Capítulo IV
Soltar uma respiração mais profunda fazia o ar condensar rapidamente em fumaça à sua frente. O sol escapava timidamente pelas nuvens e talvez somente no meio da tarde pudessem retirar os casacos. Betina viu-se obrigada a colocar um xale sobre suas vestes de montaria e prender as pontas com um broche. Por sorte, o avô sempre costumava acordar mais tarde, caso contrário ele estaria reclamando de como a neta não deveria se expor ao frio.
Dessa vez, Betina o teria ignorado de qualquer maneira. Precisava daquilo.
Em suas décadas de solteira em Tantris, sua vida social sempre fora movimentada. Não apenas por ser neta do líder do Conselho, filha de um respeitável médico e mestre de poções no Submundo e carregar o sobrenome Salazarte. Betina não passava uma semana sem ir a eventos, ser convidada a soirées, jantares ou nem que fosse uma visita breve à casa de um amigo. Havia os conhecidos e havia os amigos, que sempre foram muitos.
Desde que se mudara para Mempolis, podia contar somente quatro amigos que ainda mantinham contato por carta durante todos aqueles anos e que a recebiam quando voltava para Tantris por algumas semanas junto do marido. Betina se sentia isolada.
A fazenda dos Tremonti era residência de uma boa dezena de pessoas, entre empregados que trabalhavam dentro da casa, nos estábulos ou na plantação, esses últimos vivendo em pequenos casebres espalhados ao longo da propriedade. Estava cercada de gente por todos os lados e sentia-se sozinha como nunca antes na vida.
Em vez de ouvir as vozes das irmãs, ver a mãe cosendo e orientando os filhos ou os irmãos indo e vindo em seus próprios negócios, agora passava os dias sozinha na casa cheia. Esperava que a situação mudasse com o nascimento da filha meses atrás, no entanto, nem mesmo isso fez aquela sensação passar. Parecia sempre faltar algo.
Ao menos agora podia retomar seus esporádicos passeios a cavalo na propriedade, onde aproveitava para visitar alguns dos trabalhadores no processo. No começo, era óbvio que estranhariam ver a patroa tratando-os tão de perto e com tanta gentileza. Com o passar dos anos, aquilo tornou-se habitual.
Para Betina, trazia um pouco de alegria no meio de tanta solidão, mas não era o mesmo que antes. E talvez nunca mais fosse. A vida era feita de mudanças e se tinha problema para se adaptar a elas, era problema seu. Ou era o que Betina usava para tentar se convencer de que aquela era sua vida.
Ao chegar em frente a um dos casebres, ela fez a égua parar. Deslizou para fora da sela lateral e deu a volta pelo animal, abrindo o grande cesto que estava preso ao flanco esquerdo. De lá, tirou uma cesta menor e liberou a égua para pastar um pouco. Caminhou alguns passos pelo mato ainda úmido de orvalho e bateu na porta.
Esperou por alguns instantes, percebendo que precisou de um pouco de força do outro lado para que a porta fosse aberta. Ao ver a imagem da mulher sob o umbral, arregalando os olhos e com as meias-luas de olheiras sob eles, abriu um sorriso acolhedor.
— Espero que eu não a tenha acordado.
— De jeito nenhum. — A dona do casebre escancarou a porta, fazendo um gesto para a esposa do patrão e soando um tanto atrapalhada por recebê-la em sua residência. — Leo foi para os estábulos há um bom tempo e sempre costumo acordar junto dele. É um pouco estranho vê-lo partir e não subir com ele para a fazenda.
A casa estava bem aquecida pelo fogo do fogão a lenha no canto do cômodo que servia como sala de estar, de jantar, quarto e cozinha. Os olhos azuis de Betina desceram até parar na barriga da outra. Sorriu e entregou-lhe a cesta, enquanto a porta era fechada para que o ar frio não entrasse.
— Seu filho está perto de nascer, não? É melhor permanecer em repouso até lá.
— Nós ainda temos os vegetais que a senhora trouxe semana passada, não... — Ela pareceu engolir a frase que estava prestes a dizer, provavelmente não querendo recusar um presente da Sra. Tremonti.
Por mais que Betina tentasse deixá-los à vontade com ela, sabia que sempre haveria um limite do qual os empregados nunca ousariam passar. Havia a amizade que tentava construir, contudo, acima disso sempre estaria a hierarquia e a relação de poder.
— O melhor a se fazer nessa fase final da gravidez é se alimentar bem e tentar manter o repouso, Débora. — A frase final saiu como um conselho inútil, pois não era como se a mulher pudesse se sentar e colocar os pés para cima na intenção de aliviar o inchaço, como ela própria fazia alguns meses antes, afinal, quem cuidaria da casa?
— A previsão é que venha no meio do inverno. Ou perto do final — Débora informou, afastando-se um pouco para colocar a cesta sobre uma mesinha embaixo da janela. Ela parou, instintivamente levando uma mão para a barriga e outra para as costas, fazendo uma breve avaliação da própria casa. Betina supunha que talvez procurasse algo para oferecer.
Na primeira vez em que viera ali, o desconforto pairou pelo ar e não demorou-se muito na visita. Na segunda vez, Débora — que mudara-se para lá junto do marido há algumas semanas — talvez tivesse sido informada dos costumes da esposa do patrão e convidou-a para se sentar e tomar um chá, mesmo que fosse visível seu desconforto por não ter muito a oferecer a uma mulher como ela. Betina deixava claro que não se importava, no entanto, sabia que tomaria tempo para aquilo ir embora.
Com os demais trabalhadores era assim e com o casal Alves acreditava que não seria tão diferente. Mesmo que poucas vezes tivesse visto o marido de Débora em um lugar que não fosse os estábulos e em um diálogo que não fosse sobre algo relacionado ao trabalho dele.
— Gostaria de uma xícara de chá? — Débora ofereceu, em uma repetição das últimas duas visitas.
— Adoraria. — Betina sorriu e sentou-se em uma das duas cadeiras da mesa.
Enquanto a dona do casebre enchia uma xícara com a bebida, ela tomou alguns segundos para ponderar por onde poderia enveredar aquele diálogo. Hesitou algumas vezes e logo viu o chá posto em sua frente.
— Espero que a senhora goste de capim-cidreira — Débora informou, ainda parada e passando as mãos pelo avental. Nem ousou se sentar.
— Adoro — Betina retorquiu após um gole. — O capim-cidreira é ótimo para dores de estômago.
Além de ser ótimo em outras poções para mal-estares, mas nunca compartilharia aquela informação com uma mundana. Realmente sentia falta de Tantris.
— É um dos únicos que não tem me causado enjoos... E um dos favoritos do meu marido também.
Betina continuou tomando a bebida em pequenos goles, feliz por finalmente vê-la se abrindo um pouco mais para um diálogo casual.
— Sabia que eu cheguei a enjoar de uvas durante a minha gravidez? — Viu Débora soltar um "oh" e, talvez vencida pela vontade de se sentar, assim o fez na cadeira do outro lado. — Algo peculiar, sendo esposa de um vinheteiro.
Betina riu, pondo a xícara sobre a madeira sulcada da mesa. Do outro lado, viu sua anfitriã parecer interessada. Talvez pudessem aproveitar daquele tópico em comum.
***
O que restava de neblina quando saiu de casa tinha se dissipado àquela altura. O relógio devia bater por volta das oito da manhã quando Betina rumou de volta para o casarão na fazenda.
Guiou a égua em direção aos estábulos, vendo de longe a figura do marido e das costas de Leonardo, marido de Débora, presos em uma conversa que ela não conseguia compreender à distância. Saul a viu se aproximar e gesticulou com a mão, fazendo o empregado virar-se para trás.
Betina desmontou do animal na entrada dos estábulos, assistindo Leonardo guiar o animal pelas rédeas em direção às baías. Saul observou-a o tempo todo de braços cruzados, usando nada mais do que a camisa, como se não se importasse com o frio.
— Fiquei surpreso ao saber que saiu tão cedo — ele comentou e os dois começaram a caminhar juntos em direção à casa.
— Meu avô ainda não acordou e decidi vir mais cedo para fazer companhia aos dois durante o desjejum. — Ou tentar não deixar que ambos ficassem sozinhos por tanto tempo. Mesmo com seus esforços, a convivência entre Saul e Tibério não havia avançado em nada desde que Tibério se mudara para a fazenda.
— Esta é a nossa casa. — Os dois deram a volta e resolveram entrar através do pátio, que daria para a cozinha. — Ele é o convidado aqui e ele deve se adaptar à nossa rotina, não o contrário.
— Não é esforço nenhum, se for para tentar deixá-lo mais confortável.
Saul abriu a porta da cozinha, segurando-a para que a esposa passasse primeiro. Betina entrou e viu-o balançar a cabeça em desagrado pela resposta que obteve.
— Leve uma bandeja para meu escritório — Saul endereçou-se para uma das empregadas no cômodo e entrou, deixando que a porta batesse atrás de si.
— Não irá se juntar a nós? — Betina perguntou.
— Preciso começar a trabalhar desde já. Há certas contas que não consegui fechar ainda.
Saul simplesmente continuou andando, deixando-a parada no meio da cozinha. Betina tomou alguns segundos para avaliar se deveria primeiro trocar as vestes de montaria ou juntar-se ao avô na sala de jantar. Voltou a andar e, no meio do corredor, optou pela primeira opção.
Na sala de jantar, a mesa do desjejum estava posta e a lareira acesa, esquentando o ambiente. As enormes janelas do outro lado permitiam ver as vinhas metros abaixo.
— Irá acabar adoecendo se expondo ao frio da madrugada — Tibério comentou, sem sequer tirar os olhos da carta à sua frente.
— Lá fora não está tão frio quanto parece. — O mordomo puxou a cadeira para que a patroa se sentasse. — Notícias de Tantris?
Tibério balançou a cabeça, deixando o papel de lado. Betina cortou uma fatia do pão caseiro, feito por uma das cozinheiras da família.
— Notícias do Submundo de Tantris, mas nada que irá interessá-la. Agora — Ele apontou para uma pequena pilha de envelopes amontoados em frente à cadeira da cabeceira —, seu marido é quem parece ter muita coisa para contar.
Betina puxou as cartas, trazendo-as para perto de si. Deu uma rápida passada de olhos pelos remetentes, reconhecendo apenas um: Leônidas Salazarte. O restante eram nomes desconhecidos e, para sua decepção, não havia nada endereçado a ela. E a decepção se acentuava ainda mais pelo pai ter mandado algo para o genro e não para a própria filha. Talvez não tivesse nada para dizer a ela, era o que tentava se convencer.
— Assunto de negócios, eu suponho — Betina falou, tentando soar o mais neutra possível.
— Supõe?
— Não me envolvo onde não tenho nada para oferecer — ela retorquiu antes de morder um pedaço do pão.
— Sua mãe se envolvia nos negócios de seu pai e aprendeu muito sobre poções, mesmo não sendo a aptidão dela. — Ao apenas mencionar a palavra "mãe", Tibério viu que a neta parou de mastigar por um instante, encarando-o com espanto. Ela tentou disfarçar, porém de nada adiantou. Ele pigarreou. — Isso antes de seu pai começar a passar mais tempo fora do que dentro de casa. — A frase foi finalizada, mesmo que fosse nítido como aquele assunto era desconfortável para Betina.
Ela decidiu engolir o pedaço de pão enquanto matutava uma resposta. Poucas foram as vezes em que tocou no nome da mãe ou de Bernardo desde que retornou para Mempolis. Ela preferia lidar com seu luto assim, evitando-o. Uma hora passava. As lembranças ficavam, mas a dor iria embora em algum momento.
Os sentimentos não iam embora em algum momento? Ou talvez fosse ela que parasse de senti-los, mesmo que houvesse a sensação gritante de algo faltando.
— Negócios não é uma habilidade inata — Betina respondeu por fim, mordendo mais um pedaço de pão para tentar evitar de ter que continuar falando.
O silêncio pesado não durou mais do que alguns instantes, sendo quebrado pelo barulho de passos apressados. Saul apareceu na sala de jantar e, em questão de segundos, aproximou-se da mesa, pegou a pequena pilha de cartas e levou-a embora, saindo do mesmo jeito que entrou.
— Eu avisei a seu pai que este homem era um grosso — Tibério reclamou, com certeza não pela última vez naquele dia.
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