atrás de si e sabe-se lá o que poderia fazer não apenas com ela, como também com os outros. Recordou que isso chegou a ser levantado quando as meninas lhe deram a ideia de ir ao prédio onde moraram, ao que as duas argumentaram que não haveria local mais seguro do que o próprio edifício. Ainda assim, preferiu ser evasiva:
— Vim... de muito longe, nonno...
O senhor a fitou e tentou tirar alguma informação extra da expressão corporal e dos gestos da neta, porém sem sucesso. O momento tenso foi quebrado com mais um ronco vindo do ventre da moça. Houve mais uma brincadeira por parte de Francesco que se seguiu para um convite:
— Ontem, Dorita e io mangiamo lasagna. Sobrou un pouco, você está servida?
Ela olhou para um velho relógio de parede e constatou que já estava quase dando meio-dia.
"— Céus! Como as horas estão passando rápido hoje!" — pensou.
Cogitou em negar, já que... não estava comendo algo do tipo já fazia uma cota. No entanto, o sorriso convidativo de Francesco não deu qualquer chance para ela dizer não. Respondeu:
— Podemos comer uma salada também?
E lá se foi eles lavando alface, picando tomate e pepino e temperando o prato fresco recém feito. Além disso, Beatriz, já mais à vontade com a casa do avô, tomou a liberdade de preparar um pouco de arroz para ambos. Um tempo depois, já estavam sentados à mesa da cozinha, se servindo com tudo o que tinham direito.
— Essa lasanha está divina! — exclamou Ana. Em seu íntimo, perguntava-se por que havia se privado de degustar do que era seu prato favorito.
— Que me perdone Dorita, ma esse seu arroz é mais soltinho que o dela — confessou Francesco com humor.
— Oh! Não diga isso, nonno! — Beatriz riu. — Aprendi com ela a preparar arroz — terminou sentindo algo agridoce em relação ao nome e à lembrança de sua própria mãe.
— Então no dirle a ela que te parlè isso.
— Combinado. Será nosso segredo.
Nesse momento, uma das mãos dela que jazia sobre a superfície do móvel foi agarrada pelo senhorzinho. Meio chocada, olhou-o nos olhos. Ele, por sua vez, passou a encará-la fixa e atentamente. Logo proferiu:
— E parlando en segretos, o que foi que aconteceu?
Sem escapatória, ela tentou uma resposta curta e simples:
— Quis rever vocês.
E emendou relatando a visita inesperada de Clara e Flávia no Grajaú, o que, em partes, havia a motivado para a atitude que tomou. Contudo, Francesco não parecia totalmente convencido disso. Indagou:
— Você se casou, no?
Nunca em toda sua vida, Beatriz presenciou o avô sendo tão sério e direto. Pior que ela não tinha sequer coragem de mentir ou omitir para ele.
— Casei... — respondeu. — Minha mãe te contou da briga que tivemos antes de eu... sair daqui, não contou?
— Contou e cheguei a brigar com ela per isso.
— Não deveria, era eu que estava errada. — Sem ter se controlado, Beatriz acabou disparando isso. Era como se ela precisasse desabafar com alguém acerca de seus erros cometidos. Será que merecia tamanho tormento por não ter escutado a sua progenitora?
— E nos separamos per quattro anni.
Apesar das palavras empregadas, Ana não sentiu que o avô a culpava. Era como se ele também necessitasse de alguém para desabafar. E quem melhor para isso do que ela mesma? Os dois sempre foram praticamente confidentes um do outro...
— O que nos leva ao que te aconteceu, não foi? — disse a ítalo-paulista.
O jogo virou sem que percebessem, de modo que o homem nem se tocou de perguntar como ela sabia do seu atual estado de saúde. Agora, era a neta quem fazia as perguntas.
— É veritá que me tornei um velho chato, como parlam per aí. E creo também que descuidei da minha salute nos últimos tempos. Deu no que deu...
— O senhor sempre teve uma saúde de ferro, nonno.
— Ma até os uominis fortes podem definhar.
— Deus me livre! Isso nunca!
Houve algumas risadinhas após as palavras tão naturais saídas da boca de Ana Beatriz. Estava ali mais uma evidência de que existia afeto entre os dois. Passada a descontração, o homem tornou a insistir:
— E você mora dove?
Ela respirou fundo e disse:
— No Grajaú.
— Mas é tão... — espantou-se o velhinho.
— Longe, eu sei.
— Nem io conoscio molto bene aquela região.
Beatriz sabia que o senso de direção de seu avô iria apitar com aquela informação. Foi aí que ela contou sobre o que impulsionou a sua ida e de quem depois se tornaria o seu marido para aquele lugar, dizendo sobre o negócio que Paulo herdou por ali e... mais nada. Exasperado, só restou ao homem fazer um breve questionamento:
— Mas perché, mia nipotina?
Que saudades também daquele "minha netinha" em italiano que ele tanto pronunciava para ela. Essas simples palavras acionaram as suas emoções mais profundas, ao mesmo tempo em que Beatriz não queria dar maiores explicações. Desgastada, tanto pelos recentes acontecimentos quanto por aquela confusão em sua mente, respondeu:
— Porque eu... precisei, nonno... Por favor, não quero falar sobre isso, ao menos não agora. Mas... prometo que retomaremos esse assunto quando eu estiver preparada, tudo bem?
Mesmo a contragosto, Francesco anuiu em concordância. Após essa conversa concomitantemente tensa e carinhosa, o assunto se desenvolveu para amenidades. Em dada altura, viu-se e ouviu-se um bocejo vindo do mais velho. Foi a vez de a neta lançar uma brincadeira:
— Alguém aqui está com sono...
— Bobagem. Foi algo aleatório.
Analisando melhor o avô, dava para notar algumas discretas olheiras. Passando confiança na voz, Beatriz declarou:
— Pode ir descansar, nonno, posso cuidar de tudo por aqui.
— No...
— Não vou levar nada daqui — ela disse sarcástica.
— No é isso, Anna Beatrice...
— Não vou embora. Antes, quero ver... a minha mãe.
A postura dele amoleceu, ao ponto de Beatriz pegar a sua mão, conduzi-lo até o seu quarto e fazê-lo deitar sobre a cama. Mal tinha o ajudado a se cobrir, veio um segundo bocejo, mais intenso.
— Dorme, nonno. Vigio o senhor, se for preciso.
— Grazzie mile, mia nipotina — E lançou um último olhar para a moça. — Io t'amo!
Aquilo pegou a mulher desprevenida. A ela só restou retribuir as palavras cheias de carinho:
— Também te amo, vovô!
Ele deu um sorriso discreto, fechou os olhos e não demorou para se render a um sono mais do que merecido.
Ana Beatriz ainda ficou um tempo ali, velando o estimado avô. Após isso, saiu do quarto e se dirigiu até a cozinha. Tomou a liberdade de lavar a louça que fora suja devido àquele almoço de última hora.
Enquanto molhava os pratos e talheres na cuba da pia, foi tentando matutar o que faria depois. Talvez iria dar um pulo no 31 e no 32 a fim de ver de novo as suas amigas. Talvez pudesse convidá-las para dar uma volta pelo bairro e, assim, matarem as saudades. Talvez...
Seus pensamentos foram interrompidos quando ouviu a porta, que sabia ser a da entrada do apartamento, se abrir e, em seguida, uma voz ecoar:
— Seu Francesco, cheguei. Trouxe carne para o almoço.
Aquela voz...
A partir daqui, o corpo de Beatriz paralisou. Limitou-se a apenas continuar ouvindo aquele timbre:
— Nonno, cadê você?
E aí até o tempo deve ter parado. Passos foram efetuados da sala até a cozinha, onde justamente a ítalo-brasileira se encontrava. Houve, com isso, um encontro, depois de anos, de olhares. Quase que uma sacola, contendo a carne já citada, foi ao chão. Foi a própria Ana Beatriz a primeira a voltar a si:
— Mãe...
E mais uma vez pairou aquilo de "O que fazer?", "O que falar?", "Como fazer?", "Como falar?", etc. e etc.
Maria das Dores certamente era a mais afetada por essas sensações. A mulher simplesmente permaneceu paralisada. Coube à Ana Beatriz, mesmo hesitante, tomar a iniciativa:
— Desculpa... É que... o nonno e eu... almoçamos e...
— Seu Francesco já almoçou? — indagou a mais velha, voltando a si. Por mais que a pergunta tivesse sido boba, seu tom mais revelava sua surpresa do que qualquer constatação ridiculamente óbvia.
— Ele... disse que tinha... um pouco de lasanha de ontem e... nos serviu. Aproveitei para... fazer um pouco de arroz e salada...
— E cadê ele?
— Tirando um cochilo...
— Um cochilo!?
Aqui, Dorinha quase gritou, o que assustou Beatriz, que, por sua vez, foi tomada pelo desespero:
— Ai meu Deus! Não era para ele dormir? Eu não sabia...
E quando ela tentou sair da cozinha, objetivando ir até o quarto de seu avô para acordá-lo, a outra se adiantou. Em um impulso, das Dores apenas a segurou pelos ombros, suas faces ficaram frente a frente, olho no olho e, apesar de inseguras, passaram a se encarar como se quisessem se falar apenas com a linguagem não verbal.
— Calma! — tornou a falar Maria. — Pelo visto, sua agitação não diminuiu ao longo desses anos todos.
— Mamãe, eu...
Ao ouvir aquele "mamãe" dito pela sua própria filha de um jeito carregado pelo nervosismo, mas, sobretudo, doce, Dorinha não resistiu mais. No instante seguinte, já estava envolvendo a mais jovem em um abraço caloroso e desesperado. Chorou a mãe, chorou a filha.
Em seguida, as duas voltaram a se fitar. Agora, queriam estudar melhor uma à outra.
— Como você está mais crescida!
— Ficou bonita.
— Só acho que está magrinha demais, minha filha...
Era o que Maria dizia em uma quase ladainha tão típica de mães.
Já mais tranquilas, relaxaram quando se sentaram à mesa daquela cozinha. Minutos depois, Maria das Dores já estava com um prato, contendo a tal lasanha, o arroz e a salada, servido. Enquanto degustava da comida, soltou:
— Me espantei com seu Francesco dormindo, porque... ele não tem o costume de tirar uma soneca à tarde.
— Como não? — rebateu Ana. — Me lembro muito bem do nonno dando seus cochilos a essa hora do dia...
Aí ela parou. Também se recordou de que também não residia mais naquele prédio há anos. As pessoas, ao longo do tempo, podem mudar, assim como adquirir ou deixar alguns hábitos, e seu avô não fugiria a essa regra. Entretanto, o senhorzinho, mesmo com certa insistência de sua parte, tinha pegado no sono com tanta facilidade que era difícil pensar que ele não estivesse mantendo tal mania. Foram as palavras que ouviu da mais velha que fecharam os questionamentos que rondavam a sua mente:
— Seu Francesco não dorme de tarde há muito tempo. — Dorinha fez uma pausa e, após um suspiro, prosseguiu: — Isso não acontece desde...
— Desde que fui embora?
Sem que soasse pretensiosa, Beatriz rapidamente concluiu aquilo. Sua progenitora somente maneou com a cabeça em afirmativo. Até nisso, a sua partida bruta e repentina de anos atrás impactou na vida de quem amava e, de certa maneira, ajudou a contribuir até mesmo com o atual quadro de saúde de seu querido familiar. Para variar, martirizou-se.
— Não falei isso para te culpar — justificou-se dona Dorinha. — Olhando bem, que bom que você está aqui! Imagino que seu avô deve ter ficado tão tranquilo que se permitiu tirar seu cochilinho atrasado.
A entonação dela era suave, inclusive, as últimas palavras foram até engraçadinhas, fazendo com que ambas as mulheres entoassem uma gargalhada amistosa. Que diferença elas duas dialogando ali em contraste com a última conversa que tiveram anos antes. Com isso, Ana Beatriz sorriu.
A partir de então, as duas passaram a falar de amenidades. Na verdade, a mãe mais tagarelava, enquanto a filha mais assentia em concordância e, vez ou outra, soltava alguns monossílabos. Em certa altura, ao pegar na mão de Beatriz, Maria perguntou:
— Está tudo bem?
— Está... — Ana nem conseguiu disfarçar a insegurança.
— Tem certeza? — a mais velha insistiu. — Eu te conheço, Ana Beatriz! Você veio de mim.
— É complicado, mãe...
Desse modo, meio que comendo pelas beiradas, Beatriz relatou sobre o que passou desde que havia saído de casa. A exemplo do que já tinha dito ao avô, também contou sobre seu casamento, sua vida no Grajaú e o emprego de seu esposo. Como resposta, das Dores soltou um suspiro profundo e chegou a fazer uma confissão:
— Sabe... Eu me arrependo muito daquela briga que tivemos no passado. Acho que, no fundo, não queria que você se tornasse uma pessoa como eu, entende? Grávida e fugida da casa dos pais...
Aquele "grávida" ficou martelando na cabeça de Ana. Instintivamente, ela abraçou o próprio corpo, porque sabia que, em questão de segundos, iria estremecer e isso lhe denunciaria. Será que, depois de tanto tempo e de tanta coisa, teria coragem de falar o que a motivou, de fato, a ter deixado seus entes queridos? Talvez ainda não estivesse pronta, visto o que lhe foi perguntado a seguir:
— Você, ao menos, estudou?
— Não...
Mais um suspiro foi efetuado por Dorinha, que novamente indagou:
— É feliz?
Na opinião de Beatriz, aquela havia sido a pior pergunta feita. Claramente ela não era feliz, aliás, nunca foi em seu casamento. A gota d'água foi justamente o que a impulsionou para que, de certo modo, voltasse para a sua família. Pensar no que sofreu nos últimos dias a fez remeter às suas amigas. Logo, disse:
— A senhora acredita que Clara e Flávia, por meio de um detetive, conseguiram me localizar lá no Grajaú? Por isso que estou aqui.
Beatriz tinha plena consciência de que a tentativa de evadir daquele assunto havia sido deveras ridícula. Das Dores, que não era idiota, notou isso. Contudo, não insistiu no assunto. Se fosse em outra época, ela faria um verdadeiro interrogatório e extrairia toda e qualquer informação de sua filha, mas ali... Sem saber explicar o porquê, sentiu que não adiantaria agir de forma pressionadora. Entrou no jogo:
— Aquelas meninas são umas danadas! Disseram para mim que iriam te encontrar e olha só, cá estamos!
Ana Beatriz apenas gargalhou, um pouco satisfeita pela mãe não querer estender aquela conversa tensa, um pouco nervosa.
O que ela não sabia é que sua postura mudaria em um raio de poucas horas...
Beatriz não esperava que tivesse um dia tão divertido ao lado de sua (única e verdadeira) família.
Em que pesou o fato de sua própria mãe seguir com aquelas encaradas, a fim de extrair o que havia se passado consigo, a atmosfera e sintonia daquelas três pessoas pertencentes a gerações distintas triunfou vitoriosa sobre qualquer sentimento de desconfiança, ressentimento ou incerteza.
O ápice foi quando, horas depois, quase anoitecendo, Francesco ligou a velha televisão de seu apartamento e viu o que lhe arrancou o mais genuíno grito de euforia:
— Oggi é jogo de mio Palmera!
Em pouco tempo, o trio estava reunido na sala de estar, compenetrado com a partida emocionante de futebol. Beatriz e Dorinha temeram inicialmente pelo vovô. Seria uma boa ideia ele, naquele estado delicado de saúde, passar por uma emoção tão intensa como a de assistir um jogo daquele esporte? Desse modo, as duas optaram por ficar ao seu lado. Ironicamente, elas, que nunca foram as torcedoras mais fiéis, foram contagiadas com a energia vibrante do senhorzinho em pouquíssimos minutos de partida.
Em dada altura, Palmeiras marcou um gol, o que rendeu uma súbita levantada de Francesco do sofá e seu consequente grito de comemoração. O velhinho ainda tentou erguer a neta do chão, de modo a carregá-la no colo, tamanha alegria que havia sentido diante daquele ponto executado. Lógico que mãe e filha dissuadiram-no daquela ideia, mas, ao mesmo tempo, era incrível como ele nem parecia ser um paciente pós-operatório assistindo aquilo tudo e, principalmente, tendo a companhia de suas entes mais do que queridas.
Depois do jogo e da brilhante vitória do time do coração do patriarca Fontana, Xavier e Hiroshi apareceram no 21, convidando Francesco para um jogo de cartas, tal como já faziam. Assim, os homens se direcionaram para o depósito do último andar do prédio, enquanto as mulheres foram para o 22. Aqui incluiu-se Ana Clara, Ana Flávia e dona Sayuri, que se juntaram à Ana Beatriz e Maria das Dores.
As moças aproveitaram para fazerem uma refeição em conjunto, botarem o papo em dia, entre outras coisas. A noite, que já tinha caído, estava deveras agradável. Não fazia calor nem frio e uma suave brisa ajudava a equilibrar a temperatura lá fora e a acalmar o íntimo dos moradores da Mooca, sobretudo daquele pequeno edifício.
Vendo-se cercada por tanta gente querida, Beatriz não pôde conter um sorrisinho. Foi aí que uma ideia se apossou de si, porém... Seria seguro executar aquilo? Ela sentia que não estava tão fora de perigo e o pior era que as circunstâncias ao seu redor não a ajudavam muito, ainda mais quando ouviu da boca de Clara:
— Já está ficando tarde. Acho que passarei a noite com meu pai aqui.
— E você trouxe alguma roupa para dormir? — rebateu Flávia em um tom brincalhão.
— Eu não, mas... — Clara fez uma pequena pausa e encarou Beatriz. — ... a nossa amiga aqui trouxe algumas e creio que ela não se importaria de emprestar.
— Não, não me importo... — disse Beatriz, um pouco tomada pelo susto ao ser mencionada e não entendendo direito a expressão que julgou como maliciosa vinda de sua amiga afrodescendente.
— Ana Flávia — manifestou-se Sayuri —, se não se incomodar, pode dormir no seu antigo quarto.
Aqui o choque foi sentido por geral. Mesmo que Sayuri não fosse a mãe e mulher mais afetuosa e seu timbre passasse longe de transmitir tais sentimentos, ainda assim, o convite feito à sua própria filha carregava um quê de gentileza. Talvez ainda espantada com isso, Flávia ainda respondeu:
— Pode ser que... eu fique... Só... tenho que falar com a Raquel.
— Claro! Ela pode ficar preocupada — Sayuri voltou a dizer.
Pelo visto, não era apenas a família de Ana Beatriz que estava impregnada por aquele clima familiar... E falando nessa família:
— Filha — manifestou-se das Dores para a ítalo-paulista —, por que você também não dorme aqui?
— Eu? — respondeu. No mesmo momento, teve um vislumbre do sorriso "malicioso" de Ana Clara que se alargou e uma expressão de quem como havia descoberto a roda partindo de Ana Flávia.
— Quem mais seria? — continuou a sua mãe, risonha.
— Eu... fico...
Clara e Flávia sorriram meio presunçosas para, em seguida, suspirarem de alívio. Em menos de uma hora, elas duas e Sayuri se retiraram dali. Antes, as duas amigas de Beatriz lhe lançaram um olhar sugestivo e, por fim, ela entendeu o que foi aquela cena. Durante aquele pequeno jantar e dentre tantos assuntos falados, o trio, discretamente, conversou sobre Paulo e a agressão física sofrida por quem era atualmente a sua esposa. As outras "Anas" ficaram espantadas quando souberam que a ítalo-paulista não havia revelado para mais ninguém o que passou nas mãos de quem considerava seu cônjuge. Portanto, era, até então, um segredo só delas.
Entretanto, apesar de indignadas, as duas não insistiram. Ou melhor, esquematizaram as circunstâncias para que Beatriz permanecesse no prédio até, pelo menos, o dia seguinte.
— Tem certeza que posso ficar aqui? Não vai incomodar? — indagou ela ainda tomada pelo receio.
— Não é como se não houvesse mais um quarto por aqui, não é mesmo? — tornou a brincar Dorinha. — Acho que você tem que apenas ligar para o seu marido...
A menção ao homem fez Beatriz dar uma leve estremecida, mas se conteve. Retrucou:
— Ele... se vira bem.
De novo, das Dores não evitou a sua expressão desconfiada. Mesmo assim, foi conduzindo Ana até onde era seu dormitório.
Ao abrir a porta e acender as luzes, Beatriz quase esteve ao ponto de paralisar de emoção. Na realidade, deixou ser guiada pelos movimentos quase involuntários de seu corpo e foi analisando cada canto e cada detalhe daquele cômodo que ainda lhe era tão significativo.
A cama continuava ocupando um dos vértices do quarto. O guarda-roupas, que tomava uma das paredes quase completamente, e um espelho permaneciam situados à esquerda. Até a pequena varanda, à direita, estava lá, contornada por uma grade já meio desgastada e precisando de um pouco de pintura. Em suma, naquela parte da casa jamais se modificou qualquer coisa.
— Pouco depois de você ter... ido embora — Dorinha começou —, achei um materialzinho seu de estudo. Acabei me deparando com uma história de um rapaz, que foi estudante no tempo do regime militar, e que acabou morrendo nessa época...
Mesmo que a mais velha não tivesse citado o nome daquela figura histórica, foi, para Ana Beatriz, como se tivesse sido ontem quando ela estava estudando sobre Alexandre Vannucchi Leme – aluno e militante estudantil e, infelizmente, morto enquanto lutava contra aquele sistema retrógrado e opressor.
— Vi que, apesar de oficialmente morto, os pais dele nunca se conformaram com isso e, até onde sei, eles mantiveram o quarto que era dele do jeito que estava.
Foi inevitável Beatriz não dar um suspiro, ignorado por das Dores, que ainda continuava:
— Acho que, inspirada neles, não mudei o seu também, porque ainda ele é seu, mesmo que tenhamos ficado separadas por anos...
Não resistindo mais, Ana interrompeu a sua progenitora ao envolvê-la em um súbito e forte abraço. Não raciocinando mais direito, iniciou a sua confissão:
— Você me aceitaria de volta mesmo eu tendo os meus pecados, mamãe?
Ainda agarrada à filha, a réplica de Dorinha foi a mais doce possível:
— Eu nunca te rejeitei.
E era verdade, afinal foi Beatriz quem fugiu. Certamente, ela tinha decepcionado sua família, mas aquilo era tão pequeno naquele momento...
Foi assim que ela, aos prantos, contou sobre a primeira vez que namorou quem viria a se tornar o seu cônjuge, sobre aquele fatídico dia no hospital, sobre a sua estadia por lá naquela noite (e não na casa de Paulo) e, principalmente, sobre o seu segredo que jamais revelara para mais ninguém.
— Filha... — chocou-se Maria. — Por que não falou nada para nós? Não falou nada para mim?
— Tive medo. Eu... estava tão aterrorizada, tão fragilizada com aquela notícia que... me acovardei... Só o... Paulo... que foi meu porto seguro naquela época e... olhe lá...
Apesar da dificuldade em ter relatado aquilo, Dorinha sentia que a sua filha não estava ainda contando tudo. Sua intuição de mãe dizia que era algo a ver com o fato de Beatriz estar ali e agora com ela. Por isso, disse:
— É por essas e outras que você pode passar a noite aqui. Essa história ainda te machuca, pelo visto. Deus me livre se você sair dirigindo até o Grajaú nesse horário e nesse estado emocional!
— Então... você me... acolhe e aceita do jeito que sou? — perguntou a mais nova tomada pelo receio.
— Ana, eu sou sua mãe! Jamais se esqueça disso! E o que tiver a mais para me contar, conte sem nem precisar pensar duas vezes, tudo bem? O que passou, passou. — Parou e fitando a mais jovem com o semblante suave, declarou: — Eu te amo!
Beatriz não resistiu mais e se entregou às lágrimas que já teimavam se derramar. Estando mais tranquila, ela assentiu. Foi muito bem ter se sentido amada por quem nunca deixou de amá-la e também ter descarregado aquele peso de suas costas para justamente quem precisava saber daquela trágica história de seu passado.
Mais tarde, ainda naquela noite, entrou rápido nos domínios de Morfeu. No entanto, quando pensava que iria ter mais um sono tranquilo, aquilo aconteceu...
Já tinha perdido as contas, mas o fato é que... aquele sonho esquisito, em que ela dava cabo na vida de seu marido, voltou com força em sua mente. A experiência fora tão descomunal que, ao despertar, Ana Beatriz ficou se questionando se aquilo havia sido ou não real.
Aquilo ficou reverberando em si e, em um rompante de lucidez, parecia que ela sabia o que deveria fazer...
Foi assim que tinha já tomado uma nova decisão e... executado-a.
Foi assim que, no dia seguinte, ao tentar acordar a filha para um desjejum, Dorinha descobriu a cama vazia e o quarto desocupado, como se ninguém houvesse passado a noite ali. Não precisou pensar muito e constar que... Beatriz não estava mais lá.
Onde está você, Ana Beatriz Fontana?
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Notas do autor: Capítulo levinho, mas que antecede a tempestade rsrsrs. Amo esse conceito de reencontro entre pessoas, seja entre amizades ou entre família e isso foi explorado aqui. Inclusive, depois de anos, Beatriz teve a coragem de falar do que realmente lhe aconteceu para a própria mãe. Contudo, veio essa atitude inesperada dela... O que será que Beatriz fará dessa vez? Próximo capítulo é penúltimo e se configura como o grande clímax daqui da obra. Até a próxima! o/
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