7 - Vidro de cereja
Havia apenas uma coisa que poderia impedir uma fada de responder a um chamado.
Vidro.
Vidro era como uma prisão para fadas, eles não se conseguiam mexer através dele, não se conseguiam teletransportar através dele e muito menos atingir o tamanho de um ser humano se estivessem presas dentro de algo feito de vidro.
Melinda ainda não sabia disso, mas rapidamente iria descobrir.
Todos têm a sua própria prisão, aquele lugar que te prende e não te deixa sair por muito que lutes contra as correntes, o de Cila era o vidro, o de Melinda eram suas cicatrizes do passado, com várias caras e vários nomes, um amontoado de monstros que anos de terapia ainda não haviam vencido a cem por cento.
Estava mais focada em chegar ao quarto de Inaïa, afinal das contas fôra ali onde estivera, nem entrara no quarto de Cerise, porém ao passar na frente dele percebeu um movimento diferente. Cerise estava com as costas viradas para a porta e falava com alguém, mas Melinda não via mais ninguém.
Seguindo o mesmo princípio de que dois mais dois são quatro, Melinda percebeu que iria encontrar ali o objeto de sua procura. Embora com muito receio, entrou no quarto pé ante pé e foi avançando fazendo o mínimo de barulho possível. Na verdade não se apercebeu de que seus pés apenas estavam tocando no chão deslizando, não estava andando, estava planando.
Já perto de Cerise, viu-a falando para uma vela, pelo menos foi o que lhe pareceu num primeiro momento, mas eis que logo a seguir percebeu o copo onde a vela estava fazendo peso, um pouco em desequilíbrio e jogando um aroma delicioso de cereja pelo quarto.
Dentro do copo, aprisionada, estava a fada que procurava com ansiedade.
Melinda arregalou os olhos.
Não sabia o que dizer a Cerise, nem como tirar Cila daquela situação. Simplesmente se viu entre a espada e parede.
Como é que Cila se deixara ser apanhada?
Como é que uma Artemísia, uma protetora de seres mágicos, escolhida a dedo por um panteão de Deuses havia se deixado capturar por uma adolescente?
"Espera...", de repente lembrara com clareza sobre aquela curiosidade sobre as Artemísias, sendo assim, como é que Inaïa precisava de ser investigada?
Era óbvio que não era uma trocada e era óbvio que era uma fada majestosa.
Podia ter-se tornado uma adolescente, podia ter as hormonas gritando dentro de si, mas não deixara de ser a tricampeã de tiro ao alvo mundial, não deixara de ser uma agente dedicada e perspicaz. A sensação de ter sido feita de parva, estar sendo usada e enganada atingiu-a como um raio. Não era uma sensação agradável, mas era uma sensação familiar, uma sensação amarga que parecia prender a língua ao céu da boca.
Encostou a porta do quarto de Cerise da maneira mais silenciosa que conseguiu, depois aproximou-se outra vez de Cerise, até que esta deu um pulo de susto quando a viu. Os seus olhos arregalaram-se de forma radiante. Um brilho vermelho resplandeceu deles, não um vermelho fogo, um vermelho de cereja madura.
— Melinda?
Cerise tentou esconder um copo que aprisionava Cila em vão.
Cila chutava o corpo com as mãos e com os pés e em vários acessos de fúria e desespero parecia estar se estripando em pó de fada, que explodia de todo o seu corpo de forma incontrolável.
Melinda soube o que se estava a passar, eram aqueles ataques de nervos que Cila tinha.
— Solta-a! — ordenou Melinda e a sua voz de comando surpreendeu Cerise, que teve a impressão que estava à frente de uma autoridade e não de uma adolescente como ela.
— Não posso, ela é a prova que fadas existem. Eu sabia... — a voz aumentara nestas últimas palavras. Sem dúvida Cerise já pensara muito naquele assunto.
— Estou a ver, mas ela pode morrer sufocada — falou Melinda assustada, Cila começou a acalmar-se depois de fazer atenção à adolescente ruiva.
Cerise olhou para Melinda inquisidora.
— Tu não estás surpreendida.
Se Melinda pudesse teria passado nos lábios batom de cieiro, eles estavam tão ressequidos que lhe provocavam até mesmo dor nos lábios.
— Cerise, solta-a, por favor!
— Só se ela prometer não ir embora e falar comigo.
Parecia bem o tipo de exigência de uma adolescente que acabara de descobrir que a fada do dente de fato existe. Não parecia ser nada demais, mas Melinda sentia o desespero de Cila e a vontade que ela tinha de se escapar de sua prisão de vidro. Apesar de uma fagulha de desconfiança sobre as Artemísias se tivesse acendido dentro de si há apenas uns segundos, ela sabia o que era sentir-se aprisionada a uma situação e sem saída. Tentou então levar a situação como a adulta que era, e não como a adolescente que parecia.
Juntou-se a Cerise, de olhos e tentou desviar o seu olhar para si, esses olhos verdes acinzentados que de vez em quando viravam vermelhos como o fogo.
— Cerise, ouve-me!
Cerise a olhou bem nos olhos e bebeu as suas palavras com a máxima atenção.
— Ela não vai fugir antes de falar contigo. Eu juro.
— Como podes jurar?
— Acredita em mim!
E Cerise acreditou, porque algo em Melinda lhe transmitia aquela confiança que não sabia explicar. Inclusive sentira uma espécie de elo entre as duas, o que poderia parecer louco, pois só a conhecia desde essa noite, desde horas atrás. Então tirou o frasco da vela e o copo de cima de Cila.
Cila voou rápido no mesmo instante e bem no momento em que Cerise pensou que ela ía desaparecer para nunca mais a ver, Cila adquiriu o seu tamanho humano e fez Cerise (que estava de joelhos) cair para trás no chão.
— Como assim? — inquiriu espantada.
— Miúda danada — disse Cila — Porque me prendeste?
A sua voz estava bem mais fina do que o normal. Melinda soube que tinha a ver com os últimos momentos de stress.
— Porque és uma fada.
No momento em que disse aquilo, Cerise teve noção de como soou ridículo, mas ainda assim levou com o olhar julgador de Melinda e da fada.
Cerise sabia tinha mil perguntas momentos antes, mas todas se calaram, não sabia o que perguntar ou como reagir, sentia-se uma espécie de sequestradora. A culpa atingiu-a.
— Desculpe, fada. Me desculpe.
— O meu nome é Cila — ela respondeu, de repente sentindo-se uma espécie de celebridade muito requisitada.
— Cila? Pensava que as fadas tinham nomes diferentes — comentou Cerise.
— Diferente como o quê?
— Sei lá, talvez Cerise, como o meu.
Melinda sorriu, apertou os lábios e os escondeu com as mãos e Cila olhou para ela pálida e de olhos arregalados. Os seus olhos azuis pareciam ainda mais azuis.
— Tu sabes? — Cila perguntou quase em um sussurro — , mas...
Mas ela não sentia que Cerise sabia sobre sua essência mágica, nem o seu poder estava potencializado. Era como a chama daquela vela acesa porém muito pequena para que se pudesse notar.
— Eu sei o quê?
— Tu também és uma fada, Cerise — lançou Melinda, deixando Cila à-toa, já imaginando o que Tânis e Sana, sim, sobretudo Sana diriam sobre aquela revelação do nada.
Cerise deu uma gargalhada. Esperou que Melinda e Cila se rissem junto com ela, porém elas a olhavam sérias e então Cerise percebeu a seriedade, notoriamente sem nenhum tipo de resistência, como se no fundo já soubesse.
No fundo ela sabia sim, fazia parte da sua essência, ela só não sabia porque é que nunca lhe acontecera nada de extraordinário, porque é que nunca sentira magia em si ou em algo que fazia no seu dia-à-dia, se na verdade sempre se sentira mais que uma simples humana.
— É por isso que vieste? — perguntou olhando para Cila. — Para me dizer que sou uma fada?
Melinda e Cila se entreolharam, não sabendo bem o que dizer, mas "perdida por cem, perdida por mil" pensou Melinda, e então, juntas como uma dupla, ambas falaram sobre Inaïa e o que ela seria no mundo das fadas. Realmente contaram tudo, sobretudo Melinda, com alguma resistência de Cila que apesar de tudo ajudava nas explicações que a própria Melinda desconhecia.
— Nossa! — exclamou Cerise, a minha irmã é uma Artemísia? Ou vai ser? Posso ser uma também?
— Mmm, não é assim que funciona — disse Cila.
— É, precisas de ser escolhida pelo Panteão de Deuses — constatou Melinda, lembrando do que elas haviam dito da primeira vez que as vira.
Cila a olhou fazendo uma expressão de estranheza, como se acabasse de lembrar ou como se simplesmente tivesse esquecido de como uma Artemísia é escolhida.
Melinda não tinha falado aquilo à toa. Ela ía entender, de algum jeito o porquê de seu instinto estar a alertá-la.
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