5 - Idêntico ao mal
Os ensaios tinham acabado.
Inaïa olhou em volta em busca de Melinda que lhe sorriu de volta.
— Vou esperar o meu pai vir me buscar em frente ao anfiteatro. Será que a tua tia deixa tu esperares comigo? Às vezes ele demora um pouco por causa do trabalho dele.
Melinda olhou para Tânis fingindo implorar por sua permissão.
— Ela virou insolente — sussurrou Sana no ouvido de Tânis. — Adolescentes são sempre iguais. Ela pensa que as hormonas dela não acompanharam a mudança de corpo. Ahah, enfim, a arrogância da idade.
— Tia? — perguntou Melinda para Tânis, que fazia literalmente a egípcia ouvindo aquilo. — A Inaïa convidou para jantar em casa dela hoje. Eu posso?
Sana revirou os olhos, Cila olhou para o lado para não verem o seu sorriso debochado, segurando-se para não cair na risada e Tânis olhou para Melinda como se a estivesse a ver pela primeira vez. Definitivamente Melinda virara uma adolescente. Falsaaaa.
— Claro, sobrinha. Podes sim, tu és tão bem comportada, porque não haveria de deixar?
Melinda entendeu o sarcasmo no tom de voz de Tânis e a olhou embasbacada.
— Agora a sério, isso é um sim?
Tânis anuiu com a cabeça afirmativamente, mesmo que não retirasse o seu sarcasmo. Melinda a surpreendera com a sua atuação.
A noite estava escura como o breu, não fossem as luzes de Biarritz, por isso Melinda não viu a cara do pai de Inaïa, apenas o cumprimentou de forma sofisticada quando entrou diretamente pela parte de trás do carro.
Dissera adeus a Tânis e às outras, mas sabia que Cila se enfiara no seu bolso, em seu tamanho original. Ela ouviria tudo, mesmo que não pudesse ver. Era arriscado se mostrar a fadas que nem sabiam que eram fadas.
Só quando Melinda entrara na casa de Inaïa, o pai dela se virou de frente para Melinda. Na mesma hora Melinda sentiu que poderia cair ao chão. Faziam apenas dois dias que vira aquele rosto atrás das grades. Como aquilo era possível?
Óscar?
✨✨✨
— Melinda?
Faltara-lhe o ar.
Pela segunda vez naquele dia, alguém lhe pedia para respirar.
— Alguém traga um copo de água, a minha amiga está passando mal — pediu Inaïa.
Melinda sentiu que poderia desmaiar. Não entendia porque de repente parecia tão frágil. Ela não era frágil, ela era forte. Ela só fôra frágil quando... engoliu em seco. Um sabor asqueroso fez-se sentir em sua boca, juntamente com um monte de memórias amargas. Não pensava nisso há um tempo e de repente aquilo a atormentou, novamente. Precisava mesmo respirar fundo, ganhar fôlego e recuperar as suas forças. Então lembrou de seu estado de adolescente. Até que idade ela recuara, afinal? Será que aquele pensamento horrível e repentino aparecera para si tão mortífero porque ela havia recuado até seu décimo quarto ano de vida? Com essa idade ela empunhara a sua primeira arma e estava naquele preciso momento com vontade de ter uma arma nas mãos para poder se defender.
O pai de Inaïa era uma fotocópia apenas ligeiramente modificada de seu avô.
Uma moça veio-lhe dar um copo de água. Ela emanava uma sensação tão leve, tão parecido com a sensação que aquela água fizera na sua boca.
— Melinda? Estás melhor? — perguntou Inaïa, realmente preocupada.
— Ela parece melhor — disse a jovem com o copo de água. Parecia só um pouco mais velha que Inaïa.
— Olá, também fazes ballet?
Melinda olhou aqueles olhos contrastados. Imaginou ver uma linha azul rodeando a cor castanha. Nunca tinha visto olhos assim.
— Não, eu não, eu só... eu gosto de ver.
Para seu dissabor, a adulta no seu corpo de adolescente percebeu que Sana não estava completamente errada em suas falas arrogantes, não era só o seu corpo que voltara à adolescência. Caída a ficha, a sua alma gritou em pânico, não queria ter de viver todas aquelas memórias outra vez, não queria ter de sentir de novo tudo que sentira, até porque as memórias nunca haviam realmente ficado no passado, elas a perseguiam e ela lutava a cada momento para não as deixar vir à tona. Não queria voltar a sentir toda a dor com aquela mesma intensidade.
— Eu sou irmã da Inaïa, é um prazer conhecer-te. Esse teu ruivo é natural? É magnífico. É serio mesmo.
— Sim, é natural — respondeu Melinda, tentando focar a sua atenção na moça, mas quando se apercebia estava fixando os seus olhos e apenas vendo a sua boca a mexer-se. Queria ter ouvido quando a moça dissera o seu nome.
— Cerise — pediu Inaïa, aproximando-se de novo. — Acalma-te e para de falar, estás a assustá-la. Desculpa, Melinda.
— Pois é, desculpa, Melinda — disse Cerise. — Estou a ter uma crise de logomania, desculpa mesmo. Não quero ser inoportuna. Tens um nome muito bonito.
— O que é logomania?
— É um transtorno de compulsão de fala — explicou Inaïa. — A minha irmã tem isto quando está ansiosa com alguma coisa.
Melinda estava ouvindo, porém o que ela queria mesmo saber era se aquele homem que Inaïa dissera ser seu pai era na verdade era o seu avô, foragido e provavelmente com outra família. Uma história de bigamia talvez. Mas como ele estaria ali? Ele estava em Veuna, um castelo prisional de onde era impossível fugir, sobretudo para um simples humano. Mas então porque aquele homem era tão parecido com Óscar? Na verdade era igual. Ela nunca esqueceria aquela cara, não mais. Ele era a prova viva de que seu sangue tinha nódoas em sua linhagem, nódoas rigidamente sujas.
Olhou em volta, em busca do homem pela casa. E que casa! Era absolutamente enorme.
— O meu pai foi buscar-te um chocolate ao nosso armário de doçarias — disse Cerise, tentando controlar a sua compulsão comunicativa.
Melinda sabia bem o que era ter uma compulsão, ela passara por isso na adolescência, depois de sua força para acabar com o seu inferno, ela se afundara no que lhe dava mais prazer momentâneo naquele momento... chocolates, exatamente aquilo que o pai de Inaïa e Cerise fôra buscar para si.
— O meu pai é ótimo — disse Cerise —, mas ele pensa que todo o mal estar parte com chocolate.
É, pensou Melinda, ela também pensara assim uma boa parte de sua vida. Será que antes de voltar a Fairie ela ainda iria voltar a Portugal? Veria seus colegas, amigos... Maurício?
Mal seu pensamento passou por Maurício o seu coração pareceu saltar em seu peito, a sua boca ficou seca, não conseguiu tirar o rosto de Maurício de seus pensamentos.
Era incrível como toda aquela intensidade da adolescência surgia de novo, tão nova e tão antiga ao mesmo tempo. Esquecera-se de como tudo é intenso nessa idade.
Cerise e Inaïa falavam para si, mas os seus pensamentos a levavam para longe o tempo todo. Perguntou-se se tivera alguma espécie de TDAH para que isso acontecesse. Não lembrava de ser assim na adolescência até aquele momento. De fato ela era assim, não conseguia focar muito tempo no que as pessoas lhe diziam, sobretudo se falassem muito. A sua mente vagava sem que ela tivesse controle. Tinha muito mais controle próprio em seu corpo adulto de trinta anos.
Mais uma vez voltou a ouvir Cerise. Ela precisava de a ouvir. Estava ali com um propósito.
—... A minha irmã mais velha tem trinta anos, acreditas que fez dez anos de universidade e hoje em dia nem trabalho tem. Dedica-se a uma vida de dona de casa e mãe. Eu acho muito maçador.
— Trinta anos — repetiu Melinda. Por pouco não falou "eu também tenho".
— É, chama-se Danaé. Depois temos a Lorelei, uma fofa.
— Ela conheceu a Lorelei — disse Inaïa. — Quero dizer, mais ou menos.
— Ela é linda demais, mas ela parece que mete um disfarce de bibliotecária.
Melinda riu, riu com tanta espontaneidade que as duas irmãs riram também. Aquela vontade de rir também era mais intensa que na vida adulta. Melinda tinha pena de não ter tido aquilo... amigas e conversas que a fizessem rir e que por momentos a fizessem feliz. Acabava de entender a verdade na frase de que a felicidade é uma utopia. Quem fôra que lhe dissera aquilo? Maurício?
E então o pai delas voltou com o tal chocolate, como se tivesse ido ao outro lado da rua e não ao outro lado da casa. Quão grande era aquela mansão, afinal?
— Toma aqui um chocolate, minha jovem!
Não era a voz de Óscar
Não era o timbre de Óscar.
Não eram as palavras loucas de Óscar.
Em nada soava a Óscar...
Mas aquele rosto.
Como poderia aquela pessoa não ser Óscar?
Melinda não conseguia entender, e não estava sabendo lidar com isso. Ela sentia aquela necessidade louca de entender. Será que Cila, que estava em seu bolso, conseguia ver o rosto do pai daquelas jovens tão simpáticas e amigáveis?
Estava-se sentindo uma péssima investigadora, uma péssima pessoa, uma nulidade, um estorvo no mundo, um...
"Para, para, para", pensou "Estás a ter pensamentos destrutivos, estás a pensar o que a Estela queria que pensasses de ti mesma, para de te diminuir. Para, só para."
Pegou no chocolate que o homem entregou na sua mão, abriu a embalagem e comeu saboreando cada pedaço, com medo de perder a mínima migalha. Aquilo preenchia o seu vazio, pelo menos... de momento.
✨✨✨
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