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Doses de Café e Vinho (parte I)


O dia seguinte é sempre pior. Ele sabia disso muito bem. Não tanto por experiência própria, só havia abusado na bebida em breve período de sua juventude quando a rebeldia e a raiva falavam mais alto, mas sim pelas inúmeras vezes as quais vira o melhor amigo (ou seria mais certo "ex-melhor amigo"?) embriagar-se, desrespeitando quaisquer limites. E era por isso mesmo que não estranhou a demora de Martín em comparecer ao café da manhã.

Seu irmão havia cismado de ter um momento em família, e nada melhor do que unir todos os espíritos mal-humorados na primeira e mais importante refeição do dia. Se lhe permitisse a palavra, era uma péssima ideia, mas Sérgio era conhecido por sua teimosia – que provavelmente puxara do mais velho, haveria de admitir. De todo o modo, a grande mesa estava posta e o buffet estendia-se exclusivamente ao seu dispor, para a alegria dos que mais pareciam famintos num deserto. Não fora tão difícil assim convencer a gerência do hotel e seus funcionários a lhes darem uma área reservada. Como dizem; "nada que dinheiro não resolva". Nessas horas, o Brasil quase lhe parecia um paraíso fiscal como a Suíça ou as Ilhas Cayman.

Às exatas dez da manhã, a única alma faltante surgiu, trajando uma blusa de manga longa mal abotoada e meio velha junto de um jeans preto cujo único favorecimento era marcar a musculatura de seu corpo. Berlim olhava-o por cima do jornal, fingindo não notar sua presença. A falsa ignorância era necessária. O 'intercurso' da noite anterior deixara claro que Martín, quer dizer, Palermo, não queria conversa com ele (por hora, pelo menos) e definitivamente desprezava sua sobrevivência, ou assim fazia parecer.

— Dia, Palermo! Finalmente a bela adormecida resolveu aparecer! – a voz de Nairóbi foi a primeira ouvida no ambiente recém silencioso, endereçando a chegada com um tom irônico mas destilando humor. Andrés tinha de dar pontos à ela, tinha coragem de interagir com o argentino em plena manhã pós-embriaguez.

— La concha de tu madre, Nairóbi! – foi a resposta arrastada do engenheiro, não surpreendendo em nada a morena muito menos o artista, que ainda o observava sobre o jornal. Os olhos arregalados vieram apenas de Mónica, agora ocupada em tapar os ouvidos do filho enquanto o mesmo sujava-se ao comer iogurte, e do Professor, pois aparentemente a sonhada paz era mais difícil que o planejado.

Em compensação, Martín parecia um tanto quando despreocupado com a opinião geral, como sempre, sentando-se no único lugar vazio ao lado de Bogotá e roubando uma torrada do prato de alguém. As olheiras abaixo de seus olhos denotavam a péssima noite e seus movimentos ainda trôpegos entregavam a ressaca até aos mais desatentos do grupo. À exemplo; Marselha, que entretia-se alimentando o furão de nome Sofía, tão alheio à observação geral e minuciosa de certo artista quanto o engenheiro, principal alvo, no momento enchendo-se de doses nada normais de leite.

— Berlim – como imaginável, o novo silêncio haveria de ser quebrado por Tóquio, sempre disposta a fazer uma observação desnecessária. — Você tem que vestir terno até pra um café da manhã, ahm?

Previsível, riu-se o espanhol, tomando seu tempo para fechar seu jornal e lhe dirigir o olhar. — Claramente, minha cara senhorita Tóquio. Se bem lembra, eu fui de manter meu nível – respondeu, disfarçando certo veneno – básico de suas interações com a jovem – com extrema cortesia. — Ao contrário da maioria absoluta aqui, incluindo você.

— Hijo de... – o xingamento foi silenciado pelo falso e ameaçador sorriso da moça, para a alegria de Estocolmo, que já parecia aflita com o nível da conversa que se distendia diante do pequeno Cincinnati. — Não sente calor, no? Ou sua temperatura corporal ainda é a de um cadáver? Não estamos mais na Espanha, isso aqui é o paraíso tropical!

— O coração dele é gelado o suficiente pra congelar o corpo todo, Tóquio, no te preocupes – antes que o espanhol pudesse destilar nova dose de veneno em resposta, as palavras deixaram as bocas de Martín, surpreendendo a todos e calando os pequenos risos.

As atenções agora destinavam-se à antiga dupla de melhores amigos, então dispostos como inimigos nesta nova conversa. O Fonollosa estaria mentindo se dissesse que esperava isso de Martín, nunca em sã consciência esperaria, mas verdade seja dita, ele já nem mais conhecia o engenheiro como um dia jurara conhecer. As palavras foram cruéis, incomodando além do que gostaria de admitir a si, podia sentir sua mão tremer, em lembrança de tempos sobre os quais não gostaria de ter qualquer memória.

Mordeu os lábios, lenta e ferozmente, fixando-se no argentino que, por sua vez, mal lhe designava o olhar, entretido com novo copo de leite. E como um lobo à espera do momento certo para ataque, Andrés aproximou a xícara de sua boca. Era um perfeito cavalheiro, aquele lobo sob pele de cordeiro que tanto falam. — Creio que entre minhas cinco esposas, nenhuma delas reclamou sobre eu ser frio... Ao contrário, na verdade! – o comentário foi oferecido calmamente enquanto tomava um gole de café, amargo e frio pelo esquecimento, arregalando mais uma vez os olhos do irmão. — Mas, você não saberia dizer, claro... Passou todas as cerimônias bebendo como se não houvesse amanhã e se fazendo de ridículo pelo tempo subsequente.

E estava destilado o veneno, lento como peçonha de cobra e de efeito tão rápido quanto Andrés planejara, forçando o argentino a bater com as palmas sobre a mesa e erguer-se, deixando passar nada além de alguns segundos – provavelmente para controlar qualquer tipo de reação drástica – antes de deixar o ambiente, sob os gritos do Professor que insistia na sua volta até Lisboa sinalizar que o deixasse ir.

Não havia nada a se fazer.

— Bien... Se me dão licença, eu vou pegar um sol. Essa praia maravilhosa está me chamando – Tóquio anunciou, quebrando mais uma vez a tensão do silêncio absoluto que se instalara.

— Eu vou com você! – Rio foi rápido em acrescentar, seguindo-a quase como um cachorrinho, um tanto ansioso por deixar para trás o péssimo clima do café da manhã.

Enquanto isso, o resto parecia escolher qual desculpa usariam para se dispersar. Estocolmo e Denver tinham o filho para cuidar e levar à piscina, Nairóbi queria arrastar Helsinque para algum passeio, Manila, Matías e Bogotá já haviam desistido da reunião muito antes, e Marselha com certeza fazia uso da solene ignorância ao mundo exterior enquanto alimentava seu pequeno animal de estimação. Sérgio, por vez, massageava a têmpora, estressado e ansioso, tendo seu braço acariciado por Raquel, disposta a oferecer palavras de conforto e conselhos ao namorado. Andrés, como o perfeito cavalheiro que sempre dizia ser, continuava com seu jornal.  



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