Capítulo 14. Velaryon
No fim, Lorde Borros estava sentado na ponta da enorme mesa, suas filhas se dispuseram uma na frente da outra, e Aemond deveria se sentar na outra ponta.
Mas havia um grande problema. Cristina ficaria de pé. Não havia cadeira sobrando para ela, e provavelmente deveria ser algo calculado por Floris para envergonhá-la, visto a forma como a garota olhava para a ruiva. Apesar disso, não havia vergonha na mente de Cristina, e ela tampouco prestava atenção em Floris, mas nos enormes cinco faisões assados com peles douradas e brilhantes que compunham o meio da mesa.
A fome por ter vivido de carne seca e batatas queimadas por vários dias, a fez perder a memória por um momento. Contudo, ela sentiu a mão gelada e macia do príncipe em contraste com a sua, agarrando seus dedos com posse e exigência, sem temor de que os demais vissem aquele gesto totalmente explícito do tipo de relação que não existia entre eles.
Era isso que os demais pensariam dela: Era uma amante, uma mulher que estava aquecendo a cama do príncipe, a prisioneira que ele fez de escrava e dormia com ela porque teve pena de estragar o corpo e rosto bonitos que Harpa tinha.
Borros não pareceu ficar surpreso com a forma como Aemond agarrou a mão de Cristina, ele apenas olhou por milissegundos e desviou para prestar atenção no seu purê de batatas. No pensamento dele, uma meretriz não atrapalharia a posição de Floris.
Aemond estava com a mão nua, os dedos entrelaçados nos dela enquanto dava ordens em palavras baixas para que trouxesse mais uma cadeira e a colocassem ao lado dele. A caçula de Lorde Borros formou uma ruga profunda entre as sobrancelhas cor de carvão, apertando o cabo do garfo em sua mão com tanta força que sentiu dor. Nem estava casada, mas ele já a estava desrespeitando!
O príncipe não percebeu o olhar da garota, pois ele estava pensando nas feridas que ardiam dentro de sua boca e na língua cortada pela forma como beijou Cristina. Estava acolhendo os próprios machucados nos lábios com a ponta língua, e com os dedos, se certificava que sua capa lhe cobria o pescoço suficientemente bem para impedir que vissem a pele pálida coberta de mordidas violentas que lhe tiraram sangue, mas que pretendiam fazer muito mais do que isso.
Rangeu os dentes de dor enquanto sentia a sensação da boca de Cristina salivando, fazendo a própria aguar também. Ele mesmo nunca sentiu tanto prazer na comida ou bebida quanto os outros, por isso nunca ganhou o peso adequado para alguém do seu tamanho. Contudo, era a primeira vez que estava sentindo realmente fome por estar tão perto dela e poder compartilhar das sensações duas vezes mais intensas do que seria para uma pessoa só. Dito isso, Cristina também sentia os incômodos de Aemond dentro da própria boca, mas a resistência daquele corpo para a dor era tamanha, que ela mal prestou atenção.
— Esta é... Harpa Urso Pardo de quem ouvimos tanto falar nos últimos meses. Você é mesmo muito bonita como dizem os boatos. — Comentou Floris enquanto bebericava vinho de sua taça e lançava um sorriso amigável para Cristina. A ruiva quase pôde ouvir a voz de Aemond em sua cabeça a mandando ficar calada quando se esforçou a levar os olhos para Floris.
— Eu agradeço seu elogio, mas acho que eu era mais bela quando estava no meu auge. O tempo e o sofrimento me estragaram. Ainda estão me estragando, para falar a verdade. — Aemond ignorou o comentário de Cristina e continuou bebendo o vinho em sua taça como se não tivesse sentido a alfinetada. — Quanto a senhora, sinto que não mereço levantar meus olhos para observá-la. Suas pupilas são tão brilhantes quanto o mar, me faz lembrar do aconchego de tempos mais quentes.
Floris engoliu saliva e rangeu os dentes, baixando seus olhos para o prato e escondendo as bochechas vermelhas. Fingiu não ter sido tocada pelo elogio, já que a sinceridade nos olhos daquela mulher estava quase sendo derramada sobre aquela mesa.
Por que estava recebendo gentileza dela? Deveriam ser inimigas!
— E-enfim, nós pensávamos... que o príncipe a estava mantendo como prisioneira. — Ao sentir a íris verde tão brilhante escavando a lateral da sua cabeça até chegar na alma, Floris mordeu o lábio inferior. — Confesso que fiquei surpresa ao vê-la sentada conosco. Me pergunto o motivo de estar tão próxima.
Cristina crispou os lábios por um momento e evitou olhar Floris. A garota obviamente perguntava sutilmente o motivo pelo qual estava sentada ao lado do noivo dela. Aquela menina estava irredutível quanto às suas posições, e Cristina não queria que aquela criança jogasse vinho no rosto dela, já que o clima estava tão frio.
Apesar disso, o príncipe não estava nem um pouco preocupado com a tensão que se desenrolava na mesa. Aemond estava envergonhado pelo que aconteceu mais cedo no quarto, pela forma como ele simplesmente agiu da forma mais vexatória possível na frente da sua inimiga e deixou que ela o humilhasse, ele deixou que ela fizesse isso, porque era o que ele queria. Oh, ele era um verdadeiro tolo, estava se comportando como um cachorro desmamado, faminto e abandonado!
O vinho estava ajudando com a dor em sua boca, por isso estava bebendo tanto, mas parecia piorar o resto das suas sensações. Como Aegon conseguia ficar tão bêbado todos os dias?
Por algum motivo pensar em seu irmão o deixou ainda mais irritado. Já não bastava estar envergonhado por causa daquela mulher que se comportava como um animal selvagem? De qualquer forma, era claramente impossível que ele deixasse aquele sentimento infantil ser demonstrado, então ele apenas estava com raiva.
O mau humor tomou conta do seu corpo dos pés às pontas dos seus cabelos prateados, e isso significava que descontaria todo o ódio de si mesmo e da sua situação em qualquer um que testasse sua paciência. Floris foi a primeira a tentar, já que sua vozinha irritante e aguda não parava.
— Eu... estou ajud-
— Ela está aqui porque eu quero que ela esteja. — Aemond interrompeu a tentativa de justificativa de Cristina e respondeu de forma gelada, esticando os dedos para deixar a taça na mesa e inspecionando Floris pela primeira vez desde que chegou ali. Suas irmãs arregalaram os olhos umas para as outras, mas Maris foi a única que revirou as pupilas como se estivesse apenas com tédio.
Borros começou a tentar chamar a atenção da filha para fazê-la parar de falar.
— Oh... — A menina soltou essas duas letras como um suspiro fino e agudo do fundo de seus pequenos pulmões. Um sorriso forçado surgiu de seus lábios. — Sinto muito pelas minhas palavras, Majestade. Apenas achei que, sendo ela uma prisioneira-
— O que faço com meus prisioneiros não é da sua conta. — Ele bebeu novamente o vinho em longos goles.
Ainda. Floris queria dizer.
Cristina crispou os lábios. Queria mandar que Aemond parasse de responder a menina daquela forma, que ele apenas inventasse um motivo para ela estar ao lado dele convincente o suficiente para acalmar Floris e impedir Cristina de sofrer uma morte terrível futuramente a mando da futura rainha. Mas pensando bem, nada disso adiantaria.
Qualquer ruído naquela mesa depois das palavras do príncipe, se tornou incômodo e constrangedor. Nem mesmo a comida parecia ser tão apetitosa quanto antes, e mesmo que Borros fosse resistente em relação ao reconhecimento de Aemond como rei, ainda ficou vermelho de vergonha e fúria pela língua afiada de Floris. Ora, eles estavam em um momento sagrado durante a refeição e Aemond mexia com magia de sacrifício, poderia envenenar a comida deles em um estalar de dedos e ninguém saberia até estarem engasgando no próprio sangue!
Borros tentou pigarrear para mandá-la se calar, mas a garota o ignorou.
— Vossa Graça tem toda a razão. Só... achei uma situação um tanto inusitada e confusa para que eu pudesse entender-
— Você não tem que entender nada. — Cristina sentia os dedos de Aemond apertando os dela debaixo da mesa.
Borros pigarreou novamente e bateu na mesa, fazendo Floris olhar para ele finalmente.
— Milorde, perdoe Floris. Ela não tem muita noção das coisas, já que é tão jovem. Espero que o senhor possa corrigi-la como achar melhor no futuro. — Borros fez uma careta para a filha, que tentou ignorar. — Peça perdão, Floris!
— Corrigi-la? Além de marido, terei que ser pai da minha própria esposa? — O príncipe perguntou, descansando as costas na cadeira, encarando os olhos azuis e profundos da garota que estava parecida com um coelho assustado em sua toca observando a serpente se aproximar dela sem ter para onde correr. — Se for assim, acho que uma das suas filhas mais velhas me servirá melhor.
Floris explodiu e se levantou da cadeira, curvando o corpo na direção de Aemond com a mais pura expressão de pânico.
— Eu sinto muito! Sinto muito, Vossa Graça! Eu sinto muito pela minha falta de decoro. — Cristina podia ver o suor descendo pela testa da garota, mas ela ainda estava extremamente indignada pela presença da ruiva ali. — Apenas... espero que a prisioneira saiba o lugar dela. É uma preocupação que tenho com o senhor!
— Harpa sabe qual é o lugar dela. — Ele bebericou novamente do vinho enquanto Floris baixava a cabeça. — Acredito que não preciso verbalizar qual é o seu nesse momento.
A cabeça daquela menina estava viajando em um turbilhão de sentimentos, e acima de tudo, Floris queria soluçar e se trancar em seu quarto para nunca mais sair. Ela estava sendo maltratada na frente de todos pelo seu futuro marido, e tudo por conta de uma prisioneira que tinha o dobro da idade dele, uma mulher cuja maldita família traiu a coroa.
É claro que Floris sabia qual era o lugar dela. Ela era uma Lady de uma casa respeitada, foi aceita pelo rei regente a se tornar sua futura rainha, estavam noivos!
Era esse o lugar dela, o de futura rainha!
Floris sentia o coração bater fortemente contra os ossos de sua caixa toráxica enquanto voltava a se sentar, fingindo não ter sido afetada com as palavras pontudas do rei regente, indo diretamente para seu peito e atravessando seus sonhos infantis que estavam se tornando realidade por algum milagre do destino. Ela não era a irmã mais bonita ou a mais inteligente em assuntos políticos, mas era a mais jovem, e se o príncipe a quisesse, poderia fazer com que ela lhe desse vários herdeiros imediatamente assim que se casassem.
Mas havia uma pedra em sua ponte, uma pedra que já estava lá muito antes de Floris ser colocada naquele caminho com a tarefa de atravessá-lo. Harpa Urso Pardo estava sentada em seu lugar, ao lado do príncipe como se tivesse algum direito de estar ali, uma mulher estranha e criminosa cuja história todos conhecem, todos sabiam o que ela havia feito com o príncipe, todos sabiam o motivo pelo qual Aemond havia se tornado aleijado pela segunda vez, todos sabiam que ela o havia deixado manco e que ainda assim havia permanecido viva.
Ela imaginava que Harpa estivesse em uma cela subterrânea, imaginava que toda a beleza de Harpa tivesse sido sugada pela tortura que o príncipe estivesse infigindo a ela. Mas aquela mulher de pele escura, com os cabelos perfeitamente ondulados e curtos raspando as bochechas cobertas por sardas, ainda parecia mais feminina do que ela, mesmo que não fizesse nenhum esforço para se parecer. Floris odia ver suas irmãs se derretendo não pelo príncipe, mas por Harpa quando ela lhes lançava um olhar ou dois. O próprio pai dela estava estufando o peito como se fosse um jovem charmoso para que Harpa lhe desse uma migalha de sua atenção, tudo aquilo por conta da aparência extremamente sobrenatural que aquela mulher tinha.
Ela mordeu o lábio enquanto pensava na humilhação que passou há pouco tempo por ser obrigada a pedir desculpas indiretamente para uma prisioneira. Suas bochechas estavam ficando vermelhas de indignação porque ninguém ali parecia estar levando sua futura posição a sério.
Aquela jovem Lady sabia bem que Aemond não era carinhoso e gentil, mas com o passar dos anos ele a reconheceria, ele veria que ela seria leal a ele completamente, que ela lhe daria vários herdeiros homens fortes com cabelos prateados e olhos violeta como eram os Targaryen. Ela seria sua esposa, seria sua rainha, o ajudaria a governar e ele a amaria mais do que tudo!
Abaixou a cabeça ainda mais para cutucar o pedaço da coxa do faisão em seu prato, sentindo a frieza emanando da ponta da mesa onde estava o seu futuro marido e Harpa juntos, tentando recuperar o controle de si mesma. Sabia que alguns homens gostavam de ter outras mulheres fora do casamento, mas isso não aconteceria com ela, isso definitivamente não aconteceria no seu casamento. Ela deveria ser o suficiente.
Sentia o olhar discreto de Harpa, que logo desviava sua atenção para o faisão e cogumelos salteados em seu prato, como se a política e a etiqueta não significassem nada para ela. O que aquela mulher levava com ela além da aparência?
Floris parecia estar esquecendo de algo quando se lembrou da magia. Harpa, há muitos anos, tinha fama por conta de praticar magia e por ser uma troca-peles. Como poderia ter esquecido disso?
Oh! Poderia ela ter enfeitiçado o príncipe a se apaixonar por ela?
Tudo pareceu fazer sentido, até mesmo a frieza com que Aemond a estava tratando, mesmo que a tivesse escolhido como futura rainha. O príncipe jamais seguraria a mão de uma pessoa que o deixou manco, de uma pessoa que ele perseguiu por tantos anos para matar. E quanto a Harpa... ela jamais seria capaz de amar e ser leal ao homem responsável por assassinar sua família, mesmo que fosse o rei.
Mas ela não disse mais nada. Floris se calou completamente aquela noite, comeu em silêncio enquanto observava o rosto de Harpa, sempre irritado.
*
Cristina ainda estava com o coração quase saindo pela boca, mesmo depois de deixar a mesa de jantar. Ela nunca havia se sentido tão mal em um lugar desde que chegou a Westeros, mas esse sentimento provavelmente se devia ao fato de que ela ainda temia que Lucerys Velaryon atravessasse aqueles portões e depois acabasse morto de alguma forma terrível.
Um terrível pressentimento a consumia.
Ela estava pensando nisso, já pronta para dormir no pequeno sofá em que havia se encolhido para o seu corpo caber, com a sua capa lhe cobrindo o corpo e virada para o encosto, esperando não precisar encarar Aemond novamente naquele dia. O calor daquele quarto estava sumindo porque provavelmente a magia de Aemond estava enfraquecendo, o que significava que logo o frio estaria insuportável.
"Lucerys não viria. Não faria sentido ele vir, e não há necessidade de ter um ataque cardíaco por causa disso. Se acalme, idiota!"
Cristina gritava consigo mesma.
Quanto a Aemond, ele estava andando de um lado para o outro no quarto e pensando em muitas coisas ao mesmo tempo. Uma delas, era a mulher encolhida naquele sofá pequeno demais para o corpo dela, os ombros largos para fora do estofado mal estavam ali há muito tempo, mas Aemond já começou a sentir dor em sua coluna.
— Vá para a cama. — Ele ordenou friamente. Cristina fingiu não ouvir.
— Prefiro ir lá para fora dormir com os cavalos. — Ela respondeu, lançando um olhar gelado para o príncipe.
— Os cavalos também estão dentro da fortaleza por conta do frio. — Cristina abraçou o próprio corpo, sentindo o seus braços arrepiarem. Aemond também estava sentindo o mesmo que ela, duas vezes pior.
— Prefiro afundar na água congelada e dormir com os peixes. — Cristina respondeu, atraindo uma careta de Aemond.
— Você não age de acordo com a sua idade. — O príncipe resmungou.
A mulher não o respondeu novamente, então ele suspirou cansado e passou os dedos pelos cabelos longos praguejando baixinho quando deu a volta pelo quarto, tirou suas botas pesadas e se deitou na cama, cobrindo o corpo com todas as cinco camadas de cobertores.
Ele fechou os olhos sentindo que finalmente poderia dormir em paz e sem uma dor significativa que pudesse atrapalhar seu sono, tendo em vista que aquela mulher teimosa não estava perto o suficiente para suas dores sumirem, mas ela ainda estava dentro do mesmo cômodo, e isso era ótimo. A dor de cabeça não o faria desejar a morte durante a madrugada, até conseguiu ignorá-la. Aemond deveria apenas sentir seu corpo exausto relaxar sobre os tecidos e travesseiros... mas ele não conseguia.
A mulher que ele conhecia como Harpa, estava pensando demais. Ele conseguia sentir cada um dos sentimentos que passavam pela mente dela, a ansiedade cortante que o fez morder a bochecha da boca, uma pontada de desespero, medo, raiva e frustração.
Ele sentiu que o fio amaldiçoado que os ligava, estava ficando cada vez mais sensível. Ele podia senti-la com mais clareza, e pensou que talvez isso ocorresse com ela da mesma forma. Uma sensação de vulnerabilidade desesperadora lhe ocorreu quando imaginou que Harpa pudesse entrar em sua mente.
Naquele ponto, o príncipe já estava frustrado, pois não entendia mais como funcionava a evolução da maldição. Ele já deveria estar louco de ódio por aquela mulher que lhe tirou o direito de andar normalmente e que lhe amaldiçoou como se estivesse recitando um poema. A maldição deveria tê-lo transformado em um monstro irracional que poderia arrancar o coração de Harpa usando as próprias mãos, mesmo que ele também acabasse morrendo no processo, mas nada daquilo aconteceu.
Ele levou o dedo indicador aos lábios involuntariamente, sentindo o gosto metálico da humilhação na língua. Não conseguia parar de pensar na forma como ela o mordeu, como ela lhe arrancou aquele beijo como se fosse uma punição, afundando a boca na dele com um ódio extremo. E o que ele fez? Ele simplesmente permitiu, aceitando o que ela estava lhe impondo como um homem derrotado, preso nas correntes que ela segurava e completamente submisso àquela maldição.
Aemond recolheu os dedos e transformou a mão em um punho, rangendo os dentes enquanto o sangue do seu orgulho mal cicatrizado manchava a língua. A vergonha já lhe queimava a pele, o constrangimento de ter cedido a si mesmo com tanta facilidade, o tornava um traidor das próprias convicções.
Ele estava deitado de costas na cama, rígido como uma tábua, tentando ignorar o frio que Cristina sentia e os sentimentos daquela mulher que quase ressoavam aos sussurros em seus ouvidos.
— Basta. Você vai nos adoecer. Vou arrastá-la para dentro dos lençois e se resistir, irei amarrá-la às madeiras! — Aemond jogou as cobertas para o lado e observou o lado escuro onde estava Cristina enquanto se levantava.
Cristina tentou lutar com ele quando foi tirada a força do sofá onde tentava pegar no sono, ainda que estivesse gelada como um cadáver. Mesmo que estivesse amaldiçoado, coxo e doente, Aemond ainda tinha força o suficiente para conseguir segurá-la nos braços como se estivesse carregando um gato arisco.
Ele a jogou no colchão com violência e acabou caindo com ela ali, os movimentos extremamente ruidosos enquanto se aproveitava da dormência que o frio deixou sobre os músculos fortes daquela mulher. E enquanto ela estava fraca e não podia fazer nada além de reclamar ou insultá-lo, Aemond segurava os pulsos dela e a enrolava rapidamente nos cobertores como se estivesse embalando um presente.
Em alguns minutos, ele já não estava mais trêmulo como antes e Cristina não parecia um cadáver. Ambos estavam aquecidos, e a sensação deliciosa tirou um suspiro do fundo dos pulmões de Aemond, o fazendo esquecer o mau humor por alguns minutos.
Ele contraiu a mandíbula ao olhar para o rosto da mulher abaixo dele, havendo algo parecido com nojo e tédio. Ela havia cansado de insultá-lo.
— Pode me odiar o quanto você quiser, não vai mudar absolutamente nada. Não altera o que somos um para o outro, e nem o que nos liga. — Ele afirmou, sendo atraído inconscientemente para o rosto de Cristina, amassando seus lábios contra o queixo dela enquanto falava. — Tudo isso aconteceu por sua culpa. Por que você não aceitou sua morte quando ela chegou? Não estaríamos tendo essa conversa agora.
Cristina não pode evitar uma risada, recuperando suas forças e desfazendo o casulo de cobertas ao seu redor, em seguida empurrando Aemond, de forma que ambos acabaram sentados um de frente para o outro naquela cama.
— Não estaríamos mesmo. — Cristina ajeitou as cobertas ao redor dela, de forma que suas pernas e cintura estavam escondidas pelo tecido grosso. — Se tudo seguisse como deveria, você morreria aos vinte anos e traria felicidade a muita gente. Agora me dê licença, quero esticar minhas pernas.
O príncipe não se moveu, apenas continuou com o olho violeta grudado no rosto dela, mordendo a bochecha interna da boca. Ele se sentiu extremamente atingido por aquelas palavras, assim como se sentiu pelas palavras anteriores que aquela mulher lhe havia dito antes de chegarem a Ponta Tempestade. Qualquer coisa que Harpa dizia, parecia ter sido fabricada de forma precisa e específica para atingi-lo, e ele odiava isso. Aemond odiava não estar no controle, odiava não poder fazer absolutamente nada contra aquele sentimento de impotência que o transformava em um carpete úmido no chão pronto para ser pisado pelos belos pés de Harpa.
— Por que está me encarando assim? — Ela perguntou. — Está imaginando como meu corpo ficaria enforcado na praça?
Ele não podia imaginar aquilo, ou a dor lancinante atravessaria sua cabeça como uma lâmina. Ela deveria saber disso mais do que ninguém.
Apesar de tudo, Aemond se cansou e saiu do caminho das pernas de Harpa, se deitando ao lado dela. A mulher, extremamente mal humorada, estava juntando os enormes cabelos prateados que caíam sobre o rosto dela e empurrando para o lado do príncipe. Ela não conseguiu evitar de pensar nas piadas que existiam na internet sobre a maciez e brilho inegáveis dos fios de Aemond.
Ela respirou fundo, se virando para o lado contrário de onde estava o corpo pálido de Aemond envolto sempre nas roupas pretas cuja gola lhe cobria até o pescoço longo. Começou a pensar no que faria quando voltasse para Porto Real e como ela encontraria o bordel onde Maggie foi deixada por Aemond.
Ela pensou que poderia muito bem começar a investigar quantos bordeis aquele lugar possuía, depois poderia mapear a área por meio de perguntas despretensiosas, escapar e finalmente perguntar sutilmente sobre sua Maggie. A menina tinha uma aparência de destaque, até mais do que a de Harpa. Qualquer um saberia apontar onde estava uma garota de rosto em formato de coração, cabelos ondulados cor de ouro pálido e olhos de um azul profundo, e na verdade, se Maggie estivesse mesmo em um bordel, naquela altura todos já saberiam sobre ela.
Pensar nisso deu calafrios em Cristina.
— Você quer seus títulos e terras de volta. Quer voltar a ser chamada de Lady, mas ainda não entendi o motivo pelo qual você deseja ser meu braço direito. — Murmurou Aemond do outro lado, fazendo Cristina revirar os olhos. — Mesmo que todos achem que você seja a responsável por toda a... calamidade que nos acometeu-
— Uma história que você inventou-
— Ainda acho que, mesmo que eu não fosse mais o rei, seria fácil para você fugir e viver escondida como viveu seis anos longe de mim. — Aemond levantou a mão, esperando que Cristina o esperasse terminar de falar. — Além disso, o sentimento de ódio entre nós é recíproco, acredito que minha morte não a faria se debulhar em lágrimas. Por que evitar minha morte seria importante para você?
Aemond achou que Cristina não responderia, mas sabia que ela ainda estava acordada pela frequência rápida da respiração dela.
— Você não é idiota, percebeu que nosso vínculo parece estar ficando cada vez mais forte, eu já consigo sentir seus pensamentos e pequenas coisas físicas que acontecem no seu corpo. Não sei o que vai acontecer comigo quando você morrer. — Ela desconversou pensando nas palavras de Alys, pensando que não se importava com o que aconteceria com Aemond se pudesse voltar para casa. Enquanto isso, precisava dele vivo. — E se ainda estivermos ligados pela maldição e eu acabar morrendo junto com você pelo choque? Tenho Maggie para cuidar.
"Quando", não "se".
Cristina esperou que ele perguntasse como morreria, mas ele não perguntou. Aemond não queria saber e nem falar sobre isso, mas a convicção dela sobre a inevitabilidade da situação dele o fez arrepiar a espinha.
Ele deu um sorriso que não lhe alcançou os olhos, e Cristina o sentiu se revirar na cama, se virando para as costas dela. Ele estava longe, mas ainda encarava a nuca dela.
— Pois bem. Eu tenho condições. — Ele murmurou baixinho, como se alguém pudesse ouvir aquele absurdo com que ele estava prestes a concordar.
— Condições? — Ela fez uma careta e se virou para ele por cima do ombro. — Condições do que?
— Você entendeu. Sua proposta. Tenho condições para aceitá-la. — Cristina revirou os olhos mais uma vez e suspirou. — Em público, você me tratará como sua única figura de confiança e lealdade. Os demais devem pensar que você mataria e morreria por mim, então me defenda e venha me contar tudo que ouvir. — Ele umedeceu os lábios finos. — Eu farei o mesmo por você. Não faça essa careta.
Ela não escondeu o desgosto e o choque enquanto se virava para ficar de frente para o príncipe.
— Você-
— Não é tudo. Ainda há mais exigências. — Aemond rangeu os dentes, olhando Cristina como uma serpente traiçoeira a espreita do jantar. — Não enquanto estivermos aqui, mas depois que sairmos, quero que me beije em público, quero espontaneidade, quero que me olhe com admiração, quero momentos de... afeto genuíno. Quero que seja convincente, que os outros vejam isso e acreditem firmemente.
Ela crispou os lábios e não desfez da sua careta.
Aemond lhe daria seus títulos e terras novamente, mas isso não valeria de nada, já que seu nome estaria completamente manchado pelo que o príncipe estava descrevendo. Ela não teria mais nenhuma moral com ninguém. Não haveria nenhum tipo de aliança, ela seria um cachorro.
Enquanto olhava para o rosto longo esculpido em mármore e para a joia safira no olho faltante, Cristina queria cuspir na testa dele. Além de tudo, já conseguia sentir o gosto do veneno colocado por Floris em sua comida.
— Você está noivo. — Cristina vociferou. — Mesmo que não se importe, você vai me usar para humilhar a menina e ela vai acabar me matando por sua culpa.
— Ninguém vai te matar antes de mim.
Cristina prendeu a respiração, rangeu os dentes. Ela queria obrigar Aemond a fazer um contrato e assiná-lo, mas às vezes tinha que se lembrar que não estava mais no século XXI e tampouco em seu mundo, e que ainda por cima, era uma prisioneira cuja vida Aemond não retirou apenas porque não podia.
Inferno. Mil vezes inferno!
— Que seja. — Ela cuspiu as palavras com grosseria, queria que elas fossem flechas para que perfurassem o príncipe. Mas ainda conseguia se acalmar ao pensar que logo voltaria para casa e Aemond seria reduzido a nada mais do que palavras em um papel.
Aemond não pensou muito quando se deitou novamente na cama macia, livre de qualquer desconforto que a maldição lhe causara por todos aqueles anos malditos. O príncipe estava sentindo seu corpo pesado, seus olhos queriam se fechar sozinhos, sua mente já não estava mais ali.
Pela primeira vez em muitos anos, ele dormiria como um maldito bebê.
*
Ela não viu Aemond quando amanheceu, pois o céu continuava escuro e a cama estava gelada e vazia. Isso lhe deu um pouco de conforto e pensou em permanecer ali, mas a sensação de arrepios como se dedos espectrais a estivessem tocando nas costas, lhe fez levantar imediatamente.
Até procurou os guardas e os demais soldados para perguntar onde estava o príncipe, mas não recebeu resposta alguma, já que não encontrou ninguém pelos corredores.
Ela apertou os dedos em punhos dentro da luva, sentindo calafrios anormais percorrerem pela sua pele. O odor leve de perfume feminino e doce correu pelo ar, e isso deixou Cristina totalmente desesperada.
"Devolva-me"
A voz dela... a voz de Harpa foi sussurrada levemente ao pé de sua orelha, tão próxima como um amante sedutor.
Então Cristina começou a andar rápido, passos largos, olhando de um lado para o outro. Quem olhasse de fora, poderia achar que ela estava maluca enquanto via aquela mulher ofegante, rangendo os dentes e suada, chegar do lado de fora da fortaleza, apertando as unhas contra as palmas das mãos.
A neve era forte, se acumulava sobre seus cachos ondulados e cílios vermelhos. Ela queria encontrar Aemond, pois acreditava nas palavras de Alys que cada vez mais se tornavam concretas: Ele era o responsável por manter Harpa longe de seu corpo original.
Bem, ela claramente não o encontraria ali do lado de fora. Deveria se recuperar do pânico em poucos segundos, entrar novamente e achá-lo o quanto antes, mas uma mão grande porém calma apertou seu ombro, a fazendo gritar e se lançar para frente.
— Ah... milady? — Cristina se virou para trás, para a voz que a chamava. — Por que está... do lado de fora sem capa?
Mas era apenas Elric. Os olhos claros e ingênuos demais para os de um soldado, estavam arregalados observando as pupilas selvagens e noturnas de Cristina que refletiam luz amarelada no escuro. Ela engoliu as palavras, pois não queria gritar com ele, apenas se abaixou, apoiando as mãos nas coxas para recuperar o fôlego.
Cristina enfiou os dedos nos cachos ruivos e os sentiu até o final vendo como seu cabelo havia crescido,imaginando como a cor original de pimenta vermelha, estava a mostra em quase um palmo em sua cabeça, fazendo o fim dos cachos mais escuros nas pontas, baterem quase em seu queixo.
Não tinha mais sentido cortar e pintar seu cabelo, mas se deixasse que aquela juba crescesse novamente, que diferença haveria entre ela e Harpa?
— Garoto... você quase me matou de susto. — Ela murmurou enquanto pegava a capa que Elric lhe oferecia. — Não faça mais isso, pelo amor.
— Desculpe, milady. — O rapaz agarrou o cabo da espada, levantando o rosto para os céus enquanto ouvia algo terrível que parecia indistinguível ao longe. Gritos femininos mandando que algo fosse devolvido, chamando um nome que ele nunca havia ouvido, mas que parecia pertencer a outra mulher. No fim, ele conseguiu entender.
"Devolva meu corpo, maldita Cristina." Era isso. Elric entendeu as palavras, mas a frase não significava muito para ele. O garoto achou que estava ficando louco.
— A senhorita não deveria... ficar aqui no frio. — Elric murmurou ainda observando ao redor com cautela. — A não ser que a senhorita possua feitiços que possam invocar casacos e capas.
— Seriam feitiços muito úteis, mas esses eu ainda não aprendi. — Ela sorriu se virando para Elric, os cabelos castanhos escuros do menino estavam cheios de flocos de neve. — Vamos entrar.
Elric se virou para observar a floresta escura há alguns metros deles, sentindo a neve abaixo dos seus pés tremerem, os gritos ficaram mais altos e os corvos voaram, saindo das árvores às pressas. Algo estava indo até eles.
— A senhorita está ouvindo isso? — Ele perguntou acompanhando Cristina até a entrada, mas ainda observando o lado de fora com preocupação, até que a mulher ruiva simplesmente fechou a porta com um estrondo.
— Vou te dar um conselho. Quando você escutar coisas assim, não vá ver o que é. É sempre algo ruim tentando te atrair. Entendeu? De forma nenhuma vá atrás. — Elric levou os olhos claros para Cristina, e depois de alguns segundos, assentiu. — Certo.
— Por que a senhorita estava lá fora desse jeito? — Ele perguntou, percebendo os olhos arregalados de Cristina. — Aconteceu alguma coisa?
— Não, não. Eu só estava procurando Aemo... o príncipe regente. Pode me dizer onde ele está?
Não só ele, ela queria saber onde estavam todos os outros.
— Oh, Sua Graça foi chamado às pressas ao salão. — Informou Elric. — O príncipe Lucerys Velaryon apareceu acompanhado de seus homens em Ponta Tempestade quando faltavam alguns minutos para amanhecer. Estão todos no salão.
Cristina arregalou os olhos verdes e congelou no lugar.
Por um instante, tudo ao seu redor pareceu se desfazer como tinta dentro da água. Lucerys era destinado a ser assassinado pelo tio Aemond, e ele estava ali em Ponta Tempestade sem ter ideia do risco de ter ido exatamente para onde ocorreu sua fatídica morte em uma linha paralela diferente.
Seu primeiro instinto foi correr até o salão e avisá-lo, mandar que voltasse para casa, já que não conseguiria nada com Borros. Mas ela conteve o impulso e pressionou os dedos contra as têmporas. Qualquer movimento brusco poderia condenar os dois de uma vez... dois não, três, já que Maggie também estava envolvida naquilo, dentro das mãos de Aemond.
Elric observou Cristina com curiosidade.
— Milady, está tudo bem mesmo? — ele disse, a voz hesitante.
— Sim, está. — Cristina respondeu rápido, dando um sorriso mecânico. — Pode me levar até o salão? Acho que o príncipe não vai se importar com minha presença.
— Claro! Sua Graça me ordenou que eu a levasse até ele quando estivesse acordada.
Cristina ajustou a coluna e acompanhou Elric até o salão, onde ela já escutava vozes altas e abafadas pelas portas de madeira.
*****
Eita, será que tudo vai voltar a acontecer do modo como foi escrito? Espero que vocês gostem do capítulo! Qualquer coisa que eu puder melhorar, podem me dizer!
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