Vinho Amargo
A ideia das "férias perfeitas", ou mais especificamente "descanso perfeito", de Palermo com certeza não envolvia o Brasil, muito menos uma viagem longa numa embarcação nada confiável para supracitado local.
Não que o argentino odiasse o famoso país do Carnaval por conta de birras futebolísticas – como a maioria de seus compatriotas – na verdade, ele nunca tivera nada contra. Os brasileiros compartilhavam de seu ódio pela arrogância européia, remanescente do discurso branco colonizador, a única diferença sendo seu direcionamento a Portugal e não à Espanha. Porém, no final, todos os latinos tinham uma raiva em comum e um histórico de roubos para pedir prestação de contas. Ouro sujo, banhado no sangue de nativos e escravos. Para os algozes, simplesmente ouro.
Pensando bem, era até irônico, estar de volta ao seu continente de origem, bilionário com o derretimento de 90 toneladas de ouro roubados do Banco da Espanha. Permitia-se sorrir com isso, ele bem prometera repatriar o ouro num de seus discursos, enquanto atacava aquele assassino xenófobo (e também homofóbico, vale lembrar) de nome Gandía. Que Satanás o tenha longe de seu caminho quando descender ao inferno. Palermo nunca fora um crente, mas algo o dizia que sua morada na outra vida não seria o paraíso.
A paisagem da orla brasileira começava a se distinguir no horizonte, para a alegria dos integrantes do bando, exaustos da viagem. Nairóbi e Tóquio já faziam planos sobre o que fazer quando chegassem em terra firme, até Manila parecia se contagiar com a alegria das duas. Estocolmo segurava o pequeno e praticamente adormecido Cincinnati em seu colo, enquanto apontava para os contornos de Angra dos Reis e sorria para Denver. Professor e Lisboa conversavam num canto com o timoneiro, provavelmente acertando os detalhes e valores para seu silêncio. Pelas poucas informações que obtivera, estavam seguros desde que todos – sem exceções para o instável casalzinho – se mantivessem na linha. O recluso município brasileiro era realmente um paraíso fiscal para quem queria se esconder e seguir uma vidinha pacata. Nada de surpreendente, ele conhecia a fama do Brasil (e dos outros países sul-americanos) no exterior.
Rio parecia estar entretido numa conversa, interessante apenas para ele, com Matías, Helsinque acabara de se juntar à Nairóbi nos planos para aproveitar a ilha, Bogotá provavelmente estava dormindo em algum lugar, e Marselha... Bem, ele era um caso à parte. A maioria das vezes ninguém sabia onde estava. Uma de suas várias habilidades com certeza era comparável às dos ninjas, sumindo e aparecendo do nada, sem fazer qualquer barulho. O homem não era normal, mas Palermo até agradecia por conhecê-lo, afinal, era uma companhia quieta e sem julgamentos na época a qual sua maior sina era se embebedar em casamentos. Ao relembrar, o latino forçou seus olhos a fecharem, respirando fundo. Preferia afastar tais memórias.
Finalmente, a embarcação chegou a seu destino, aportando na marina privativa sob os gritos do grupo que mais parecia um bando de crianças. Impossível não se juntar à comemoração. Verdade seja dita, o plano do Professor era perfeito, elaborado e seguido à risca para garantir a segurança, e conforto, de todos. O hotel arranjado por ele era nada menos que um resort, com complexos de pequenos bangalôs espalhados pelas laterais da área central, onde uma impressionante piscina apresentava-se, convidativa para os loucos em questão. Tinha de dar essa vitória para Sérgio, era mesmo um gênio nessas horas, pois, além de tudo, a localidade era muito reservada. Um verdadeiro oásis em meio ao deserto verde, permita-se a metáfora.
Carregando uma bagagem simples, Palermo pisou na areia da praia, permitindo maravilhar-se pela belíssima paisagem. Quem sabe até poderia passar mais tempo do que prometera no Brasil, pensava consigo. Era estranho ver-se realmente feliz por algo, até mesmo animado, considerando como foram seus últimos anos. Sentia-se, pela primeira vez em muito tempo, leve. Havia cumprido seu dever, o assalto fora uma espécie de final pra história inacabada – ou melhor, interrompida drasticamente, uma mensagem póstuma àquele que um dia amara tão profundamente. Sendo sincero, talvez ainda amasse, no fundo, junto às memórias agridoces, e amaria até seu último suspiro. Romance trágico digno de Shakespeare, uma comparação a qual o amado adoraria ouvir se estivesse presente. Mais uma vez puxou o ar, fundo, enchendo os pulmões, e soltou lentamente. Auto-controle. Precisava disso.
Seguindo as ordens de Sérgio, caminhou junto ao bando, distanciando-se da marina mas não em direção ao hotel. Por que? Simples: o mesmo prometera uma surpresa a todos, com todo sua pose de professor, e pelo sorriso – o qual não conseguia disfarçar – em seu rosto, parecia ser algo bom. Ou aceitável, pelo menos.
Nunca confiaria em Sérgio, não como um dia pensou em fazer devido a pedidos de seu amado. Já era muito para ele tê-lo praticamente perdoado pela separação brusca de Andrés e depois por sua morte. Sendo sincero, ele livrara-o da última porque o geniozinho também sofrera demais pela perda, afinal, teria de admitir, seu falecido amado era sim um baita metido a herói das causas perdidas. Mas quanto à primeira... Bem, isso nunca aconteceria, passara anos o suficiente se afogando em mágoas para perdoar, e de qualquer forma, o único capaz de lhe julgar nunca mais estaria ao seu lado.
Nunca.
Maldita palavra, forte o bastante para calar os gritos na garganta quando o contrário se mostra. Talvez fosse por isso que não conseguiu falar nada quando o que só poderia chamar de impossível dispôs-se à sua frente, com aquele bendito chapéu e vestido como se estivesse pronto para uma convenção de executivos. Uma aparição fantasmagórica, saída de seus pesadelos e sonhos ilusórios (que sempre terminam em choro), tão lindo quanto no dia em que se foi – sua mente precisava reforçar. Ao seu redor, todos pareciam embasbacados e sem reação, até mesmo Lisboa, quem diria que seu astuto namorado conseguira esconder até dela essa surpresa.
Ninguém ousava dizer uma palavra em sã consciência, não havia o quê dizer. Dentro da mente de Palermo, um mantra de "Andrés, Andrés, Andrés, Andrés..." distendia-se sem prazo para acabar. De repente, ele não era mais Palermo, o arrogante argentino, com a visão de um dos olhos prejudicada, líder do assalto ao Banco da Espanha; era apenas Martín Berrote, o idiota que teve o coração despedaçado pelo melhor amigo sete anos atrás, que passara seus dias num muquifo lamentando sua vida enquanto bebia até esquecer ou jurar a morte. Fraco, quebrado, preso em memórias, odiando a todos e principalmente a si por ser tão deprimente e descartável.
E numa fração de segundos, cansava de ser tudo isso, libertando suas dores sobre o responsável pela maioria delas. Ele nem registrou quando partiu para cima de Andrés, derrubando-o e desferindo um soco certeiro no nariz do espanhol enquanto gritava palavras que nem mesmo seu cérebro distinguia na tamanha confusão mental, pressionando-o ainda mais contra o solo de areia. Pôde perceber quando Bogotá e Helsinque tiraram-no de cima do ex-melhor amigo, segurando-o à medida que o Professor e Marselha ajudavam o atacado. Imediatamente, foi afastado da situação, ouvindo ao fundo as palavras de choque e uns risos disfarçados de Tóquio. Claro, ela era a única a ver graça em tamanha tragédia.
Por ordens obviamente vindas de Sérgio, ele foi direcionado ao seu bangalô, o terceiro no lado direito do complexo e deixado lá, para se acalmar e supostamente refletir. Pura conversa fiada. Martín não tinha qualquer vontade de refletir, sabia bem o que tinha feito, estava longe de se arrepender, e se acalmar era impossível.
Andrés estava vivo, que alegria! Seus fantasmas do passado decidiram sair dos seus pesadelos e assombrá-lo enquanto acordado, e junto deles trouxeram o gosto de bile na boca, a ardência no peito. Tudo de novo, talvez pior.
À noite, preferiu se ausentar do jantar em grupo, apenas confiscando uma garrafa de vinho sorrateiramente – se não fosse por Manila, que viu mas deixou-o passar, imaginando que o mesmo precisasse mais do que os outros – para beber na privacidade de seu temporário lar, de samba canção, um roupão mal amarrado, e o som no fundo tocando uma balada brasileira tão sofrida quanto seu ouvinte.
Para lembrar os velhos tempos, o vinho também era amargo.
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Eu espero que não esteja ruim, mas, caso tenham críticas... Estou aberta a tantas. Enfim, comentários são bem vindos.
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