Capítulo 2. Ryuu
CAPÍTULO 2
RYUU
"Dragão"
O vento.
Gelado, revolto e arrepiante vento sopra entre minhas asas enquanto as bato desesperadamente em uma direção desconhecida, com sangue escorrendo sobre meus olhos e secando entre minhas escamas.
O cheiro pungente de ferrugem se enrosca na minha narina, me fazendo espirrar constantemente desde que alcei voo daquele acampamento clandestino de Aduantinos na Floresta Canário. Me viro mais uma vez para garantir que não há perseguidores, tentando enxergar algo sob a cortina vermelha que não consigo tirar dos meus olhos, mas é em vão.
Tento passar por cima do cheiro forte do sangue, captando aromas de pão e fumaça. Uma cidade possivelmente grande, pelo barulho, penso com a esperança de ser Juniper Central e poder pousar no telhado do castelo com a notícia de que ainda há três dos sete soldados Aduantinos embrenhados entre as altas árvores da Floresta.
Meu tamanho atual me permite entrar na cidade sem que muitos me vejam e, se caso virem, pensarem ser alguma entrega de informações, então procuro sentir a presença de alguma árvore para pousar. Sem conseguir focar em nenhum sentido que me ajude, apenas sinto a madeira larga da árvore quando estou batendo contra ela e em cada galho que encontro pelo caminho até o chão, onde me estatelo com força, ficando sem ar.
— Porra de árvore.
Puxo todo o ar que consigo e me impulsiono para virar, ouvindo à minha esquerda som de água correndo. Encolho as asas coladas ao corpo, dando passinhos cautelosos em direção ao som e virando as orelhas a qualquer sinal de barulho extra. Minutos passaram até que eu conseguisse tocar a borda d'água, onde os sons aumentaram e muito. Pego água com as patas em concha, sentando sobre o traseiro e lavando os olhos, esfregando bem.
Enfim, minha vista clareia e me sinto aliviado em enxergar ao meu redor; estou em uma lagoa e peixes longos com patinhas de unhas arredondadas me encaram do fundo dela. Rosno para eles, mostrando os dentes afiados que há em minha boca e todos saem nadando para o outro lado.
Termino de retirar o sangue seco do corpo, parando por um momento para lembrar de quem veio esse sangue. Meus dois colegas de missão, escolhidos a dedo para irem comigo investigar os sinais dos inimigos nas nossas florestas, receberam fins dolorosos e cruéis. Seguraram os Aduantinos para que eu pudesse ter tempo suficiente para encolher de tamanho e fugir como um covarde. Segundo eles, era necessário que apenas um saísse vivo com a localização e informações que conseguimos escutar, mas o sentimento de impotência amarga o céu da minha boca.
O sorriso de Criterius ao enfiar a lâmina no pescoço de um Aduantino é assustador, seu grito para que eu saísse foi pior. Não podemos matar, nossa missão é levar em custódia esses invasores. Não está certo, nada disso está.
— A missão foi alterada! Leve as informações para o Rei, vamos segurá-los. Vá, Ryuu!
Me concentro para abandonar meu corpo humano e voltar a minha forma natural de Dragão, porém, em miniatura. Não posso ao menos incendiar tudo, queimaria a maior parte da floresta e o lar de animais, algumas provisões de pequenas aldeias e um pedaço considerável de um dos nossos maiores bens.
Lembro da sensação do meu corpo encolhendo e do meu fogo se revirando na garganta para ser solto, doía ter que segurá-lo. Tudo saiu errado, todos os cuidados que tivemos foram perdidos ao sermos descobertos por um Reptiliano de Aduanta que escalava a grande árvore que nos mantinha escondidos em forma humana. Eu, o único Dragão puro entre nós três, fui inútil. Perdi dois Camprinos, meio dragões excepcionais, por puro desespero. Se tivesse ficado e lutado poderíamos ter vencido, os três.
Mas não.
Meu fogo agora ri de mim, se tornando uma brasa diminuta em meu estômago, e minha capacidade de mutação está escondida em algum lugar no meu interior. Não consigo usá-la para ao menos me dar o visual humano e saber onde pousei.
Olhar tudo de baixo, em um tamanho reduzido, torna o sentimento sombrio de "vazio" mais mórbido.
A noite caiu rápido, mas continuo na frente do lago, encarando o limo das pedras laterais e os peixes que passaram a nadar mais próximo de mim de novo. Meu estômago ronca, minha garganta começa a secar, porém não tenho coragem para me esticar e beber dessa água. Não tenho forças para caminhar.
Entretanto...
Ignoro a vontade de comer um desses peixes gordos e suculentos, engolindo a saliva que preenche minha boca pela fome e ponho pé ante pé para fora daquela floresta.
É estranho usar essas patinhas depois de tanto tempo apenas as utilizando estando no meu tamanho padrão. Sentir os seixos machucando as almofadas ressecadas e alguns gravetos furando sob as unhas. Quando uso minhas enormes patas esmago troncos de árvores medianos. É um grande contraste.
Pouco à frente, nas últimas árvores à vista, a luz da cidade se fortalece. Alguns poucos moradores ainda passam pra lá e pra cá, então espero que nenhum passe para me esgueirar da pequenina floresta até o beco mais próximo, me mantendo rente ao chão.
Com ouvidos atentos e patas ligeiras, procuro um espaço ideal para descansar e dormir. Um sótão seria o ideal.
Voo baixinho o suficiente para vasculhar algum sótão com aparência abandonada e janela frágil, achando um perfeito. Bato mais forte os músculos das asas me aproximando do vidro delicado, me viro de costas e bato com a ponta da cauda em um ponto dele, estilhaçando. Corro para dentro, evitando os cacos presos nas bordas, usando uma caixa velha de esconderijo para o caso de alguém ter me visto entrar ou ter ouvido o vidro quebrar.
Após uns vinte minutos tranquilos, com o som do vento passando pelos vãos das madeiras do chão do sótão, relaxo o suficiente para deitar e enrolar a cauda em volta de mim, apoiando a cabeça nas patas. Fecho os olhos relembrando do sangue quente de Tiberias esguichando no meu rosto antes que eu fugisse, sentindo o nariz morno.
E não durmo até ter relembrado tudo desde o começo umas três vezes.
Quando o sol nasce, sinto que meu sangue desceu todo para a cabeça há um bom tempo e me espreguiço bocejando bem alto, ouvindo um grito em seguida. Abro os olhos devagar para entender a situação e quem está gritando no sótão onde acabei pegando no sono e me encolho ao ver que estou no meio de uma sala, seguro por uma corda em uma das patas e preso em um gancho no teto.
— Ele acordou! — a mulher velha, uma humana com orelhas pontudas, grita de novo, fazendo minha orelha doer com o agudo.
— Arturo, pega o facão.
Viro para o homem adulto com um bastão nas mãos apontado para mim, indicando o que pode ser o cômodo da cozinha para um jovem magricela desengonçado. Olho em volta para me situar onde está a saída mais acessível — uma janela enorme e convenientemente escancarada —, não dando nem chance para o menino voltar com a faca; ergo o pescoço e solto uma pequena bola de fogo para arrebentar a corda.
Sob gritos histéricos e desviando de coisas arremessadas, me jogo pela janela e corro novamente para um beco, dele indo para o mais longe possível da casa onde o homem tenta correr em minha direção sem sucesso.
Entre voos baixos para agilizar minha fuga, derrapadas para evitar portas sendo abertas e corridas, saio da cidade desembocando em um terreno vasto ao horizonte. Encontro uma casa grande o suficiente para não me acharem, com uma estrutura de vidro branco trabalhado de um lado e uma casinha semelhante aos celeiros que usamos no castelo, do outro. Galinhas procuram no chão sua refeição enquanto passo voando, o que as deixam alvoroçadas e cacarejando. Antes de entrar por uma madeira solta no mini celeiro, vejo de relance uma figura feminina com longos cabelos verde-musgo, intensos como grama molhada, gritando com as galinhas.
— O que está fazendo aqui, Dragão? — uma voz extremamente doce e madura ecoa pelo espaço com luz baixa, abafado, me recepcionando do alto.
Dentro da casa tem madeiras atravessadas no teto, o chão é coberto de serragem, lampiões fracos estão presos nas pilastras de madeira escura e redes em formatos redondos se espalham pelo espaço contendo os ninhos do que quer que tenha falado comigo.
— E quem fala é...?
— Nanite, muito prazer. Você seria?
— Não distribuo meu nome para quem nem ao menos posso ver. Nomes têm relevância, Nanite. — Bato asas e subo em direção a Nanite, revelando um Corujin cinza chumbo com penugens pintadas e orelhas pontudas no topo da cabeça redonda. Os olhos, completamente pretos como céu noturno sem estrelas, me encaram de cima a baixo quando pouso na tora de madeira a sua frente, imitando sua pose altiva.
— Pois bem, agora me vê. Diga-me quem é e o motivo de estar invadindo nossa casa. Se não piaremos alto o suficiente para Akira nos ouvir de seu quarto. — quando termina de falar, vejo cabeças de diferentes tamanhos saírem dos ninhos, virando em nossa direção para observar.
— Não que eu tenha qualquer medo desse tal Akira, mas saiba que minha presença aqui é temporária. Acredite, não invadiria se não fosse necessário. — coço atrás da orelha com uma garra e estico as asas, olhando seu rabo balançar para lá e para cá em sinal de alerta. — Aliás, Nanite, você revela nomes demais para um Corujin. Soube que sua espécie seria uma das mais sábias de Kristallys, mas pelo visto...
Nanite inclina a cabeça para o lado, cerrando os olhos e usando uma de suas patas para indicar o andar de baixo e toda a propriedade do lado de fora.
— Apenas não temos razões para nos escondermos, Dragão. E você possui dez segundos para iniciar os detalhes de sua vinda, ou começaremos a cantar.
Suspiro sabendo que não tem jeito, ou eu conto ou tosto todos que estão aqui para evitar que chamem seja lá quem for. Com muita paciência, faço um "resumo extremamente resumido" da situação da missão e o que me ocorreu nessa manhã, como os donos da casa me encontraram no sótão que eu achei estar abandonado e como corri evitando qualquer um que passasse.
— Pretende ficar por quanto tempo?
— Não mais que hoje, simplesmente preciso me concentrar para reunir meu poder de mutação e voltar ao meu tamanho normal, voando para Juniper Central. Aliás, onde nos encontramos?
— Estamos na Cidade Prússia, alguns dias de viagem de onde quer ir.
Devo ter voado apenas em linha reta até aqui, atravessando reto o fundo da cidade do Rei, lamento.
Mas no final desta manhã, quando tiver meu poder descansado e pleno para uso, me erguerei em todo meu tamanho e voarei por poucas horas com as compridas asas em minhas costas. Chegando a tempo de contar com detalhes o fracasso da missão e as informações que corroem minha mente para minha superiora.
Pulo de onde estamos para o chão e me enrolo em um canto o mais afastado dos outros possível, tranquilo por saber que Nanite, a Corujin Rainha desse grande ninho, pelo que me parece, considera minha estadia algo sem perigos para seus protegidos. Caso contrário todos já teriam saído dos ninhos e me atacado assim que passasse pelo buraco que entrei, tenho certeza.
Uma das vantagens de ter entrado na casa de seres sábios e sensitivos: eles sabem sua real intenção.
E Nanite sabe que meu interior está pesado o suficiente para que eu não quisesse prejudicá-los.
Termino minha manhã dormindo pacificamente em cima da serragem fofa, sentindo olhos escuros sobre minhas escamas.
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