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08. Purgatório - Parte I

Por um momento, Ana Beatriz hesitou. De início, não sabia se deixaria o carro estacionado por ali. Conhecia bem aquela parte da cidade e tinha ciência de que o centro paulistano, apesar de bem localizado e acessível, também continha seu quê de violência. A última coisa que queria era que roubassem seu automóvel.

Depois, parou, refletiu e resolveu parar o veículo próximo de um local, um comércio, que foi onde entrou. Mais uma vez, pestanejou. Viu que naquele modesto boteco, tão típico daquela região, tinha apenas... homens. Na mesma hora, recordou-se de um conto do escritor Ivan Ângelo que lera na adolescência. Na obra, a jovem mulher acabava amargando um destino horroroso justamente por ter entrado em um bar, tal como aquele, repleto de pessoas do sexo masculino, igual nesse contexto, com o mero objetivo de fazer uma ligação telefônica, que era o que pretendia.

Mesmo receosa, tentou se livrar desses pensamentos trágicos. Já havia sofrido uma violência, seria tão azarada de sofrer outra? Além disso, a manhã daquele sábado estava em seu apogeu. Deveria ser nove ou dez horas. Também percebeu que, apesar de ser um reles boteco, no local estava sendo servido o que identificou como comes e bebes de um café-da-manhã. Tranquilizou-se, desse modo, de que o pior não iria lhe acontecer em plena luz do dia.

Foi assim que, fazendo um pouco de faz-favor-daqui-e-dali, conseguiu acessar o telefone do lugar, após um dos funcionários lhe indicar o tal aparelho. Nesse momento, arrependeu-se, em partes, de não estar com o seu celular, embora ainda houvesse o risco de ser rastreada se o tivesse levado. Talvez tenha sido melhor assim.

E com a cabeça tão a mil, não pensou muito. Apenas discou um número, falou com a pessoa do outro lado da linha, digitou outro, conversou com esse segundo alguém e, depois de agradecer pelo uso do telefone, voltou rapidamente para o seu automóvel, dando graças aos céus por ninguém o ter surrupiado.

"— Se bem que quem iria roubar esse carro velho?" — pensou ela tentando, um tanto desesperadamente, extrair algum humor daquela situação.

Ficou ali aguardando a chegada de quem justamente havia telefonado. Foram minutos que, para ela, pareceram ser horas ou até dias. Já não raciocinava mais direito. Tinha consciência de que, apesar da facilidade de locomoção naquele ponto de São Paulo, aquelas pessoas demorariam algum tempo para chegar. Mas estava tão ansiosa...

Felizmente, viu quando dobraram a esquina e chegaram... juntas.

Em suma, Ana Clara e Ana Flávia estavam ali.

Andavam aparentemente tranquilas, embora fosse notável um ar de apreensão em seus semblantes. Ao se aproximarem do carro, já foram falando que vieram de metrô, o que explicava o tempo mais ou menos demorado que levaram para chegar.

— Desde a hora em que você nos ligou, fiquei sem acreditar até agora — afirmou a nipo-brasileira.

Clara e Flávia, depois de um gesto indicativo por parte de Beatriz, entraram naquele carro e ocuparam o banco traseiro. A mulher negra falou:

— Esse aqui era o carro do nonno, não? Não sabia que estava em sua posse...

— Ele tinha me presenteado pouco tempo depois de vocês terem saído do prédio.

Apesar de ter dado aquela resposta casual, era perceptível o nervosismo na entonação de Beatriz. Assim que Clara e Flávia receberam aqueles telefones repentinos de aproximadamente meia hora atrás, as duas rapidamente se falaram pelo celular, enquanto se arrumavam para o local onde a amiga de ambas alegou estar. Foi inevitável não pensarem nas motivações da outra, que, aliás, exalava um ar misterioso. Ela portava aqueles óculos escuros e, estando cabisbaixa e de costas para elas, mal as olhava no rosto.

— Está tudo bem? — indagou Clara de maneira atenciosa e tocando no ombro da amiga.

— Está... — respondeu Beatriz em uma clara hesitação que não passou despercebida pelas demais.

— Está tudo bem mesmo? — insistiu Flávia. — Você parece agitada...

Em uma fração de segundos, Ana Clara notou, novamente, o receio da motorista daquele carro. Agiu com rapidez:

— Vejo que pensou no que dissemos para você ontem.

— Talvez...

Ao contrário de Clara, Ana Flávia era mais objetiva e direta, quando não curta e grossa. Estava odiando, de fato, aqueles monossílabos proferidos por Beatriz. Disse:

— Não me diga que veio dirigindo do Grajaú até aqui!

— Quis ver vocês... — rebateu Beatriz com a mesma aflição.

— E marca esse encontro conosco em seu carro e em pleno Centro de São Paulo assim tão de repente?

Flávia não largava o osso. Desde o telefonema, sentiu que algo não estava indo bem com a outra mulher. Pensando bem, desde que se viram no dia anterior, algo em seu íntimo não havia gostado do jeito meio evasivo da amiga. O mesmo terrível sentimento também se apossara de Clara, sempre tão observadora, com a diferença que esta conseguia agir com mais sutileza. Enquanto conversavam pelo celular, as duas amigas de Beatriz não deixaram de citar essa estranheza nos modos e, principalmente, nas ações dela.

— Eu... — continuou a ítalo-paulista — precisei espairecer...

— Dirigindo por quilômetros?

Clara então deu um cutucão em Flávia. Sem esboçar qualquer palavra, pediu à moça ao seu lado paciência e prudência. Talvez, pressionar a outra daquele jeito não fosse o melhor caminho.

E ela estava certa.

— O que a doida da Flávia está querendo dizer — Clara se manifestou com um pouco de humor — é que foi um tanto assustador você ter nos ligado e depois marcado esse encontro inesperado aqui. Aliás, não dá para ficarmos jogando conversa fora nesse lugar. Você sabe o quão violento é o centro, não é mes...

De novo, ela tocou no ombro de Beatriz, porém percebeu algo. Dessa vez, mandou a sutileza para as favas e, chocada, soltou:

— Você está tremendo!

Por conta dos óculos que usava, as duas moças não perceberam quando Beatriz havia se entregado a um choro compulsivo. Só foram ver isso ao ouvirem a sua voz cortada:

— Não vim até aqui porque planejei... Quando dei por mim, já estava pegando no volante e conduzindo este carro. — Respirou fundo a fim de pegar um pouco de fôlego. O oxigênio em seu cérebro a fez se relembrar de algo. Prosseguiu: — Lembram de quando vocês me confessaram o que tinha acontecido com as duas há quase cinco anos? Sobre... o Fabrício e toda aquela história sórdida que as envolveu?

Ambas, sem compreenderem a mensagem, não sabiam o que falar ou como reagir. Limitaram-se em permanecer estáticas, o que fez com que Ana Beatriz, antes de cabeça baixa, erguesse o rosto, lançasse um olhar fixo para elas pelo retrovisor e insistisse:

— Lembram?

As duas somente assentiram, um pouco assustadas. A ítalo-paulista continuou:

— Tínhamos prometido que guardaríamos esses segredos. Claro, depois quisemos fazer justiça por nós mesmas e as pessoas, com isso, acabaram sabendo de tudo o que aconteceu. Mas nada tinha sido vazado da parte de nenhuma de nós.

— Beatriz, não estamos entenden...

— Agora é a minha vez de pedir que vocês guardem um segredo meu.

— Ah! Eu sabia que...

Flávia iria falar qualquer coisa, visto a sua entonação revoltosa, porém foi parada por mais um gesto de Clara. Mas foi o que viram, em seguida, que as emudeceu completamente...

Ana Beatriz finalmente havia retirado aqueles óculos escuros. Dava para ver seus olhos avermelhados, devido às lágrimas derramadas há poucos instantes, sua feição completa que exibia um grau de palidez e...

Um terrível hematoma ao redor de seu olho esquerdo.

Não precisava ser nenhum gênio para saber o que havia acontecido. Por um instante, Ana Clara e Ana Flávia foram tomadas por um sentimento de culpa. Os sinais de que algo não estava bem com Beatriz estavam ali e elas não perceberam, sequer foram capazes de ajudar a amiga querida.

Mesmo assim, Ana Beatriz tratou de explicar, tropeçando nas próprias palavras, os eventos que se sucederam desde a hora em que o trio, no dia anterior, se separou até a sua fuga, que, por sua vez, culminou na sua presença em pleno coração da cidade. A reação das outras mulheres foi explosiva.

— Eu vou matar aquele infeliz!

— Vamos nós três agora para o Grajaú dar um jeito naquele vagabundo!

— Não! Por favor... — Beatriz tentou argumentar.

— Você vai defender ele? — perguntou Flávia.

— Não, é que... tenho medo...

Aí houve mais explicações, focando no fato de Paulo ser um homem deveras influente no pedaço onde eles residem atualmente.

— Mas, Beatriz, você tem que fazer alguma coisa! — insistiu Clara.

— A Raquel pode te ajudar — complementou a nipo-latina. — Ela, vira e mexe, pega casos como o seu. Capaz de até ela fazer um pro bono para você.

— Não, por favor! — O pavor de Ana Beatriz era mais do que evidente. Inclusive, seu corpo tornou a estremecer. — Não envolva ela nisso. Não é justo... Vocês duas daqui a pouco vão se casar... Já pensou se acontece alguma coisa com ela?

— Ela é forte e sei que tem os contatos dela — rebateu Ana Flávia com firmeza.

— De qualquer maneira, não quero, por enquanto, fazer nada que envolva denúncia, justiça ou alguma coisa do gênero. — Beatriz suspirou. — Estou nervosa, aterrorizada, confusa... Quero... um tempo longe dele. Acho que eu seria capaz de ir até o fim do mundo só para ficar afastada dele.

Ana Clara, sempre tão mais quieta, embora não menos mexida com aquela situação, levou a conversa, mais uma vez, para outro rumo:

— Gente, vamos discutir essas coisas com mais calma, mas não agora e, principalmente, aqui.

— Podemos ir para a minha casa — sugeriu a mulher de ascendência oriental. — A Raquel não está lá. — Lançou um olhar sugestivo para Beatriz. — Teve que fazer um trabalho no escritório dela...

— Poderíamos ir para a minha também — prosseguiu a afrodescendente —, mas tive uma ideia melhor...

E aí quando ela expôs essa ideia, houve mais discussão, com direito a, novamente, Beatriz assumir a sua postura relutante. Foi Flávia quem deu a cartada final:

— Se você não for até lá, então iremos à polícia fazer a denúncia.

A ítalo-paulista abriu a boca, em uma postura de indignação. Não havia escolha: era acatar ao que foi pensado por uma e incentivado pela outra ou realizar um temeroso boletim de ocorrência, ter a sua intimidade invadida pelo exame de corpo de delito para, no fim das contas, nem saber se todo esse procedimento burocrático lhe daria alguma segurança.

— Mas não posso aparecer assim... com esse olho roxo... — disparou a moça de cabelos castanhos.

Aquilo pegou as outras de jeito. Quase foram às lágrimas. Flávia, que portava uma bolsa, disse:

— Tem sorte que ando com o meu kit de maquiagem para cima e para baixo.

— Você com maquiagem? Quem diria? — gracejou Clara.

Surpreendentemente, Beatriz riu com o comentário, o que contagiou as demais. Por fim, o clima dentro daquele automóvel ficou subitamente leve.

Na juventude, Ana Flávia não era conhecida por ser tão meiga e ligada a esses signos de feminilidade. Inclusive, seu guarda-roupa era marcado por roupas largas e um tanto desleixadas. Enquanto maquiava a amiga, justificou-se:

— Sabem, eu sou uma artista e também uma mulher crescida, não sou mais aquela garotinha má de antes... — Riu. — Fora que convivo com uma espécime que adora essas coisas, então meio que fui influenciada por isso.

Depois disso, ela terminou o que estava fazendo. O resultado de sua arte foi logo contemplado pelas outras:

— Uau, Flávia! Ficou perfeito! — exclamou Clara.

— Nem dá para ver aquela marca... — disse Beatriz, emocionada. — Obrigada!

— Não precisa me agradecer. — Flávia sorriu. — Bom, agora temos um lugar para ir.

— E caso você não se importe, Beatriz — disse Clara —, posso ir dirigindo.

— Você? — perguntou a dona do carro, surpresa.

— Você já veio daquela lonjura até aqui, fora que seu estado de espírito não está dos melhores. Não sei como não aconteceu uma tragédia no caminho.

— Vira essa boca para lá! — A nipo-brasileira ralhou. — Até me deu um arrepio o que você falou. — Fez uma pausa. — Mas você é uma descarada, hein dona Ana Clara? Não falou nada sobre saber dirigir...

— Flávia, minha querida, você não é a única que mudou em algumas coisas e aprendeu outras durante esses anos todos... — A biomédica deu um sorriso um tanto presunçoso.

Apesar do tom inocente e sem maldade por parte da outra mulher, foi inevitável Beatriz não se sentir inferiorizada. As amigas conheceram outros lugares e outras pessoas, estudaram, têm suas carreiras e até estão bem em suas respectivas vidas pessoais. Mas e ela? O que tem feito ao longo dos últimos tempos? Martirizada por esses pensamentos, ela aceitou a proposta de Clara, dando-lhe permissão para que conduzisse seu veículo.

O destino delas? Um velho prédio conhecido e situado na... Mooca...

Como o bairro da Zona Leste paulistana não era longe do centro, em poucos minutos, o trio de mulheres chegou ao prédio.

Depois que Ana Clara estacionou o carro em um terreno baldio vizinho, as três andaram até a entrada do edifício e, por alguns segundos, ficaram posicionadas por ali mesmo, de modo a contemplar o lugar que conheciam tão bem.

— Apesar de Flávia e eu já termos estado aqui — disse Clara —, é diferente tendo você como companhia, Beatriz.

De fato, tratava-se do local onde as três fizeram amizade, conviveram com as suas devidas famílias e cresceram juntas. Uma sensação de nostalgia as dominou sem nem pedir licença. O momento foi quebrado com a voz de Ana Flávia:

— Vamos então?

— Não acredito que vocês conseguiram me arrastar até aqui... — acrescentou Beatriz com humor.

— Vamos, sem moleza e sem olhar para trás, queridinha!

E Flávia e Clara flanquearam a amiga, o que resultou no trio caminhando abraçado em direção à entrada do prédio.

Quando cruzaram a portaria, quase mataram o pobre homem que ali trabalhava de susto. O porteiro era um sujeito de meia idade, pele bronzeada, com um singelo bigode, cabelos escuros e uniformizado. O motivo de seu rompante de "terror" não foi a visita inesperada das filhas dos moradores do terceiro andar, mas quem as acompanhava. E ele verbalizou isso:

— Menina Ana Beatriz? É você mesmo?

Apesar de manter o semblante receoso, a moça respondeu com educação e gentileza:

— Em carne e osso, seu Augusto. Como vai?

E sem que ela pudesse reagir, o homem saiu de seu posto e a tomou em um abraço terno. Ana Beatriz sentiu seus olhos arderem, ficando quase ao ponto de derramar algumas lágrimas. Ao se desvencilhar dela, Augusto declarou:

— Estávamos todos nós com muita saudade de você, menina. Como você está crescida e bonita! Já era super grandona quando mais nova, mas agora se superou, hein?

A ítalo-paulista, que já sorria, entoou um riso, meio tímida pelos elogios recebidos, meio alegre. Uma sensação muito doce de familiaridade havia a dominado com tão poucos gestos e palavras. Igualmente tocadas pelo momento, as outras garotas se aproximaram mais dos dois. Em seguida, Flávia indagou:

— A dona Dorinha está?

Seu Augusto, que também estava sorridente, mudou um pouco a expressão. Deu a sua resposta:

— Infelizmente, ela saiu cedo hoje. Disse que iria resolver uns problemas pessoais... — Olhou Beatriz de um jeito estranho. Na visão das garotas, que notaram isso, ele parecia... desconfiado, como se estivesse pisando em ovos. — Me passou a impressão de que ela demoraria a voltar. É uma pena! Dorinha iria ficar tão feliz em te ver, Ana Beatriz...

— Ah! Que coisa... — Clara se lamentou de maneira genuína.

Houve alguns instantes de um silêncio constrangedor. Aquilo não era do feitio de seu Augusto, tão extrovertido, falante e simpático com os moradores. Foram as palavras carregadas de receio do porteiro que romperam isso:

— Mas... o seu Francesco está...

— O nonno? — falou Beatriz no impulso.

— Lógico... — disse a biomédica. — Na condição dele, precisa de repouso.

Por um segundo, o porteiro considerou, um tanto assustado, Ana Clara, que, por sua vez e na mesma hora, compreendeu os trejeitos excêntricos dele. Declarou:

— Não se preocupe, seu Augusto! A Beatriz já sabe do que aconteceu.

Um suspiro de alívio escapuliu do homem, que ainda se justificou:

— A Dorinha, que foi resolver uma burocracia acerca do plano de saúde do seu Francesco, pediu para que déssemos, de vez em quando, uma olhada nele. Mas, que me desculpe a neta aqui — Maneou a cabeça na direção de Ana Beatriz —, o velho está irredutível. É a gente entrar no 21 e ele só falta nos expulsar na base dos gritos, dizendo que não é nenhuma criança que precise de cuidados. É melhor não piorarmos o estado dele, não?

— Eu entendo... — disse Beatriz com um pouco de tristeza.

Será que o avô havia mesmo perdido aquele brilho tão jovial? Pelo que já ouviu, tantos das meninas quanto do porteiro ali, Francesco pareceu ter mudado drasticamente. Ali, teve mais certeza de que era por sua causa essa mudança. Culpou-se mais ainda por isso.

Vendo que a amiga estava sofrendo, as outras mulheres conduziram a amiga prédio acima, não sem antes de agradecerem e se despedirem de seu Augusto. Como o prédio não tinha elevador, foram pelas escadas.

Passaram pelo primeiro andar e, ao transitarem brevemente pelo segundo, elas viram as portas dos apartamentos 21 e 22. Um aperto no peito foi sentido por Beatriz. As outras, notando a feição em seu rosto, tornaram a flanqueá-la e a subirem mais um lance de escada.

Pararam no terceiro piso. Ana Clara deu a ideia de ficarem um pouco no 31, seu antigo lar e atualmente sendo ocupado apenas pelo seu querido pai. No entanto, veio a surpresa:

— Está trancado — constatou a mulher negra.

— Engraçado... Seu Augusto não falou nada sobre seu pai ter saído... — rebateu Flávia.

— Falei com ele ontem pelo telefone — Clara prosseguiu. — Ele disse que não estaria de plantão hoje.

— Pode ser que ele tenha trocado de última hora, não? — pronunciou-se Beatriz. — Lembro que, às vezes, isso acontecia.

Deram um suspiro coletivo. Ana Flávia até deu a ideia de elas todas irem para o 32, porém também veio a ressalva:

— Até poderíamos ir para a casa dos meus pais, mas... sinceramente não me sinto à vontade...

— Por que não vamos ao... depósito? — perguntou Beatriz.

Seu questionamento soara tão natural que até ela mesma se surpreendeu. Era como se jamais nunca tivesse saído do local onde viveu desde o nascimento. Em seguida, tentou consertar:

— Quer dizer... Não sabemos se podemos ir até lá...

— É uma ótima ideia! — as outras duas exclamaram em uníssono.

— Meninas, tal como o 31 aqui, o depósito pode estar trancado também... — Beatriz ponderou.

— Não custa ir até lá e ver isso — retrucou Clara. — Apesar de, há anos atrás, termos a chave, o depósito quase nunca ficava trancado.

Convencidas, elas subiram mais lances de escada daquela construção. Pararam na única porta do sexto e último andar. Antes que uma delas pusesse a mão na maçaneta e a girasse, trocaram alguns olhares de cumplicidade, mas principalmente, de lembranças compartilhadas. Sorriram.

E tal como previram, as memórias, no instante em que abriram a porta e entraram naquele ambiente, vieram à tona em suas cabeças. Estranhamente, o depósito não estava com aquele aspecto de abandonado de outrora, ao contrário: estava limpo, iluminado e... até havia pessoas ali... Espera aí! Pessoas? E não eram quaisquer indivíduos ali presentes, e sim um homem de pele escura, careca e com um ar gentil e amigável e outro, mais carrancudo, embora esboçasse um quê de leveza, de olhos monólitos e cabelos lisos.

— Pai!? — espantaram-se Ana Clara e Ana Flávia.

A fala das duas tirou a concentração dos homens mais velhos. Só foi naquele momento que elas perceberam o que eles faziam: sentados a uma mesinha situada ao centro daquele lugar, Xavier e Hiroshi jogavam baralho.

— Oi, filhota! — O médico já foi se levantando e indo na direção da filha, dando-lhe um abraço caloroso.

— Como vai, Ana Flávia? — Hiroshi, mais reservado e menos provido de sentimentalismo, somente maneou a cabeça, após ter se erguido e andado um pouco na direção de sua descendente, mantendo ainda certa distância.

A nipo-brasileira, meio sem jeito, apenas respondeu um:

— Vou bem...

— Voltaram rápido para o prédio... — afirmou Xavier, mas sua fala cessou.

Na mesma hora, os dois homens notaram a terceira Ana. Tal como seu Augusto, espantaram-se com a aparição repentina:

— Ana Beatriz? É você mesma?

Ela iria rebater algo, porém Flávia foi mais rápida:

— É ela sim. Queríamos que a dona Dorinha estivesse por aqui, mas soubemos que ela saiu cedo hoje.

Os dois mais velhos as consideraram. Em seguida, Xavier, mais uma vez caloroso, começou a encher Beatriz de perguntas acerca da vida, o que ela tem feito, coisas do tipo. Hiroshi, mesmo mais calado, não estava menos curioso, escutando todo aquele diálogo de forma atenta.

Em dado momento, foi a vez de a ítalo-paulista indagar algo:

— Estou realmente surpresa com vocês dois aqui. — Olhou para as duas amigas, ainda ao seu lado e continuou: — Não sei se sabem, mas o depósito era o nosso esconderijo na adolescência.

— Não sabíamos até há pouco tempo — respondeu Xavier. — Mas... — hesitou e cravou o olhar em Ana Beatriz — seu Francesco sabia.

Sob o espanto das três garotas, ele contou que, na realidade, o senhorzinho sempre soube que elas iam se esgueirar por ali. Sendo o síndico do prédio, ele tinha a consciência de que a fofoca sempre predominava por ali e que, por isso, as meninas necessitavam de um espaço para chamar de seu.

— Por isso que nunca fomos descobertas — concluiu Clara. — Aliás, o nonno nunca nos amolou por isso.

— Acho que, por esse motivo, ele que começou a promover as nossas jogatinas semanais de cartas por aqui — completou o homem negro.

Foi difícil para Beatriz segurar a emoção. Havia compreendido que era como se seu querido avô quisesse manter a ligação entre ela e ele, de forma a honrar o local que fora tão significativo para si e para suas melhores amigas. Notando que, para variar, a colega estava sofrendo, Flávia tentou dissipar o clima com seu costumeiro bom humor:

— Agora estou enciumada por vocês estarem usando do nosso lugarzinho secreto.

— Vocês saíram do prédio, suas marias ruelas!

Quem tinha proferido isso foi Hiroshi, o homem sério. Apesar de seus termos terem sido carregados de aspereza, havia um grau de humor também, que foi captado pelos presentes. Todos riram. E talvez o instante de descontração deu a grande ideia para Ana Flávia:

— Por que não chamamos o nonno aqui?

Beatriz e Clara sorriram, acatando quase que prontamente àquilo. Entretanto, Xavier, como médico, foi mais reticente:

— Meninas, lembrem-se do estado de saúde dele. Não é bom ele passar por emoções fortes.

— Mas, pai — manifestou-se Ana Clara —, depois de anos, ele e a Beatriz vão se ver...

— É, tio — disse a moça de ascendência nipônica —, não vai acontecer nada. E se acontecer, temos um médico e uma biomédica aqui. — Sorriu.

Assim, deu-se o plano: Xavier e Hiroshi iriam até o apartamento 21 e fingiriam convidar Francesco para uma casual partida de baralho, enquanto as meninas ficariam no depósito.

Houve mais um tempo de espera que, na opinião de Ana Beatriz, durou uma eternidade. Em algum momento, já entediada, ela tomou uma das cadeiras ali dispostas e se sentou, quase debruçando todo o seu corpo sobre ela. Não ficou completamente imóvel, pois ou ficava dando umas batucadas desritmadas sobre a mesa, ou balançava as pernas de um modo ansioso.

De repente, a porta se abriu. Aí, ela ouviu:

Solo vocês para me tirarem de casa per jogarmos cartas.

E viu...

Aquela velha figura alta, robusta, embora estivesse taciturna, com uma ligeira pancinha estava ali. Percebeu que os cabelos encaracolados estavam mais brancos que antes. Contudo, era... seu amado nonno ali.

Finalmente, avô e neta se reencontraram.

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Notas do autor: Finalmente, começou a, digamos, redenção de Beatriz. Bom, foi legal revermos as outras "Anas" e até mesmo outros personagens residentes do prédio onde elas todas moraram, com óbvio destaque para o querido nonno. Até a próxima! o/

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