Capítulo II
Tomaram café na sacada. Era domingo.
Enquanto ele lia o jornal e o café esfriava dentro da xícara, ela olhava para a rua sorvendo o café com vontade. Sempre tinha gostado de café. O gosto quente e meio amargo tinha um gosto de "começar o dia" ou de "depois de almoço", e por isso ela se recusava a tomar café o dia inteiro como alguns colegas de trabalho, pois se fizesse isto, ele perderia o sentido, não teria mais gosto de "começar o dia", teria gosto de "dia inteiro", o que o tornaria comum, uma coisa banal. Assim, ela tomava diariamente apenas uma taça no café de manhã e um cafezinho depois do almoço, que sempre tinham um gosto de "início", o início da manhã ou da tarde, de mais um dia de trabalho ou de um dia de final de semana, dia de ler, de pensar ou dia de ir ao brique, tomar chimarrão na sacada, ouvir Bach.
Agora se deliciava com o gosto de "começar o domingo", para o qual ainda não tinha planejado nada e estava bem assim, pois se deliciava com a sensação de poder fazer do seu domingo o que quisesse. A única coisa que ela não se permitia era não fazer nada. Apesar de ter o fim de semana livre, ela tinha sempre a sensação de passar tempo demais na empresa. E os paralamas do sucesso retumbavam em seu ouvido: "Eu acordo p'ra trabalhar, eu durmo p'ra trabalhar, eu corro p'ra trabalhar". Hoje ela não era o "Capitão de Indústria", hoje ela podia caminhar no céu. Ela não tinha desaprendido, mas tinha que concordar que nem sempre tinha tempo, num mundo capitalista onde quem trabalha não tem tempo e quem tem tempo não tem dinheiro, com raras exceções. Talvez se tivesse casado com algum fazendeiro rico do interior. Sorriu ante a idéia. Na verdade jamais considerou realmente esta hipótese. Além disso, era cada vez mais difícil levar uma vida de "dondoca", uma espécie em extinção e nos últimos tempos até meio mal vista, out. Graças a Deus, pensou.
Já há muito tempo ela se admirou com a diferença que existia entre o modo com que os homens e as mulheres têm que considerar o futuro. Para uma mulher, existe sempre a outra oportunidade, a do casamento. Para os homens também, mas menos provável, a idéia de casar com a filha de um fazendeiro rico é mais uma piada do que uma alternativa. Ela sempre abominou a idéia do casamento como alternativa de vida. Quando pela primeira vez ponderou a idéia de ter seu futuro definido por uma outra pessoa, ou seja, estar ao lado de um homem num papel passivo, lhe pareceu fácil, uma vez que não teria que definir ou buscar coisas, mas por outro lado, covarde e arriscado. Significava que só teria dinheiro se ele tivesse, só conheceria lugares se ele para lá fosse ou quisesse que ela fosse, que só teria uma casa própria se ele pudesse comprá-la. Esta idéia lhe parecia completamente absurda. Mas vira muitas amigas que, na presença de alguma dificuldade, seja uma prova na faculdade ou uma derrota no vestibular, ou até mesmo por medo ao assumir um novo emprego, acabaram aceitando esta alternativa que, de qualquer forma estava lá, pronta, convidativa, mesmo que depois tenham continuado a fazer a sua vida, sentiam-se seguras que a outra alternativa estava lá, segura. Perder um emprego para uma mulher, que tem um marido e sabe que o seu dinheiro não segura a família, mas sim ajuda de modo que possam comprar alguma coisa extra, ou pôr o filho num colégio melhor, não é o mesmo que para um pai de família, para o qual o trabalho significa o sustento de muitos. Ela imaginava que ser homem e ter esta responsabilidade deveria assustar a muitos deles. Talvez fosse o que levava muitos homens a horrorizar-se com a idéia do casamento. Talvez fosse para muitos um desafio e por isso, interessante. Nunca tinha conversado com nenhum homem sobre isso, mas na verdade ela achava que poucos pensavam nisso, ou tomavam esta decisão na vida conscientes disso. Era uma coisa culturalmente definida, desde o princípio, e por isso só o sentimento despertado pela situação seja diferente. Alguns sentiriam vontade do desafio, ou medo da situação, ou até indiferença. Talvez os que têm medo sempre procurem mulheres mais velhas, ou independentes, para as quais eles não sejam "o arrimo da família". Ou talvez estas coisas sejam cada vez mais conscientes e por isto, o sentido das famílias esteja mudando.
Ela tinha decidido desde o princípio que jamais escolheria o casamento como alternativa, mas sim como complemento, e nunca como segurança, ou redundância para o caso de adversidade. Queria o amor independente disso. Queria poder decidir, e poder dizer "não" quando quisesse, mas ao mesmo tempo queria um relacionamento real, estável, não no sentido financeiro, mas no sentido sentimental. Mas depois no terceiro relacionamento ela sabia bem, que a partir do momento que duas pessoas moram juntas, elas têm uma porção de coisas práticas que as unem, queira-se ou não. E que qualquer separação implica em pequenos e grandes detalhes, desde CDs até um coração despedaçado (Em geral é apenas um, mas podem ser dois). E ela também sabia que estas coisas práticas levavam as pessoas a ponderar muitas vezes quando pensavam em separação, o que não era necessariamente ruim, pois não se deve pensar em acabar o relacionamento logo depois da primeira discussão idiota. Por outro lado também não tem sentido querer agüentar qualquer coisa para não ter que vender o apartamento que se comprou junto, ou porque só se tem um carro e não se sabe quem ficará com ele. Na verdade é tudo questão de bom-senso. E onde é o bom-senso mesmo?
Concentrou-se novamente na sua xícara de café e olhou para ele que lia e sentiu-se feliz quando seus olhos ergueram-se do jornal sorrindo. Sentiu nos olhos dele aquela cumplicidade que ela tanto prezava. Ele sabia que ela estava sentindo o gosto de "começar o domingo", supôs. Ou será que ela leu nos seus olhos sorridentes o que ela queria? Será que os olhos dele realmente manifestavam uma muda compreensão da teoria da xícara de café? Na verdade nem seria tão extraordinário, uma vez que ela já tinha lhe explicado esta sua teoria. Ele sabia que ela só tomava duas xícaras por dia, ou melhor, um café e um cafezinho. Ousou perguntar-lhe:
─ Sabe o que estou pensando? ─ E já quase se arrependeu. No fundo é uma pergunta estúpida.
Rindo ele respondeu que não tinha a menor idéia, mas esperava que ela estivesse pensando no quanto o amava. Ela se sentiu satisfeita com a resposta, mesmo que não tivesse nenhuma relação com a sua teoria sobre o café. E entrou em casa levando sua xícara vazia.
Moravam no décimo andar de um edifício em Porto Alegre. Da sacada ela podia ver o Guaíba e os outros tantos edifícios desorganizadamente espalhados pelo chão. Quanta gente! Gente que para ela nada significava, senão gente com fome, gente com direitos, gente que dorme. Pensava que seu edifício visto a partir de um outro ponto da cidade pareceria igualmente insignificante. E ela também. Mas porque haveria de querer mais que isto? Uma dentre tantos. Mas para ele ela não era uma entre tantos. Era Ela. E ele era Ele. E isto fazia a diferença.
Muitas vezes o sentimento de não ser importante, de ser apenas mais um ser no mundo a agonizara. Primeiro teve a fase de criança onde se pensa ser o centro do mundo. E depois o duro reconhecimento da própria insignificância, que para ela foi extremamente doída. Passava então horas imaginando que diferença faria para o mundo se ela desaparecesse? Não se permitia imaginar o que aconteceria se ela morresse, pois morria de medo da morte. Evitava pensamentos mórbidos uma vez que tendia à depressão. Uma vez aos treze anos entrou em uma depressão profunda por alguns dias nos quais não conseguia sequer comer. Isto foi depois da morte da avó querida. Até então os pais não tinham permitido que ela acompanhasse os enterros e ela ficava em casa enquanto os adultos sofriam por seus mortos. Desta forma, apesar de ter sido informada da morte de certos parentes, não conseguiu sentir o gosto da morte, porque ainda não a tinha encarado de forma real. Teve que fazê-lo na morte da avó e a visão da avó morta, pálida e imóvel no caixão a marcou de uma forma tão cruel, que nunca mais conseguiu livrar-se da idéia da morte. De não estar mais no mundo. Pegava-se pensando nas conseqüências, no impacto que a morte tem para o que morre e para os que ficam. A crueldade da morte era certamente maior para os vivos. O que morre, ou vai para algum lugar desconhecido e ela tinha dificuldades em acreditar nisto, ou não sente mais nada, o que em alguns casos pode ser até uma benção. Mas para os vivos, que aqui estão, que aqui ficam e que precisam viver com as lembranças do morto, com a falta que um ser querido faz, para estes a morte era terrível. E acabou tendo mais medo que alguns dos seus morresse que ela própria. Quando seus pais morreram, enfrentou a situação melhor que aos treze anos, quando a avó se despediu.
Agora pensava, enquanto lavava a cuia para preparar o chimarrão, que diferença faria para o seu chefe se ela sumisse? Ele teria que arrumar outra pessoa para substituí-la! E pensando nisso ela quase podia ver o sorriso malcriado de alguns colegas pensando no seu cargo. Para eles também faria diferença, pensou. Mas o que era importante, o que o distinguia de todas as outras pessoas, é que para ele faria muita diferença, se ela desaparecesse. Ele era quem a via no supermercado em meio a tantos outros rostos desconhecidos. E para os outros, ela pertencia aos rostos desconhecidos. Era o sobressair-se da massa, pelo menos para alguém.
Depois que seus pais tinham morrido, ela sofria com a idéia de não fazer muita diferença para o mundo. Seus pais certamente teriam sofrido, se ela não estivesse mais neste mundo. Ela tinha claro que algumas pessoas conseguiam se sobressair e entrar no coração dos outros de forma que a sua morte causasse comoção nacional, como por exemplo, com o Tancredo, o Airton Senna ou o Renato Russo. Será que ela se sentiria mais leve se soubesse que alguns milhões sofreriam se ela morresse? Horrorizou-se com a idéia. Já era suficientemente terrível imaginar o seu querido sofrendo com sua morte, imaginar alguns milhões sofrendo era absolutamente fora de questão. E foi para o computador decidida a escrever algumas linhas sobre sua teoria da xícara de café, feliz por ser uma simples desconhecida. O sorriso da morte era, agora, quase que zombeteiro.
Depois de escrever meia página em mais de meia hora, pensava qual teria sido a relação entre as vezes que apertou as teclas para escrever e a tecla de apagar. Talvez tivesse apertado a tecla de apagar três vezes mais que as outras. Ou talvez duas vezes mais. Que diferença faz? Não tinha ambições literárias. Queria apenas registrar uma teoria absurda sobre o gosto de "começar o dia" que tem o café. Tem mesmo? Os outros não entenderiam, concluiu. E se espantou. Porque estaria pensando nos outros. Teve realmente naquela meia hora ambições literárias e pensou que sua teoria da xícara de café poderia ter valor para os outros? A idéia lhe pareceu cômica e esdrúxula. Por outro lado, se nunca tivesse pensado que alguém poderia ler, não estaria escrevendo, ou escrevia para si? Estaria com medo de esquecer uma idéia que teve aos trinta anos? Não. Na verdade já achava que café tinha este gosto há alguns anos, mas só teorizou a idéia e pensou no assunto há alguns meses. Desde então aderiu a regra de um café e um cafezinho para não ferir o "gosto de começar o dia". Na verdade ela nunca refletiu sobre o fato de talvez estar ferindo a sua liberdade de tomar três cafés por dia. Esta idéia não lhe passou pela cabeça. Melhor assim. A gente tem que ter princípios e acreditar em algumas coisas, não é? E nada mais fácil que ter convicção quando não elaboramos contra-argumentos, logo deixemos nossa heroína sem este argumento, tomando seus dois cafés, desculpem, um café e um cafezinho, por dia.
Agora ele lia por sobre seus ombros as linhas que ela tinha formulado e reformulado algumas centenas de vezes e sorria. "Esta idéia me parece familiar", comentou. Mas é interessante vê-la escrita. Ela explicou-lhe que não sabia por que escrevia. Talvez para passar o tempo. Ou então para ver se a tal idéia, depois de materializada em papel ainda lhe parecia convincente, ou seja, ela escrevia para ela, para que fosse verdade, para que fosse lei. E ela acreditava. E ele admirava que ela acreditasse e vivesse uma coisa tão pequena de maneira tão ferrenha, tão determinada. Admirava-a por isso. E compreendia, apesar de ter uma outra opinião. Na verdade ele prezava a tal liberdade de poder tomar três ou quatro taças de café ao dia, ou quantas ele quisesse. Ao nosso herói foi permitido usar o argumento, do qual eu privei nossa heroína.
Ela, por sua vez, pensou que era até petulância imaginar que o que pensava era digno de ser escrito. Mal sabia a nossa heroína que seus pensamentos estavam sendo eternizados por mim aqui nesta folha de papel. Que eu a estava observando e que a morte sorria.
Terminaram o domingo com um orgasmo. Dividindo, como ela queria a respiração ofegante. Sorrindo adormeceram. Estavam felizes. Eram felizes. Eram estupidamente felizes. De uma felicidade tocante. E a morte sorria de maneira cruel. Como é boa a ignorância. O não saber certas coisas.
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