III - E de repente... empregada
Escolástica assistia através do vidro do carro as ruas de São Miguel do Sul. Estava bem diferente desde da última vez que visitou a cidade há dez anos. Ainda era um lugar pequeno, mas dessa vez um pouco mais desenvolvido. O litoral ficava em uma comunidade distante, mas o pedaço de mar não era tão aproveitado pelos moradores. Possuía muitas montanhas ao redor, a vista era espetacular. Pouco a pouco ela via alguns arranha-céus, conseguia contá-los nos dedos, talvez quatro ou cinco e nem eram tão grandes.
As ruas eram tão arborizadas quanto da capital e a cidade era mais fria e mais úmida. O carro virou uma esquina quando passou por uma praça com uma pista de skate, muitos garotos treinavam lá, lhe chamou atenção uma jovem de cabelo espetado totalmente coberto pelo capacete, ela fazia manobras incríveis, deixando o resto do público boquiaberto.
Logo Escolástica perdeu tudo de vista ao entrar em uma rua muito arborizada com antigas árvores tipuana tipu, árvores gigantes cobertas por uma relva verde. As casas não eram bem casas, eram verdadeiras mansões. Todas com um jardim magnífico em frente, tantas flores que daria inveja a sua mãe. Passou por um casarão mais antigo, mas luxuoso, era mais recuado para o fundo e na frente tinha uma piscina além de árvores e um jardim ainda mais florido que os demais vizinhos. Logo chegou a residência de sua tia, um pouco mais diferente que as demais. Era imensa, algumas alas se assemelhavam a torres como em um castelo. Não havia um portão e nem nada, à frente da casa tinha um pátio bem ladrilhado com uma fonte no meio. Era rodeado por alguns arbustos floridos e bem aparados, mas não era cultivado muitas plantas em frente da casa, era aproveitado apenas a sombra das árvores a redor. Pelo o que a jovem se lembra, o jardim ficava aos fundos.
O carro estacionou no pátio em frente à casa, logo alguns empregados surgiram a porta. Fernando saiu do carro rapidamente e abriu a porta do carro para Edna. A mulher saiu e olhou para ele com um olhar de desdém.
— Pegue as malas e entrem. Se apressem. Tenho muito trabalho para vocês dois.
Ela foi caminhando para a casa sem nem ao menos dar a eles um pouco de descanso pela viagem. Escolástica abriu a porta do carro, pronta para pegar as suas coisas, quando se deu de cara com um jovem bonito e sorridente.
— Posso ajudá-la? — ele perguntou.
Escolástica ficou em êxtase com tanta beleza. Ele era alto, pele azeitonada e olhos um pouco puxados. O cabelo era volumoso e escuro, caía sob os seus olhos com tanta leveza que era perceptível que a hidratação estava em dias. As vestimentas eram simples, mas de certa forma também elegante. Ele usava um casaco bege por cima de uma camisa social de um azul bem claro, jeans e sapatênis.
Escolástica perdeu a voz, ela apenas balançou a cabeça positivamente, sem conseguir tirar o sorriso congelado de sua face. Ela parecia hipnotizada. Ela saiu do carro enquanto aquele cavaleiro segurava a sua bagagem, ele acenou com a cabeça, dando uma piscadela. A jovem corou instantemente.
Ele se adiantou levando as malas para dentro da casa. Escolástica apenas pegou a sua bicicleta e foi levando-a consigo, logo o jardineiro pediu permissão para deixá-la na garagem. Ao entrar na casa, na sala de estar, era tudo tão luxuoso quanto por fora. O lustre pendendo em sua cabeça parecia uma cachoeira de diamantes, enquanto uma escadaria para o piso superior era toda recoberta por um carpete vermelho. O piso era de um assolhado de madeira bem lustrado, e havia um conjunto de sofás que formavam um círculo em volta de uma mesinha de centro redonda que mais lembrava um puff. Havia jarros grandes no chão e uma estante com estatuetas, provavelmente artefatos arqueológicos. Havia pinturas nas paredes de artistas famosos, a apesar de ser uma casa antiga, era tudo tão decorado de uma forma muito luxuosa e muito fútil.
Enquanto estava boquiaberta, o jovem que lhe ajudou com a bagagem sorria para si. Foi aí que ela se tocou de ao menos agradecê-lo. Aonde estava a sua educação?
— M-muito obrigada! — ela falou mecanicamente e gaguejando.
— Foi um prazer. Eu me chamo Jorge. — Ela estendeu uma mão para cumprimento.
Escolástica ponderou um pouco, mas logo reagiu.
— Eu... me chamo Escolástica.
Ela segurou na mão dele, e ele se curvou e levou sua mão aos seus lábios.
— Muito prazer em te conhecer, Escolástica. A propósito se me permite observar, o seu nome muito é muito interessante.
Escolástica se enrubesceu. Jorge era tão educado e ao mesmo tempo se portava como um cavaleiro a moda antiga.
— Bem... é um nome de família. Foi o nome da minha avó e da minha tataravó. — Ela sorriu sem graça. Na verdade, o seu nome era ridículo.
— É uma linda homenagem. O meu nome também pertenceu ao meu avô. É um orgulho receber o nome de alguém. Achei o seu nome lindo.
Escolástica tentou não demonstrar reação, mas no fundo queria rir. O seu nome era estranho o suficiente a significar um pensamento religioso na idade média. Talvez os seus antepassados nem sequer sabiam a origem do nome ou imaginaram que havia o inventado. Era muito estranho receber um nome como aquele.
Ela assentiu positivamente. Jorge era tão bonito que a deixava sem palavras. Ela se perguntava o que ele fazia ali naquela casa. Seria algum empregado? Não poderia ser, ele mais parecia algum tipo de príncipe do que um mero plebeu.
Edna descia as escadas lançando um olhar de desaprovação a Escolástica.
— Me faça mil favores! Você ainda está aí? — ela falou. — Vamos! Tem muito trabalho a se fazer! A Rosa irá te levar ao seu quarto. O seu uniforme está na cama.
— Uniforme? — Escolástica questionou.
— Sim, o seu uniforme!
Antes que escolástica pudesse protestar, Jorge abriu a boca primeiro.
— Se quiser eu posso ajudá-la a levar a bagagem para o seu quarto.
— Jorge, meu bem, não se dê o trabalho para isso — Edna falou. — Ela mesmo leva. Ela não está doente.
Uma garota entrou na sala vindo de algum outro cômodo. Ela usava um salto extremante alto, um vestido tubinho preto e uma gargantilha dourada no pescoço. O cabelo era loiro, liso e comprido, estava preso em um rabo de cavalo. Ela era magra, rosto fino e como Edna, abusava da maquiagem. De certa forma, era uma garota muito bonita. Ela caminhava com um rebolado até um pouco exagerado.
— Jorge, obrigada por esperar! — ela falou sorridente.
Ela a encarou exibindo uma careta na face.
— Essa é a nova empregada? — ela questionou.
— Rose, querida — Edna falou. — Essa é a sua prima Escolástica. Se lembra dela?
— Ah sim...
Rose deu de ombros, não se importou e nem sequer cumprimentou Escolástica. Ela olhou para Jorge e sorriu.
— Vamos, Jorginho! Temos um longo dia no Shopping!
Rose puxou Jorge pela mão e o direcionou até a porta. O jovem sorriu para Escolástica e acenou, fazendo com que ela soltasse um leve suspiro.
— Escolástica! Vamos! Se troque e comece a trabalhar!
Escolástica franziu o cenho.
— Acabamos de chegar, eu não poderia nem ao menos descansar um pouco?
— Não me faça rir. Tem muito trabalho a ser feito nessa casa. Pare de reclamar e vá logo se trocar. Rosa irá te ajudar no que vai fazer. Vamos! Tire essas tralhas do meio de minha sala!
Escolástica grunhiu internamente. A sua tia realmente era odiosa. Não permitiu que nem ao menos descansasse depois de horas e horas na estrada. Era o cúmulo! A jovem subiu as escadas com sua mala sendo guiada por Rosa. A empregada gordinha lhe mostrou o pequeno quarto nos fundos, nas alas dos empregados.
O pequeno quarto, apesar do tamanho parecia ser confortável. Tinha um guarda-roupas e ao lado uma estante de madeira. Em uma parede havia um espelho grande com uma parte trincada no canto, a cama era de solteiro e estava bem arrumada. A janela era grande e dava para ver uma parte do pátio e as árvores na rua. Logo, ela avistou o uniforme em cima da cama, era uma roupa de empregada como a que Rosa estava usando.
— Não, não, não! Eu não vou suar isso! De forma alguma!
Rosa sorriu.
— A senhora Edna me pediu que você assinasse o contrato de trabalho.
— Contrato de trabalho?
Escolástica pegou nas mãos de Rosa uns papéis dentro de um envelope. Ela leu atentamente o que estava escrito e horrorizada com tudo.
— Ela realmente só paga isso? Essa mulher é horrível! — Escolástica ficou atenta ao tempo do contrato. — Três anos! Eu não quero ficar três anos nessa cidade! Como vocês aceitam umas coisas dessas?
— Bem... — Rosa encolheu os ombros. — Na necessidade aceitamos qualquer coisa. Se você fizer um trabalho bem feito ela pode aumentar o seu salário.
— Isso é horrível!
Escolástica queria chorar e a sua vontade era de rasgar toda aquela papelada e fugir daquele lugar.
— Eu vou esperar você lá em baixo. Não demore muito. Hoje a senhora Edna está muito impaciente.
A mulher saiu e fechou a porta do quarto após alertar. Escolástica jogou a papelada de lado e se deitou na cama. De forma alguma poderia aceitar aquelas condições. Ela pegou o seu celular em sua mochila e foi olhar as mensagens. Tinha várias. Passou um tempo respondendo os seus amigos e explicando o que aconteceu, principalmente falar o que significava SMS.
Passando algum tempo, vestiu a roupa azul de empregada com um avental branco com babados. Se olhou no espelho. Prendeu o cabelo em um rabo de cavalo, trazendo certo volume em seus cachos. Então era isso, iria começar a ser uma serviçal de sua tia por um salário medíocre. Ela não poderia aceitar aquilo. Por enquanto estaria fazendo todo aquele trabalho, mas até encontrar algo melhor que valorize o seu serviço. Nunca assinaria aquele contrato.
Escolástica desceu as escadas e se direcionou aos cômodos dos fundos. A cozinha tinha duas cozinheiras que já adiantava o jantar. Uma delas, uma senhora de idade, havia lhe preparado um lanche rápido e deixando em cima de uma mesa de madeira em outro cômodo, que meio que seria o lugar dos empregados.
— Deve estar com fome — ela falou. — Peço que coma rápido, iremos servir o jantar as sete e meia. Dona Edna terá convidados essa noite.
— Convidados? — Escolástica perguntou.
— Dona Edna adora visitas, frequentemente ela faz alguns jantares com pessoas bastante importantes — uma moça jovem lhe respondeu.
— Escolástica, se apresse, menina! — Rosa surgiu na porta da cozinha. — Coma logo e venha comigo. Precisamos deixar a sala de jantar brilhando.
Escolástica foi até o outro cômodo, uma sala de serviço com muitos equipamentos de limpeza como vassoura, esfregões e baldes, além de prateleiras com vários produtos. No meio estava uma pequena mesa de madeira onde os empregados se sentavam para se alimentar. A jovem encontrou um prato com uma fatia de bolo de milho e um pão, acompanhado por um copo de suco de laranja. Não era bem o que ela imaginava, já que àquela hora espera ao menos um almoço mais equilibrado, mesmo fora de horário.
Ela comeu sem reclamar, tentou ser a mais rápida possível. Ao passar novamente pela cozinha, agradeceu a cozinheira que se preocupou em lhe servir um lanche e ela foi direto a sala de jantar, fazer a limpeza junto com a Rosa.
Aquela casa parecia estar sempre limpa e com toda razão, a todo instante um empregado estava limpando um cômodo, parecia um trabalho sem fim. Após limpar o chão, a mesa e todas as cadeiras, Escolástica ajudou Rosa a colocar uma tolha nova na mesa e logo também foi encarregada de colher algumas flores para pôr em um vaso com água.
Escolástica foi até o jardim nos fundos. Era tudo tão gramado e verde, com alguns arbustos floridos e algumas árvores bem podadas. As roseiras eram diversas, de todas as cores e tipos, além de mais flores variadas também havia samambaias, palmeiras e cactos. Seria um paraíso para a sua mãe, apesar que Edna só possuir um jardim para impressionar as suas visitas.
Havia um jardineiro cuidando de uma roseira, o que Escolástica menos esperava era encontrar o seu pai por ali, observando a paisagem.
— Pai! — ela falou.
— Meu bem.
Ele a abraçou, ainda sentindo remorsos.
— Me perdoe, não era isso que eu queria para você.
Escolástica ficou em silêncio. Ela não queria mais brigar e nem mais questionar nada. No momento ela estaria seguindo aquela vida até pensar em algo melhor pra si, até surgir uma oportunidade de tirar seu pai e ela das mãos opressoras de sua tia.
— Pelo visto, você ficou com bem mais trabalho que eu — ele falou. — A sua tia está dormindo, então, o que me resta é só esperar.
— Bem, — Escolástica olhou para ele, tomando certa distância — eu preciso levar umas flores para pôr em um vaso. — Ela sorriu. — Vejo o senhor mais tarde.
Escolástica conseguiu algumas rosas com o jardineiro, bem simpático por sinal. Ela levou as flores em um jarro de água até a sala de jantar. Estava tudo pronto. Apesar de não parecer ter mais trabalho, Rosa lhe pediu para verificar a sala de estar, sair em busca de alguma desordem. Pelo visto, os empregados daquela casa eram muito perfeccionistas.
Ao chegar na sala, ela notou que Jorge estava lá em pé. Sorriu para ela enquanto guardava as mãos no bolso. Escolástica queria enfiar a cabeça em buraco de tanta vergonha. Ela estava horrível naquela roupa e toda suada.
— Escolástica? — ele falou. — Muito bom em revê-la. — Ele olhou bem para a roupa dela. — Nunca pensei que estaria trabalhando para sua tia. A Rose me contou que são parentes.
— Ela contou?
— Sim — ele assentiu. — Disse também que veio da capital.
Ele parecia muito curioso sobre ela, era perceptível em seus olhos o tamanho interesse.
— Ah sim. Eu morei a minha vida inteira lá. Aí... bem. Aconteceu algumas coisas.
— Eu imagino. Acredito também que deve estar cansada da viagem e do dia. Mas... talvez amanhã, se me permitir, poderia sair um pouco comigo e uns amigos. Vai amar conhecer a cidade.
Ela percebeu ele corar e ficar nervoso.
— Ah, perdoe o meu atrevimento — ele continuou. — Eu prometo que não é nada impudico. A Rose vai estar com a gente e como são primas, acredito que vai se sentir mais à vontade.
Escolástica não quis mencionar que sua prima e ela eram praticamente desconhecidas. A jovem sorriu. Não iria recusar um convite como aquele. Jorge parecia ser um cara legal e tudo o que ela precisava naquela cidade era uma pouco de distração.
— Tudo bem. Parece ser divertido.
Ele sorriu mostrando todos os dentes, era como se aquela fosse a melhor notícia do mundo.
— Então... Se quiser me passar seu telefone, para nos comunicar melhor seria gratificante.
Ela sorriu de certa forma que queria conter a graça. Jorge conversava como se fosse um velho. Talvez foi a educação que ele recebeu, não se sabe. Ela passou o número de seu celular para a alegria do jovem rapaz.
Naquele instante Rose desceu as escadas, estava com um outro vestido, mas não muito diferente do último. Ela encarou Escolástica não muito animada. O seu semblante demonstrava certo desprezo.
— Jorge, acho que esqueci uma sacola de compras no carro, poderia olhar pra mim? — ela pediu, com uma voz dengosa, quase infantilizada.
— Claro — Jorge assentiu.
Jorge deixou a sala. Rose encarou a prima com um olhar fuzilante.
— Então, priminha, vejo que mal chegou na cidade e já está arrastando asa para os garotos descentes.
— O que? — Escolástica franziu o cenho. — Não é nada disso que está pensando. Ele só está sendo gentil.
— Me poupe! Vocês da capital acham que podem ser os donos do mundo. Pois fique sabendo que o Jorge não é pra você! E fique longe dele!
Escolástica não conseguia entender.
— Por acaso vocês são namorados ou algo do tipo?
— Não, ainda não. Mas em breve seremos. — ela sorriu, convencida de que iria atingir esse objetivo.
— Certo, mas... Isso não te dá o direito de querer controlar a vida das pessoas. Se O Jorge quer ser o meu amigo, eu não vejo mal algum.
— O Jorge nunca iria querer ser amigo de uma pobretona feito você. Ainda por cima vestida de empregada. Se coloque em seu lugar! O Jorge é areia demais para você!
Escolástica cerrou um punho. Se controlava para não socar aquela garota. Antes mesmo que pudesse falar alguma coisa, a jovem loira jogou os cabelos pro lado e se direcionou até a porta.
— Ah! — Rose se interrompeu na porta. — Não se anime muito. Preciso de um serviço seu amanhã. Vários, na verdade. — ela sorriu, cinicamente.
Rose saiu em seguida. Ela havia escutado a sua conversa com Jorge e de toda forma queria atrapalhar o seu passeio de amanhã. Mas ela não iria. Escolástica iria fazer de tudo para estar presente e quebrar a cara de sua prima.
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