Sofrimento em Tons de Azul
Esta não era a melhor maneira de passar a noite, Palermo tinha certeza. Porém, à medida que o líquido amargo raspava sua garganta e o torpor do álcool afetava seu raciocínio lógico, a percepção do certo e errado tornava-se cada vez mais turva.
Ele não fazia ideia de porquê o resort decidira abusar da playlist de sofrimento para entretenimento noturno. A música de fundo fazia-o lembrar das noites argentinas, carregadas nas pernas trôpegas de um bêbado indo ladeira abaixo naquelas ruas do bairro boêmio. Não que sentisse tanta falta, afinal, sua vida à época era tão cinza quanto as pedras do caminho, mas estava quase igual ao atualmente. As cores continuavam acinzentadas, contendo agora um pouco de azul, como as lágrimas que as crianças pintam num desenho.
Riu sozinho, sem qualquer graça ou ânimo. Já estava bêbado o bastante.
O bangalô possuía uma decoração tropical, conceito aberto com paredes divisórias apenas para o banheiro onde o objeto mais reconfortante era uma banheira, e a ideia de se deixar levar num longo banho quente – e talvez até adormecer numa nuvem de fumaça e torpor alcoólico – não parecia ruim. Precisava relaxar, acordar no dia seguinte com uma provável ressaca, e depois decidiria o que fazer de sua vida ironicamente trágica digna do maldito Shakespeare (o qual ele esperava estar mais morto do que o ex-melhor amigo).
Porém, sua ideia e chances de uma noite tranquila – dentro do possível – esvaíram-se quando ouviu a porta bater, anunciando a invasão de sua privacidade. Ele nem precisava virar-se para saber quem era, talvez depois de tantos anos houvesse finalmente aprendido a sentir a aura carregada daquela presença e a quietude, como o frio que lhe subia a espinha só de ouvir o ar saindo dos pulmões do outro em profundo suspiro. Andrés de Fonollosa, em carne, osso e diabólica beleza divina pela qual Martín mordia os lábios e pesava suas opções, decidindo se tinha coragem para lhe encarar.
Com agilidade atrapalhada pelo teor de álcool ingerido, virou-se para onde quem poderia chamar de algoz estava. Analisando, ele nem havia entrado 100% no bangalô. Permanecia à porta, olhando atentamente para Martín, sem sorrisos, sem raiva, expressão neutra – com certeza o pior de tudo – como se esperasse o mesmo dar conta de sua presença. E isso alarmava o engenheiro como um aviso, fugir ou confrontar, mas a primeira opção inexistia. Uma ótima lição sobre nunca esquecer de trancar a porta.
— O que você quer? – perguntou, quebrando o silêncio após engolir em seco e tomar coragem, optando por se apoiar contra o batente da porta do banheiro.
Com isso, o espanhol finalmente esboçou alguma expressão facial: um sorriso. E, maldito seja, Martín havia esquecido o quão estonteante ele ficava ao sorrir. — Pelo visto já aprendeu o caminho da adega, não? – ignorou a pergunta, fazendo menção à garrafa de vinho que carregava em mãos. Algo tão previsível quanto a repentina atitude do argentino de tomar um gole, apenas para disfarçar a ansiedade.
— Si – foi a resposta curta que deixou seus lábios, praticamente num engasgo, mas soube disfarçar bem com um amargo sorriso. — Mas se veio aqui falar sobre meu relacionamento com a adega de vinhos, prefiro que faça isso outra hora. Estou ocupado no momento.
Andrés continuava sorrindo, irritante. — Au contraire, meu querido amigo... – Palermo praticamente tremeu com o apelido, mas não deixou transparecer. O álcool tinha de lhe permitir um resto de dignidade, ainda que pouca. — Vim aqui apenas endereçar nosso reencontro de mais cedo, afinal... Eu realmente não esperava um soco. Não de você.
Observando com atenção o rosto do artista, pôde ver como um hematoma marcava a pele ao redor do nariz, alcançando o canto do olho direito. Não havia quebrado – abençoado seja o Deus no qual não acreditava – mas com certeza deixaria uma bonita lembrança por algum tempo. — Esperava o quê, então? Um parabéns por enganar a todos, menos seu irmão, e trapacear a morte? Uma salva de palmas? – forçou-se a rir com o próprio sarcasmo, aprendera a usá-lo como arma quando precisava.
O riso foi espelhado no rosto de Andrés, mas não alcançou seus olhos. Era nítido como não vira graça nenhuma no sarcasmo do (ex) melhor amigo. — Martín, yo te conozco... Podia esperar isso da Nairóbi ou até mesmo da instável Tóquio, mas não de meu melhor amigo.
Palermo também havia esquecido como seu real nome soava na voz do espanhol, como as cordas vocais pareciam reverberar e tornar cada letra um verdadeiro mantra. Era sagrado. Fazia-o se sentir na presença de um deus, digno de sacrifícios os quais, caso fosse oito anos atrás, ele obviamente prontificaria-se a realizar. Mas não estavam no passado, isso nunca seria um de seus sonhos, e sua pose tinha de permanecer inabalável.
Dispôs-se a andar, odiando o quanto o outro ainda possuía efeito sobre si e portanto lhe dando as costas. Andrés, por vez, apenas moveu seu rosto, seguindo-o com o olhar, mas não saiu de seu ponto. Uma perfeita estátua.
— Não me chame de Martín – enfim formulou uma resposta, rosnando, mas sem lhe dar atenção. O olhar estava fixo no exterior, na vista do mar que a porta da sacada permitia. Nunca entendera a necessidade de varandas numa construção térrea, pretendia focar os pensamentos nisso para ignorar a incômoda presença. — Também não se refira a mim como "melhor amigo". Você perdeu esse direito quando me deixou naquele maldito monastério. Sou Palermo, a partir de agora, para você.
Ouviu Andrés rir, e podia imaginar como jogava sua cabeça para trás naquele típico jeito que apenas ele possuía quando se deixava invadir pelo riso, fosse este irônico ou sincero. — Okay, Palermo então... – mais uma vez, Martín praguejava mentalmente pela voz do outro possuir charmosa cadência até mesmo ao pronunciar o apelido. — Parece que não te reconheço mais. Em todos esses anos, o que aconteceu?
E numa questão de segundos, toda a raiva, mágoa e dor que carregava em seu peito tornaram-se impossíveis de esconder. A explosão veio em sua forma menos violenta, com passos rápidos que o levaram até o ex-melhor amigo – que já havia se dirigido até o centro do bangalô nesse meio tempo – deixando-os cara a cara. — O QUE ACONTECEU?!?! Você tem a coragem de vir aqui, anos após me dar tudo naquela maldita noite para em questão de segundos arrancar e quebrar meu coração COMO SE EU NÃO FOSSE NADA?! COMO SE EU FOSSE A PORRA DE UMA DE SUAS MULHERES?! – o grito era praticamente animalesco, resultado de anos de dor juntos de inesperada coragem ganha com a dose de álcool fervendo seu sangue. Pela proximidade entre eles, não seria nada estranho se estivesse a milímetros de cuspir na cara do espanhol. — Você não tem um jodido derecho de perguntar o que aconteceu depois do que VOCÊ fez! Eu lhe amava, cabrón, eu lhe idolatrava como um Deus e você teve a audácia de mentir en mi puta cara!
Independentemente de quantas acusações fossem jogadas contra si, o pintor permanecia inabalável. — Cariño, realmente pensas até hoje que eu menti naquela noite? Por favor, eu não sou um mentiroso.
Martín odiava o tom de pena na voz e na feição de Andrés, tanto quanto odiava as lágrimas que sentia formarem-se em seus próprios olhos. Era até ridículo o confronto. Martín Berrote, trajado apenas com um roupão mal amarrado para esconder sua semi-nudez, uma garrafa de vinho na mão e um olhar maníaco no rosto; enquanto que Andrés de Fonollosa permanecia em sua plena elegância (com exceção do hematoma), o mesmo terno de antes, levemente amarrotado e sujo de areia por conta das circunstâncias, e uma compaixão incômoda expressa no olhar. Perfeitamente odioso.
— Pode não ser um mentiroso, mas você mesmo disse. Noventa e nove porcento. E eu conheço suas circunstâncias – as palavras saíram num grunhido. A raiva já se dissipava, dando lugar ao torpor do álcool e ao vazio da mágoa. Seu corpo tremia, idiota, fraquejava logo no derradeiro momento.
O espanhol olhava-o com pena e (talvez) uma pequena porcentagem de carinho, mas o engenheiro não se permitia sonhar. De repente, aqueles dedos calejados das pinturas, dos quais tanto sentira falta, tocaram sua face. Leves, como se Martín fosse um pequeno vaso de cerâmica e temesse quebrá-lo, os dígitos trilharam suas lágrimas e desceram até seu queixo, segurando-o para que a troca de olhares não fosse quebrada. — Mar- Palermo... – corrigiu-se à tempo, ignorante ao modo como o corpo do outro paralisava diante de si. — Até hoje não entendeu minhas palavras... Um gênio como é, não soube interpretá-las... Sinto muito, mas, não serei eu a lhe dar sua resposta, meu sábio engenheiro.
E tão repentino como veio, o toque se foi; e com ele, toda a paralisia de Martín, contorcida em raiva. Humilhado. Era assim que se sentia, e conhecia por demais o sentimento. — Vá embora – ordenou, dando-lhe as costas de novo, para que não visse as novas lágrimas que ardiam em seus olhos.
— Palermo...
— Eu disse, VÁ EMBORA! – interrompeu-o. — AGORA, Berlim.
O apelido deixou seus lábios pela primeira vez na vida, tão cruel quanto o barulho de porta batendo que se seguiu ao acesso de raiva. Finalmente sozinho, deu permissão às lágrimas para rolarem, salgando o rosto, e em modo automático, trancou-se no bangalô como antes deveria ter feito. A garrafa de vinho já esvaziara no intercurso daquela discussão então jogou-a num canto qualquer, ignorando seu espatifar. Lá fora, a música continuava. Azul da Cor do Mar, Tim Maia; podia reconhecer o clássico que ouvira até mesmo em noites da sua terra natal, e por isso sorriu – ainda sem qualquer ânimo. O cantor estava certo, na vida um nasce para sofrer, enquanto o outro ri.
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Oh... Eu bem digo, as coisas pioram antes de melhorar. Ou pioram o tempo todo. Mentira, essa é apenas a montanha-russa da vida, acostumem-se. Comentários são bem vindos. Eu espero que tenham escutado a música enquanto liam. ;)
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