40: Nem tudo que reluz é ouro
Como prometido, capítulo novo como presentinho de Natal. Espero que gostem!
Eu sabia que estava brincando com o fogo quando te conheci
Então não pude te culpar quando me queimei
Bridget Devoue.
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• ALEXA LEBLANC •
O dia anterior ao aniversário do Damiano se revela como um dia cheio de tensão. Em partes pela sua ausência, mais emocional do que física, e também pela confusão que se instala na minha mente, muitos questionamentos provocados pelas circunstâncias em que cada acontecimento se desenrola ao meu redor.
Eu mal preciso mover uma palha para que o mundo se contraia à minha volta e me sufoque, e cada vez mais, me envolva em uma teia de perguntas que só uma pessoa pode responder, e que, até então, infelizmente essa pessoa simplesmente finge que nada de estranho se passa, quando nem na nossa cama ele dormiu nas últimas duas noites.
O escritório foi o seu refúgio, escondido atrás da justificativa de que precisava que tudo estivesse perfeito para o grande dia.
Inveja é tudo que eu sinto, vendo que ele prefere agradar a sua legião de convidados em vez de olhar nos meus olhos e dizer que está tudo bem. Sinto que, a esse momento, o meu coração e cérebro não acreditariam que está, de facto, tudo bem, mas eu já suportei tantos segredos e mentiras dele, que mais uma não faria tanta diferença.
Ainda assim, aqui estamos, a poucos metros de distância, mas com toneladas de coisas mal resolvidas que, mesmo que eu não queira admitir, nos deixam mais afastados um do outro do que fisicamente estamos.
Num clique suave, eu fecho a porta do meu escritório e, de um jeito inconsciente e automático, os meus pés me levam em direção à porta do escritório do Damiano. Mas recobro a consciência e paro a meio do caminho e pisco os olhos para acordar desse transe que toma conta de mim sempre que quer.
Dou meia volta e me arrasto preguiçosamente até a recepção do meu andar, onde encontro a Maddy com o nariz enfiado na tela do computador. Pigarreio para chamar a sua atenção e ela se levanta assim que nota que sou eu.
— Senhorita Alexa, posso ajudá-la com alguma coisa? — pousa as mãos no balcão, prestativa.
— Vou ficar ausente por meia hora. Preciso subir para falar com o meu pai — informo, sentindo nada além de um vazio agonizante que só pode ser preenchido por uma única pessoa que, para o meu completo sofrimento, agora está indisponível para mim.
— Certo, senhorita. Tem almoço marcado para as treze e meia com o Senhor Rossi. Quer que eu o avise que vai se atrasar? — ela pergunta, o que faz o meu coração errar uma batida.
O Damiano se atrasou em alguns dos nossos almoços e esteve tão aéreo em outros, que eu acabei por me esquecer desses encontros...
— Não, não será necessário — respondo, rapidamente disfarço a onda de emoções que surge dentro de mim — Estarei de volta antes disso.
A recepcionista assente, e eu dou meia-volta, tento afastar o peso que as suas palavras trouxeram. Um almoço com o Damiano...no meio de todo esse caos?
Tomo o elevador, perdida em pensamentos. Subir até o andar do meu pai não é apenas uma desculpa para sair daquele ambiente sufocante, é uma tentativa desesperada de encontrar alguma lógica no que está acontece ao meu redor. Lógica em ter visto o seu nome em um dos papéis no escritório do Damiano. Lógica na sua resistência em desfazer a sociedade com o agressor do Louis. Lógica em tudo ter se acalmado tão rápido depois da morte da Cindy, sendo que a cena do crime é uma das propriedades da família e a última pessoa a ter contacto com ela foi o meu pai. Lógica na sua quietude desde o lançamento da campanha e do seu silêncio mesmo após eu ter informado a invasão do Bryan no antigo apartamento onde eu e o Damiano morávamos.
Eu não quero acreditar que o meu próprio pai não seja quem eu cresci a acreditar que é, mas quando ele me mostra tanta frieza mesmo em relação a mim, eu não consigo deixar de lado o meu medo e consternação.
Preciso que parem de me tratar como se eu fosse uma boneca de pano frágil e manipulável. Preciso de respostas.
Quando as portas do elevador se abrem, respiro fundo e sigo pelo longo corredor que leva ao escritório dele. É um espaço frio e intimidante agora, nada como o corredor da felicidade, como eu o chamava sempre que vinha à empresa quando mais nova. Eu não sei o que espero encontrar, mas, ao cruzar a porta, percebo que ele não está sozinho.
— Tio German? — me aproximo do centro do escritório, vendo os dois em um debate acalorado, do qual não entendo o tópico.
Pelo canto do olho, eu posso ver o meu pai fechar apressadamente uma pasta na escrivaninha, mas consigo captar o conteúdo. Prendo a respiração ao notar que é a mesma pasta que eu encontrei há alguns meses no seu escritório de casa. Aquela com as fotos das modelos que mais parecem sósias.
Uma lanterna amarela se acende na minha mente, em sinal de total atenção. Eu preciso extrair o máximo de informação agora que estou aqui. A Cindy era uma dessas meninas e morreu brutalmente em circunstâncias misteriosas, e para piorar, na presença dos dois homens que olham para mim.
Eu preciso agir o mais friamente possível, e ainda assim, entender o que se passa à minha volta que ninguém parece disposto a me contar.
— Alexa, querida, que surpresa. O que faz aqui? — o meu pai pergunta, a sua voz carregada de uma falsa suavidade que não condiz com a tensão visível nos seus olhos.
— Resolvi passar para ver como está tudo — respondo, cruzo os braços e mantenho o olhar firme — Parece que o ambiente está...agitado. Algum problema?
O tio German se mexe desconfortavelmente, ajusta o paletó, mas não diz nada. O meu pai troca um olhar rápido com ele antes de responder.
— Apenas negócios, nada que precise te preocupar, Dauphin.
Negócios. Sempre a mesma desculpa. Eu dou um passo à frente, ignoro a presença do German e foco no homem que, até pouco tempo atrás, eu via como o meu porto seguro.
— Negócios como os que envolvem a Cindy? — a minha voz sai mais firme do que eu esperava, e vejo o meu pai empalidecer por um breve instante antes de se recompor — Eu não fui entrevistada pela polícia, mas deveria, sendo que fui uma das pessoas que mais interagiu com ela na sua última semana de vida. Sabe me dizer o porquê de não ter recebido uma só visita?
— Alexa, isso não é um assunto para você. Nem para nenhum de nós — ele diz, mais ríspido desta vez, enquanto o German pigarreia ao fundo.
— Talvez seja. Afinal, a Cindy era parte da sua "pasta de modelos," não era? Uma das muitas meninas loiras e de olhos azuis e verdes — insisto, sentindo o meu coração acelerar ao ver a reação dele.
A sua expressão vacila, mas logo volta ao tom frio e controlado que ele sempre usa para me afastar.
— Não confunda as coisas. A Cindy era apenas uma funcionária, e o que aconteceu com ela foi lamentável, mas não tem relação com a empresa, nem comigo — ele diz, a sua voz incrivelmente controlada.
— Eu nunca disse que ela tinha alguma relação com você, Maurice — a minha risada sai amarga, o seu nome escorrega da minha língua sem que eu consiga controlar e me faz estremecer — Mas é no mínimo curioso você não ter sido investigado. Seria apenas um protocolo.
O tio German intervém antes que o meu pai possa responder.
— Alexa, talvez você deva se acalmar. Esse tipo de acusação não ajuda ninguém — ele diz, uma tentativa de soar conciliador, mas o tom apenas aumenta minha desconfiança.
— Não fiz acusação alguma...ainda — rebato, os olhos estreitos para ele antes de voltar a minha atenção ao meu pai — Só quero entender porquê está tão envolvido nisso tudo. Por que não responde?
Ele se aproxima e apoia as mãos na mesa entre nós, os seus olhos agora fixos nos meus.
— Alexa, você não entende o que pergunta. E, sinceramente, é melhor assim.
— Melhor para quem? — murmuro, um calafrio percorre a minha espinha.
O silêncio que se segue é quase ensurdecedor, e a única coisa que consigo ouvir é o som do meu próprio coração a bater com força no peito.
— Responda, pai. Melhor para quem? Para vocês que se escondem nos seus escritórios para falar de meninas com menos da metade da vossa idade? É isso? Porque é disso que falavam, ou eu também não entendo do que falo?
— Alexa, já chega — o Maurice sussurra, apertando os punhos contra a madeira da mesa.
— Melhor para quem? Para mim, que tenho que lidar com a morte de uma menina que tinha tudo pela frente, com a sua pressão para me tornar a herdeira perfeita e depois ser atormentada pelo seu genro de eleição?! — continuo, no intuito de despertar a fera que existe dentro do meu pai. Talvez assim, ele exploda e me dê o que vim buscar — MELHOR PARA QUEM?!
— Alexa, não fale do que não sabe! — o Maurice levanta a voz, a sua máscara de controle desmorona por um breve instante.
Ele se endireita logo em seguida, mas a tensão no ambiente se torna insuportável. O German troca um olhar rápido com ele, como se estivessem em uma comunicação silenciosa, o que só me deixa mais nervosa e enojada.
— Talvez eu saiba mais do que imagina — respondo, cruzo os braços e inclino a cabeça, desafiadora — Como, por exemplo, que a Cindy não era apenas uma "modelo." Ela era um problema que precisavam resolver, não é?
Eu lanço a sentença no ar, uma acusação direta o suficiente para que ele entenda que já não confio cegamente em nada do que escorrega dos seus lábios, não como antes. O meu pai tem me mostrado ser muito diferente do que eu imaginava.
Ele contorna a mesa e dá um passo à frente, a sua sombra cobre o espaço entre nós.
— Cuidado com o que diz, Alexa — a sua voz baixa cinco tons, e o olhar que ele me lança me faz arrepiar. Ele nunca olhou para mim assim — Você quer entrar em territórios que não entende, e não vou permitir que me desrespeite desta maneira.
— Desrespeito? — a minha risada sai seca, quase histérica, enquanto tento disfarçar o nervosismo e a dor de estar tão emocionalmente desvinculada do homem que me deu a vida — Você fala de desrespeito quando esconde segredos que destroem tudo ao nosso redor? Quando me deixa sozinha para lidar com coisas que claramente têm a ver com você? Bryan, Cindy, essas fotos... Tudo isso está ligado a você, e você sabe disso!
— CHEGA! — a voz do Maurice ecoa pelo escritório, e por um momento, até o German parece surpreso — Acha que pode simplesmente invadir a minha sala e exigir respostas? Respostas que, se fossem dadas, poderiam acabar com tudo o que construímos?
— Construímos? — a minha voz quebra, carregada de incredulidade — Que tipo de pai sacrifica tudo, inclusive a filha, para "construir"? Que tipo de pai é cúmplice de monstros como Bryan Durant e August Freeman?!
Os nomes dos seus aliados parece atingir um nervo sensível. Ele fica em silêncio por um momento, o seu olhar obscurece.
— Você não sabe de nada — ele finalmente diz, a voz baixa, mas cheia de veneno — E sobre o Bryan...Eu fiz o que era melhor para você, mas foi você que se colocou nessa posição, Alexa. Talvez devesse começar a assumir a responsabilidade pelas suas escolhas.
Sinto a dor das suas palavras perfurar o meu peito, mas não deixo transparecer.
— Então é isso? Você se ausenta da culpa? Pela invasão, pela morte da Cindy, pelo caos que estamos a viver? — dou um passo para trás, tentando recuperar o fôlego — Se é isso, então talvez você devesse olhar no espelho, père. Porque tudo ao meu redor parece estar a desmoronar por causa das suas escolhas, não das minhas.
Ele não responde, mas o silêncio que se segue diz tudo. O meu tio olha para mim, visivelmente desconfortável, e aproveita a pausa para intervir.
— Alexa, talvez seja melhor você se retirar por agora. O seu pai está sob muita pressão, e essas acusações não levam a lugar algum.
Olho para o German com nojo, incapaz de acreditar que ele pensa que pode me silenciar tão facilmente.
— Vou me retirar, sim. Mas não antes de deixar claro que não vou parar. Quero respostas, e vou obtê-las, quer vocês colaborem ou não.
Sem esperar uma resposta, viro as costas e saio do escritório. Sinto os olhos deles me seguirem até o corredor. Assim que as portas do elevador se fecham, a minha máscara de coragem começa a rachar, e a dor do confronto toma conta de mim.
Preciso de respostas, mas, acima de tudo, preciso descobrir até onde o meu pai e o Damiano estão dispostos a ir para mantê-las enterradas.
A semana que se seguiu foi monótona. Digo isso porque me habituei a um estilo de rotina que, de alguma forma, foi influenciada pela forma com que o Damiano conduziu cada um dos dias. Ele sempre esteve no comando de tudo. Dos horários, dos almoços, das aparições públicas, de tudo. Foi como se ele soubesse em que paus mexer para que um objetivo fosse cumprido. E até então, eu não sei qual é esse objetivo. Eu apenas me mantenho aqui, no escuro.
— Oi, pessoal. Faz tempo que eu não faço lives por aqui. Espero que vocês estejam bem! — digo, assim que me conecto em directo no Instagram.
Da cozinha, sentada em uma banqueta no balcão, eu prendo o cabelo atrás das orelhas, e com o coração acelerado, vejo o número de pessoas na live subir rapidamente e os comentários encherem a tela.
— Tenho tentado me distrair com algumas coisas, então pensei em vir aqui falar com vocês — continuo, com um sorriso forçado enquanto a enxurrada de comentários começa a me engolir.
"Alexa, você está bem?"
"Você parece doente"
"Engordou um pouco, né?"
"Saudades das suas lives!"
"A diva está de volta!"
"Conte para nós o que tem feito!"
Eu passo os olhos rapidamente pelas mensagens, tento ignorar os mais curiosos e os inevitáveis comentários sobre o Damiano. Afinal, ele tem sido um assunto constante em tudo o que envolve a minha vida pública atual.
— Sei que a maioria de vocês deve estar a se perguntar o que aconteceu com a minha rotina, com os eventos, com... — dou uma pausa e evito mencionar o seu nome diretamente — Bem, muita coisa mudou recentemente. Às vezes, precisamos desacelerar para entender o que realmente importa, sabem?
Os comentários continuam, alguns mais insistentes:
"O Damiano ainda está com você?"
"Mostra o Damiano!"
"Por que está tão afastada?"
"Você parece cansada, Alexa. Está tudo bem?"
"Gorda"
Respiro fundo e sinto um aperto no peito. Queria ser sincera, mas também sei que não posso abrir certas feridas em público.
— Eu realmente agradeço pela preocupação de todos — digo e mantenho o tom leve — Mas hoje quero falar sobre coisas boas. Quero compartilhar algumas ideias com vocês para tornar os nossos dias mais leves, mais...esperançosos.
Uma pequena pausa. As minhas mãos tremem um pouco fora da câmera.
— Ultimamente, tenho experimentado coisas novas. Cozinhar mais em casa, organizar a minha rotina com pequenos rituais que me ajudam a focar no presente. Como vocês se desconectam do mundo lá fora? Quero saber as sugestões!
As respostas começam a pipocar na tela. Alguns falam sobre meditação, outros mencionam hobbies criativos como pintura e leitura. Um comentário em especial chama minha atenção:
"Desconectar é bom, mas às vezes encarar a verdade também é."
Os meus olhos ficam presos nessa frase por um momento. Será que é algum estranho que sabe demais ou apenas coincidência? Forço um sorriso para a câmera e ignoro a sensação incômoda que começa a crescer.
— Vamos cozinhar juntos?! — sugiro, uma tentativa aplacar o pânico repentino que me toma.
Tento fazer o mínimo de barulho possível ao falar e também ao descer da banqueta, pois, ele disse que ia trabalhar e acertar os últimos detalhes da festa, que será já amanhã. Então se trancou no escritório e não permitiu que eu ajudasse em absolutamente nada. Eu perguntei se podia dar uma sugestão sobre a decoração ou comida, mas ele disse que não precisava e já tinha tratado de tudo. Então só me restou abrir uma live e agora estou aqui, tentando lutar contra os meus próprios nervos, diante de uma tela e uma legião de fãs e haters.
— Então, eu pensei em...fazer um...uma...— me perco nas palavras enquanto ando pela cozinha, perdida — Eu acho que é melhor...
Faço uma pausa e noto que só vou me perder ainda mais se continuar, inspiro e expiro, substituindo o ar que me queima por dentro por um novo.
— Melhor deixar que decidam o que vamos cozinhar! — tento finalizar a frase com um sorriso, enquanto pego aleatoriamente alguns utensílios na bancada — Digam nos comentários o que acham que seria divertido preparar juntos!
Os comentários surgem rápido:
"Cookies!"
"Um empadão"
"Uma salada, você precisa"
"Panquecas!"
"Faz uma sobremesa simples!"
"Ramen"
"Você precisa voltar com a dieta"
— Ok, acho que um empadão é uma boa ideia — digo e abro o frigorífico para ver o que tenho à disposição — Tenho aqui massa pronta de outro dia, só preciso descongelar e fazer o recheio.
Enquanto pego os ingredientes, tento me concentrar na tarefa e ignorar o desconforto que cresce dentro de mim. A frase daquele comentário ainda ecoa na minha mente: "Encarar a verdade." Mas que verdade? Será que estou paranoica, será que vejo mensagens ocultas onde não há nada? Ou há alguém que sabe mais do que deveria?
— Certo, pessoal, aqui está o que vamos precisar: frango, alguns legumes e os temperos — continuo, enquanto começo a preparar os pedaços de frango.
Os comentários seguem animados, mas entre um ou outro surgem mensagens que me deixam ainda mais inquieta:
"Você está escondendo algo?"
"Você parece nervosa, Lex"
"Por que não fala sobre a festa de amanhã?"
"O Damiano está bem?"
A minha mão treme levemente ao cortar o peito de frango em pedaços, e acidentalmente corto a ponta do meu dedo.
— Merda! — solto baixinho ao ver o sangue brotar com certa velocidade — Acabei de me cortar — mostro o dedo ensanguentado.
Os comentários explodem:
"Cuidado, Alexa!"
"Você precisa de um curativo."
"Está tudo bem mesmo?"
— Está tudo sob controle, prometo. Cozinhar tem seus riscos, não é? Vou fazer um curativo — digo e puxo um pano de prato para enxugar o dedo e não sujar toda a cozinha.
Viro de costas, na intenção de ir até a gaveta dos primeiros socorros, mas os meus passos são silenciados pela única pessoa que me deixa mais nervosa do que qualquer comentário na internet.
— Decidiu começar a falar sozinha? — o Damiano pergunta, e eu me viro imediatamente e vejo ele apoiado no batente da entrada.
Está descalço, com uma calça de moletom folgada preta, uma regata cinza, o cabelo preso e os óculos postos. Aparentemente desleixado, um ar preguiçoso e tranquilo, mas sei que se passa muito mais na cabeça dele do que o que deixa transparecer.
— Não, estou em direto — explico e aponto com o queixo em direção ao telefone no balcão, onde com certeza os comentários duplicaram só por terem ouvido a voz dele.
— Hmm. Vim beber água — diz casualmente, mas sem sair do lugar.
— Eu posso pegar para você, para não ter que...— não completo a frase, mas ele entende, só não responde a isso, já que nota o pano de prato envolto no meu dedo.
— Isso é sangue? — os seus olhos se arregalam em surpresa e ele, sem se importar com as milhares de pessoas ligadas na live, vem até mim e me pega pelo pulso — O que aconteceu?
— Eu me cortei — engulo em seco pelo calor perigoso da sua proximidade — Enquanto preparava o frango.
Ele não me dá muita atenção, parece maníaco, enquanto em trezentos e sessenta graus o meu ferimento, que não é tão grande, mas o deixa afobado.
— Não se preocupe, não é como se você já não tivesse arrancado sangue de mim — eu murmuro, baixo o suficiente para o espectadores não ouvirem.
Ele me lança um olhar duro e reprovador, como se quisesse me punir por ter dito o que disse, mas consigo enxergar a sua sede dilatar as suas pupilas. Ele não só quer me castigar, como também adora me ver sofrer.
Eu fico violentamente acanhada, as minhas bochechas se aquecem, e quando ele enfia o meu dedo na própria boca, as minhas pernas bambeiam e o coração acelera.
Esse é o um show completo para qualquer um ligado ao meu Instagram nesse momento. E essa nem é a minha maior preocupação. Eu me preocupo em não deixar transparecer pelo resto da live que eu estou completamente desejosa de ser lambida de cima a baixo desse jeito, por ele.
— Deixa eu te fazer um curativo — ele diz, mas sei que não é um pedido. Ele vai fazer o curativo, quer eu queira, quer não.
O Damiano me conduz até o balcão, segura o meu pulso com firmeza, mas sem machucar. A sua postura é imponente, como se até a tarefa mais simples, como fazer um curativo, precisasse de total controle. Ele me senta na banqueta, e os seus olhos encontram os meus por um breve instante, intensos, desafiadores.
— Fique quieta — ele ordena, e eu nem tento discutir.
Ele pega a caixa de primeiros socorros na gaveta e começa a procurar o que precisa. O silêncio entre nós é insuportável. O som da sua respiração e o leve tilintar dos frascos na gaveta são a única coisa que consigo ouvir, além do meu coração ainda acelerado.
— Você sabe que tudo isso não é necessário, certo? — tento recuperar algum controle da situação.
Ele apenas lança um olhar curto e ríspido por cima do ombro, como se dissesse "Não me desafie."
Ele volta com um algodão embebido em antisséptico e, sem aviso, pressiona sobre o corte. Eu quase uivo de dor, mas me recuso a reclamar.
— Você deveria ser mais cuidadosa — murmura, concentrado no que faz. A sua voz soa como uma mistura de crítica e preocupação.
— Eu não me cortei de propósito — respondo com um tom defensivo e observo cada movimento dele.
— Mesmo assim. Não gosto de te ver sangrar.
A declaração me pega de surpresa. É algo tão simples e controverso, e que vindo dele, soa quase como uma confissão. Ele me fez sangrar, então sei que a sua frase não se deve a algo físico. Sei que estamos a ser assistidos, mas sinceramente, eu não me importo com mais nada quando ele está por perto.
Fico em silêncio enquanto ele termina de limpar o corte e pega um pequeno adesivo. As suas mãos grandes e firmes são surpreendentemente delicadas enquanto posiciona-o sobre o ferimento.
— Pronto — endireita-se. Ele ainda está perto demais, e o calor da sua presença é sufocante.
— Obrigada — murmuro, a minha voz mais baixa do que gostaria.
Ele ergue uma sobrancelha, como se esperasse algo mais.
— Não vai me dizer que eu sou controlador ou algo assim? — pergunta baixo, claramente para que os espectadores não ouçam, e o canto da sua boca se curva em um sorriso presunçoso.
— Eu não preciso dizer. Você já sabe — rebato, tento esconder o nervosismo.
O Damiano ri, aquele riso baixo que sempre parece carregar um tom de desafio. Ele se inclina levemente, invade o meu espaço mais uma vez, até que os nossos rostos estão a poucos centímetros de distância.
— Talvez eu seja mesmo. Mas você gosta disso, não é? — sussurra, e o meu corpo todo se aquece com a intensidade das suas palavras.
A minha respiração falha por um segundo, e sinto o meu rosto arder. Antes que eu consiga pensar em uma resposta, ele se inclina contra mim, chupa o meu lábio inferior e me convida para um beijo. Eu devolvo e fecho os olhos, pousando a mão no seu abdômen trincado por cima da regata. Ele não parece querer me punir como achei que quereria. Pelo contrário, o Damiano me beija com uma lentidão e paixão absurdas, que mais parece uma recompensa. Ou ainda, um pedido de desculpas.
Ele chupa, lambe e morde os meus lábios, passa a ponta da língua no céu da minha boca e quase me devora com um simples beijo.
E então por fim, ele se afasta, pega um copo e vai até a geladeira.
— Agora que você está melhor, vou beber a minha água — diz casualmente, como se nada tivesse acontecido.
Eu o observo em silêncio, enquanto luto para recuperar a minha compostura. Os meus lábios formigam pela recente atividade, e se antes eu estava excitada, agora estou a pingar de tesão pelo homem que abandona a cozinha com um copo de água em mãos.
Ele sempre faz isso. Entra na minha vida, bagunça tudo e sai como se fosse o dono do mundo. Só que o grande problema não é esse. O problema é que, para mim, ele realmente é.
Preciso de alguns segundos para me lembrar de que vinte mil pessoas me assistem no Instagram, e que, depois do que aconteceu aqui, não só os comentários, como também a minha caixa de mensagens, os tabloides e as páginas de fofoca vão estar cheias das imagens desse momento.
— Então, onde nós estávamos? — pergunto após um suspiro, e começo a ler alguns comentários.
As notificações no meu telefone não param de subir. A live é um sucesso, e sei que não é por minha causa. É por causa dele.
"Meu Deus, esse homem é perfeito!"
"Dois gostosos"
"Como vocês conseguem ser tão quentes juntos?"
"Alguém dá um Oscar para esse casal!"
E, claro, os sempre presentes haters:
"Ela se sujeita a isso? Patético."
"O Damiano claramente controla tudo. Isso não é amor."
"Era pra ser uma live na cozinha e virou pornografia?"
Reviro os olhos e decido ignorar os comentários mais maldosos. Sempre tem pessoas prontas para criticar, mesmo sem saber a história completa.
— Então, pessoal, vamos voltar ao que interessa, certo? — tento colocar o foco de volta no assunto da live.
Abro um sorriso, ainda que a minha mente esteja a mil. O Damiano está no escritório e provavelmente ri de tudo isso, como se o mundo inteiro fosse apenas uma piada.
"Mostra ele de novo!" alguém comenta, e eu dou uma risada baixa.
— Ele só veio beber água e voltou a trabalhar, meninas. Já bagunçou o meu roteiro o suficiente por hoje.
Os comentários se enchem de emojis de risada, corações e pedidos para que ele volte. Tento manter o controle da situação, mas, lá no fundo, não consigo tirá-lo da cabeça. Ele me desconcentra, mesmo à distância.
Sem muito por onde ir, me limito a terminar de cozinhar, agora com mais cuidado. Estendo a massa depois de descongelar e pego uma forma de empadão para untar.
Depois de estender massa na forma untada, vem o recheio. Coloco o frango desfiado cozido com alguns legumes e temperos, coloco também um pouco de queijo de cabra e fecho o empadão com uma camada de massa. Pincelo com gema de ovo antes de levar ao forno e me sentar na frente do telefone para esperar a empadão cozer.
— Agora é só esperar — digo com um sorriso pequeno.
Os comentários continuam a subir na tela, perguntando sobre a receita, elogiando a minha habilidade na cozinha e, claro, pedindo para o Damiano voltar. Ignoro a última parte e decido focar no que consigo controlar: responder perguntas sobre o empadão.
— O segredo é a massa bem fina e o recheio bem temperado. Aprendi na França — explico enquanto dou uma olhada no chat — E, para quem perguntou, sim, queijo de cabra dá um toque especial.
A verdade é que estou apenas a tentar preencher o silêncio. A espera pelo forno me deixa inquieta, mas não tanto quanto a lembrança do Damiano aqui na cozinha mais cedo.
— Enquanto o empadão está no forno, vamos falar de outra coisa. Alguém tem alguma dúvida ou quer compartilhar uma receita favorita? — pergunto, tentando engajar a audiência.
O aroma começa a tomar conta da cozinha, e o meu estômago ronca levemente.
Minutos depois, o timer do forno apita, e eu me levanto para retirar o empadão. O dourado perfeito na massa me arranca um sorriso genuíno.
— Hora da verdade! — seguro perto da câmera para mostrar o resultado.
Os comentários explodem de elogios, enquanto eu desenformo o empadão e o transfiro para um prato. Lambo os dedos antes de pegar uma faca e sorrir para a câmera. A crocância faz um som que me satisfaz a medida que corto, e a minha ansiedade não me deixa esperar que esfrie. Então pego um garfo, e com um pedaço do empadão num prato mais pequeno, volto a me sentar na banqueta para provar.
Seguro o garfo com o pedaço de empadão fumegante e sorrio para a câmera.
— Vamos lá, a primeira mordida! — digo e coloco o pedaço na boca. O sabor é delicioso, exatamente como eu esperava. Abro um sorriso, tentando manter a animação — Ficou perfeito! Vocês precisam tentar essa receita.
Enquanto mastigo, olho para os comentários e começo a responder alguns, rindo casualmente.
— Sim, usei queijo de cabra! Acho que faz toda a diferença.
Mas então, uma mensagem surge na tela e me faz parar por um instante.
"A verdade sempre encontra um jeito de aparecer, não é?"
Franzo a testa, ainda mastigo, e sigo para outro comentário.
"Certas alianças custam caro. Espero que esteja preparada."
Engulo o pedaço do empadão com dificuldade, sentindo o meu estômago começar a se contrair. Tento ignorar, mas os comentários seguintes são impossíveis de deixar passar.
"Você realmente conhece a pessoa com quem divide a cama?"
O empadão, que antes parecia tão apetecível, agora pesa como uma pedra na minha boca. Passo o garfo no prato e tento manter o controle.
— Vocês estão estranhos hoje — brinco, mas a minha voz sai trêmula.
Os comentários continuam, cada um mais enigmático que o outro:
"Nem tudo que reluz é ouro. Cuidado com quem usa máscaras ao seu redor."
"Cuidado com segredos de família...Às vezes, eles são fatais."
Aperto os lábios e respiro fundo, mas a sensação de pânico já toma conta de mim. Os comentários parecem vir de todos os lados, uma enxurrada de frases enigmáticas que agora soam como gritos.
"As maiores traições vêm de quem menos esperamos."
As minhas mãos começam a tremer, e o prato escorrega levemente na bancada. Aquele espaço que deveria ser o meu refúgio agora parece sufocante.
— Pessoal, acho que vou encerrar por hoje... — digo, a voz baixa e instável — Obrigada por estarem aqui. Nos vemos em breve.
Com os dedos trêmulos, paro a transmissão antes que alguém perceba o quanto estou fora de controle. Largo o prato no balcão e corro para o banheiro, a bile ácida sobe pela garganta.
Assim que alcanço a pia, vomito, o corpo treme enquanto flashes de cada comentário enigmático passam pela minha mente. O meu coração parece querer sair do peito.
Quando finalmente consigo respirar, me levanto e olho para o espelho. O meu reflexo parece distante, perdido.
As palavras dos comentários ainda ecoam na minha cabeça e criam mistura de paranoia, raiva e medo. Alguém sabe mais do que eu. Alguém está a tentar me atingir.
E, pior de tudo, uma parte de mim sabe que algumas dessas mensagens têm um fundo de verdade que eu não estava pronta para encarar.
Pego a escova de dentes, ainda tendo espasmos da recente sessão de vômitos, e lavo a boca, enquanto luto para ocupar a mente com outra coisa. No entanto, só consigo pensar naqueles comentários, e como eles, de alguma forma, me remetem ao Damiano e a forma como ele tem agido ultimamente.
Amanhã é o aniversário dele, e o que deveria ser um dia tranquilo e feliz, mais parece que será o dia do juízo final.
O gosto amargo ainda está na minha boca, assim como as palavras dos comentários que li. Não importa o quanto eu tente me concentrar em outra coisa, tudo parece me levar de volta ao Damiano de novo, de novo e novo.
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Gostaram? Alguma teoria sobre o que estará nos próximos capítulos?
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Até mais!
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