Irina seguiu Isaac em posse da taça que fora dele. Assistia-o em silêncio, sendo sua maior função a de garantir que o irmão não passasse dos limites na bebida e desse algum vexame. Tinha certeza que a mãe chamaria sua atenção caso isso acontecesse e falaria sem parar sobre o evento quando retornassem para casa.
Naquele momento, Beatriz provavelmente continuava junto de Cornélio Melquiades, procurando brechas para entrar em alguma conversa relevante dos bruxos em volta do líder do Clã. Entre um e outro, preferia ficar com Isaac.
— Ou acaba de encontrar companheiros mais interessantes do que eu?
Após a fala de Isaac, Irina teve vontade de levar a mão em direção ao rosto, sentindo-o esquentar um pouco, no entanto, somente parou ao lado do irmão, percebendo os olhares dos três homens fixarem-se sobre ele.
— Não era nenhum relato de contrabando, espero — um dos bruxos zombou junto de uma gargalhada chamativa, fazendo uma ou outra pessoa do grande grupo logo atrás olhar de relance para eles.
— Você nunca se importou com a procedência de nenhum de meus tecidos, Katsaros, o que o fez mudar de ideia? — Isaac provocou, movendo a mão no ar, parecendo em busca de algo. Ao invés de passar-lhe a taça, a irmã aproximou-se, fazendo o possível para não dar um beliscão no braço dele ou o que fosse para que se comportasse.
Irina já havia visto antes aquele bruxo que Isaac decidira provocar e, pelo nome, sabia da rivalidade velada entre Katsaros e o irmão. Ambos possuíam o mesmo interesse de ingressar no Conselho e aparentemente usavam de suas melhores armas para consegui-lo. Mesmo que não conhecesse o homem, podia ter certeza de que ele estava sendo mais bem-sucedido do que Isaac.
Ela relanceou os olhos pelos outros dois bruxos, vendo Eduardo Paduletto aproveitar que o foco tinha saído dele para se retirar discretamente, enquanto o outro tomava o tempo para encará-la. Irina susteve o olhar, sabendo que era um pouco mais demorado do que o decoro ditava, mas o desconhecido pareceu não se intimidar com isso. Por fim, ele sorriu para ela e, parecendo sem jeito, desviou os olhos novamente para o amigo.
— Contrabandeado ou não, não é mais do que sua obrigação de oferecer um material de boa qualidade — Katsaros retrucou, um sorriso brincando pelo rosto. — Mas acredito que nem isso consegue cumprir, pelo que ouvi dizer de algumas pessoas...
— Fico feliz de saber isso. Principalmente ao ver como meu tecido cai perfeitamente bem nas curvas de sua esposa.
Irina se engasgou com a própria saliva e começou a tossir, usando daquele artifício para que Isaac prestasse pelo menos um pouco de atenção nela. Pressionou um dos cantos dos lábios, usando da intimidade para passar o recado. Torcia para que o irmão estivesse num estado em que ainda pudesse compreender a mensagem silenciosa.
— Vamos, meu amigo, acredito ser melhor procurarmos Rebeka e companhias mais educadas. — Katsaros parecia lutar para controlar a própria raiva, porém, diferente de Isaac, sabia como se portar.
Katsaros e o amigo retiraram-se sutilmente, com o amigo de Katsaros despedindo-se de Irina com um aceno de cabeça e quase não sendo correspondido de tanto que ela estava tomada pela raiva. Logo não restou mais ninguém ao redor dos Gutiérrez.
— Não seja intrometida, Irina, não percebe que era a oportunidade de tirar aquele sorrisinho imbecil da cara dele? — Isaac resmungou, abaixando um pouco o rosto para falar perto do ouvido da irmã.
Percebendo que ele estava prestes a pedir mais uma vez para que devolvesse a taça, Irina engoliu o vinho em um gole. Viu-o fazer o mesmo movimento que ela com o canto dos lábios, demonstrando irritação.
— Se a sua intenção nesse lugar é fazer alianças, Isaac, ser desagradável não irá levá-lo a lugar nenhum.
Isaac bufou irritado e moveu a mão para um lacaio, pedindo uma nova bebida. Irina suspirou, percebendo que sua tarefa de tentar deixar o irmão na linha não renderia nada além de cansaço.
***
O evento na residência dos Melquiades terminou um pouco mais cedo para os Gutiérrez. Enquanto os demais provavelmente continuavam com suas bajulações, a mãe e os dois filhos encontravam-se dentro da única carruagem da família, chacoalhando de volta para casa.
Beatriz e Irina encaravam Isaac no assento oposto ao delas, tendo caído no sono não por ter que ouvir a mãe tagarelar sobre as fofocas que ouvira, mas por efeito da bebida. E era exatamente por causa dele que se retiraram mais cedo.
— Por que não fez seu irmão perceber que estava passando dos limites? — Beatriz questionou, o desgosto transparecendo enquanto abanava a cabeça, censurando a postura do filho mais velho.
— Eu tentei. Mas não é como se Isaac ouvisse alguém além da senhora — Irina retrucou, esfregando as mãos numa tentativa de aquecê-las. Mesmo de luvas, o ar frio da noite entrava pela fresta da janela, pois a mãe sempre reclamava de enjoos quando andavam de carruagem naquelas ruas esburacadas.
— Você deveria ter sido mais incisiva. Se sempre faz o possível e o impossível por Ezequiel, por que não pode fazer o mesmo por Isaac? — Beatriz devolveu com outra pergunta e a filha moveu a língua dentro da boca e o canto dos lábios foi junto, numa tentativa de engolir a resposta que queria dar. — Não faça essa cara, Isaac é seu irmão tanto quanto Ezequiel e também merece sua atenção.
— Irei me lembrar disso na próxima vez — a filha disse por fim, soltando o ar lentamente.
Irina tentou desligar a mente do barulho ao redor, sabendo que a mãe continuaria a falar, fosse dando novas indicações do que ela devia fazer ou retornando ao que ouvira e vira no evento. Fitou o irmão, o rosto encostado contra a lateral da carruagem e tendo certeza de que ele acordaria com uma dor terrível por dormir naquela posição.
— Você viu como o filho mais velho dos Paduletto se comporta? — Ela finalmente voltou a ouvir a voz da mãe, que continuou aquele tempo todo entrando por seus ouvidos e não sendo processada. — Sei que viu, eu conseguia enxergar vocês de longe. Ele é um exemplo de rapaz! Tenho certeza que possui grandes chances de ser eleito para os Altos Membros. Quem diria não a um Paduletto e ainda mais um como ele? — Riu para si mesma. — Isaac deveria aproveitar a convivência para aprender a se portar melhor.
— A senhora não acha que ainda é um pouco cedo para Isaac tentar entrar na política? Paduletto também é jovem, mas tem uma certa influência, então possui mais chances...
— Bobagem, querida. Seu irmão tem tantas chances quanto os demais. — Beatriz elevou os olhos cinzentos pintados por um certo desgosto na direção do filho. — Basta ele aprender a se portar feito um homem digno. — Novamente abanou a cabeça. — Mãe-misericordiosa, ele estava em um evento de Cornélio Melquiades, não em uma taberna com Estevão!
Irina preferiu nem comentar que quem costumava frequentar tabernas era o próprio Isaac, não Estevão, o segundo filho dos Gutiérrez e a quem Beatriz fazia questão de ignorar a existência — a não ser que fosse para maldizê-lo — desde que ele saíra de casa. Encolheu-se contra o banco, ainda esfregando uma mão contra a outra e conseguindo pouco sucesso para aquecê-las. Mais uma vez deixou que a voz da mãe entrasse pelos seus ouvidos e não fosse realmente processada. Tudo o que precisava era de uma xícara de chá e de uma roupa mais quente, não de um falatório na cabeça.
***
Após o alarde que foi o retorno de mãe e filhos, a residência dos Gutiérrez voltou a ficar em silêncio. Todos tiveram uma ceia tardia — já que, se foi servido alguma comida no evento dos Melquiades, não ficaram tempo o suficiente para saber — e então fizeram seus rituais para se retirarem para a cama.
Irina não conseguiu falar com Ezequiel desde que voltara, sabendo que o efeito do último preparado trazido pelo Dr. Salazarte era a sonolência e fazendo-o dormir mais cedo. Às vezes ele acordava atormentado pelos sonhos entre onze e meia-noite e quando isso não acontecia o horário era trocado pela manhã.
Em certas noites, ela se sentava no divã e esperava, adormecendo por lá mesmo e voltando para o próprio quarto no meio da noite, e retornando no início da manhã, em posse de seu diário. Em outras, Ezequiel se agitava e ela tentava acalmá-lo antes que começasse a gritar.
Depois de ter trocado o vestido de baile para as roupas de dormir, Irina dispensou a criada para que descansasse e desceu até a cozinha, preparando ela mesma um pouco de chá. Sabia como o irmão adorava camomila com malaleuca e colocou duas xícaras sobre a bandeja, subindo as escadas novamente para o corredor dos quartos junto de uma vela na outra mão.
Ao chegar na porta do quarto de Ezequiel, a empurrou com o quadril para abri-la e entrou. Qualquer relógio estava fora de vista e não fazia ideia de que horas eram, mas o irmão se revirava na cama, um dos lençóis despencando em direção ao chão e o outro sendo amassado com força por uma das mãos. Irina correu para deixar os objetos sobre a mesa de cabeceira e tentar acordá-lo.
— Respire, sou apenas eu — ela disse assim que viu os olhos castanhos se abrirem de súbito. — Nós estamos no seu quarto e eu estou aqui com você, respire.
Ezequiel se colocou sentado, fazendo-a se afastar rapidamente para que não tomasse uma cabeçada sem querer. Enquanto suas costas eram afagadas pela irmã, em uma sequência de gestos que ela criou para tentar fazê-lo tomar consciência de onde estava e que ela estava ali, ele puxou a gola da roupa de dormir para baixo, aproximando-se da vela para poder ver melhor.
Não havia nada além da pele pálida com algumas pintas e a mancha marrom no lado esquerdo do peito. Percebendo que não havia nada fora do normal, Ezequiel soltou uma respiração cansada e largou a gola da camisa.
— Beba um pouco, aqui. — Irina entregou-lhe uma das xícaras. Ao perceber como o objeto tremia na mão dele, segurou-a com uma das suas. — Nada daquilo é real.
— Eu sei... — ele murmurou. — Eu vou me acalmar, não se preocupe.
Sabendo das preocupações da irmã, Ezequiel sempre repetia a mesma frase para tentar mostrar que ficaria bem. Não havia nada além das palavras vazias, pois Irina o conhecia tão bem que poderia ver a ansiedade por trás dos gestos.
— Nada mudou de novo? — ela inquiriu e viu-o tomar um longo gole do chá.
Ele balançou a cabeça em negativa e fechou os olhos. Bebeu mais um gole antes de voltar a falar:
— Eu não aguento mais! Eu não sei se é alguma mensagem, profecia, se é um problema comigo, eu não sei! — ele exclamou e soltou uma respiração ruidosa pelo nariz, forçando-se a manter a voz em um tom baixo. — Eu não aguento mais não saber o que isso quer dizer.
Foram tantas vezes que aquela cena se repetiu que Irina sequer precisava perguntar para saber detalhes sobre o pesadelo do irmão.
A primeira parte, e mais suave, finalizava com Ezequiel caindo no mar, para então encontrar-se em uma floresta de árvores tão densas que parecia sempre noite. Se pudesse consultar pelo céu, ele não poderia saber se era dia ou não, pois parecia ser as duas coisas ao mesmo tempo.
Ezequiel seguia em frente, pois aparentava ser o único caminho possível a ser seguido, e parava às margens de um rio que refletia o céu misterioso. Era uma mistura de cinza, branco e preto. Ele olhava para as águas e percebia ranhuras semelhantes a um espelho partido. Curioso, ajoelhava-se na relva seca e mergulhava a mão na água. Ela saía molhada com sangue de dentro do rio.
Desesperado, afastava-se um pouco para trás, desequilibrando-se e caindo sentado sobre a terra. Era então que olhava para o outro lado, vendo um outro ele na mesma posição, observando-o com um olhar fixo e trazendo uma adaga voltada para si mesmo. Eles se encaravam e Ezequiel tentava gritar, emitindo palavras que não conseguia compreender o significado, parecia um outro idioma, algo pesado e maligno, sombrio. Completamente sombrio.
Sua voz soava como um alerta para o outro Ezequiel na margem oposta, fazendo-o cravar a adaga contra si mesmo. O corpo tombava sem vida para frente e despencava no rio, manchando as ranhuras das rachaduras de vermelho. As árvores começavam a balançar e Ezequiel sentia uma pontada no peito, como se a lâmina cravada no outro ele tivesse sido em si mesmo. Enquanto curvava-se com dor, o vento parecia cantar uma frase sem parar...
— Uma vida por outra vida — Irina sussurrou as palavras que representavam o final do pesadelo. E que costumavam estar nos lábios do irmão assim que ele acordava desesperado.
— O que isso quer dizer? — Ezequiel soltou a pergunta em um engasgo, levando a xícara pela metade para o colo e encarando a irmã em busca de algo. Mesmo que ela não pudesse oferecer nada além de uma tentativa de conforto.
— Nós vamos tentar descobrir de algum jeito, tudo bem?
Aquela era uma promessa que Irina repetia talvez pela quinta ou sexta vez. Nenhum dos dois fazia ideia de por onde começar a procurar uma resposta, no entanto, era o máximo que podiam fazer naquele quarto.
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