4 - Aramak
Ainda faltava quase um mês inteiro para o julgamento de Óscar no tribunal de Fairie e Melinda pensou em como não iria aguentar tanto tempo ali. Por muito que houvesse gostado daquele mundo, ela deixara pessoas que amava do outro lado, pessoas que haviam chorado a sua morte antes de voltar à vida.
E havia Maurício. Precisava de lhe dizer o que sentia antes de o perder.
Se as Artemísias precisavam de sua ajuda e dos seus dotes como investigadora, ela estava à disposição, com certeza. Talvez isso a ajudasse a ordenar as ideias para se ajudar a si mesma em suas buscas.
O comboio Além-fronteiras tornar-se-ia um transporte corriqueiro para si.
Descera num lugar sujo. Viu um rato atravessar a rua.
— Onde estamos? — perguntou a Sana, a Artemísia ao seu lado. Os seus olhos em bico tinham acabado de se prolongar um pouco mais na entrada de um anfiteatro. Tinha um tapete vermelho à entrada, mas estava fechado, na penumbra.
— Não parece óbvio?
Melinda seguiu o seu olhar e leu as palavras francesas que intitulavam o anfiteatro em questão.
— Estamos na França — constatou Melinda.
— Mais precisamente em Paris — disse Tânis, a skinwalker.
Melinda nunca tinha estado em Paris, pensara fazer aquela viagem de outra maneira, noutras circunstância. Vista daquela forma, a cidade não parecia ter assim tanto glamour. E sentiu inclusive um cheiro nauseabundo, que vinha de algures atrás de si. Viu mais dois ratos atravessarem a estrada. Nunca tinha visto roedores se perambulando pelas ruas.
Tânis olhou o seu pulso.
— Estamos longe.
— Quão longe? — perguntou Sana que já conhecia Tânis só pelo olhar.
Tânis comprimiu os lábios e até sorriu de deboche.
— Estamos longe de horas.
— Como assim? — perguntou Cila.
— Não devíamos estar em Paris.
— Então por que raios estamos em Paris? — inquiriu Sana bruscamente.
Gotas de chuva começaram a cair do céu e tanto a fada, quanto a skinwalker, quanto a fénix julgaram Sana culpada por aquilo. E Sana soube disso olhando para cada uma à vez.
Alguém passou correndo por eles.
— Kataraméni vrochí — disse o homem, provavelmente pensando que nenhuma daquelas mulheres entenderia, mas todas elas entenderam.
Ele havia dito "maldita chuva" em grego.
Melinda lembrou da mulher que passara por si tempos atrás e que ela também falara em grego. Porém tinha sido em Portugal, na cidade do Porto. E agora acabava de acontecer o mesmo numa cidade de França. Achou de uma coincidência por demais bizarra.
Pensou "será que os gregos são assim tão viajantes?".
— Não sei o que se passou — desculpou-se Tânis — o aramak detetou poder forte de fada aqui quando o comboio estava a viajar de plano e então parou.
— Aramak? — perguntou Melinda franzindo o cenho.
Tânis estava a falar de seu relógio de pulso para o qual olhava de vez em quando.
— Sim, o aramak é este aparelho aqui, tem a aparência de um relógio de pulso por ser discreto e confortável. A sua aparência original não é muito portátil.
— Eu entendi que isso é o aramak — constatou Melinda. — Estava perguntando o que é um aramak.
— Um aparelho que deteta poder de fada — respondeu Sana em seu tom enfadonho.
Melinda revirou os olhos. A falta de entusiasmo de Sana, aliada à sua brutalidade ou à sua antipatia estavam-na fazendo apanhar implicância à kitsune. Não era comum apanhar implicância a alguém.
— Bom — disse Melinda. — Talvez estivesse uma fada por perto, talvez aquele moço grego com um olho de cada cor fosse uma fada.
— Um olho de cada cor? — inquiriu Cila olhando para Melinda estupefata. — Como conseguiste discernir a diferença de cor nesta escuridão?
Melinda a olhou também intrigada consigo mesma.
— Os olhos dele tinham realmente uma diferença de cor muito chamativa, mas acho que foi porque quando ele olhou para mim a luz da lua refletiu nele — respondeu Melinda.
Embora aquilo fosse assunto inútil para aquele momento, ela iria-se lembrar do rosto daquele rapaz algumas vezes, até da voz dele. Uma voz ligeiramente diferente, ainda mais naquele sotaque tão profundamente grego. Não era o mesmo sotaque da bela jovem que tinha passado por si e tinha-lhe dito para ser uma pessoa melhor que a sua mãe, era um sotaque bem mais nativo de seu país.
Ela sentira algo quando ele passara, algo para além de seu perfume da Hugo Boss ou o cheiro a shampoo no seu cabelo loiro, algo de Fairie, ou então era a presença de Cila ao seu lado dando-lhe essa sensação.
Não demoraram muito a atravessar o portal para o comboio Além-fronteiras de novo. Desta vez o transporte mágico parou perto de uma praia. Melinda não a conseguia ver, mas conseguia sentir, pelo cheiro da maresia. Conhecia aquele cheiro muito bem e não importava o país, aquele cheiro era sempre igual.
— A fada está perto — disse Tânis.
— O aramak diz-te o sexo da criatura? Pode ser um homem, não é?
— Nesse caso seria um Artemis — respondeu Sana. — Nada muda. O sexo feminino só tem mais incidência porque somos maioria.
— Óh! — exclamou Melinda. Por momentos julgara a magia um tanto sexista.
Viu uma moça entrar em seu carro e sentiu um brilho emanar dela. Não era forte, mas era alguma coisa. Ela era alguma coisa.
— Aquela moça — apontou com o olhar.
— Ela é uma fada — comentou Cila —, mas não sabe.
— Como sabes que não sabe? — perguntou Melinda.
Cila sorriu compadecidamente. Melinda já devia saber que certas perguntas tinham respostas que pareciam simples demais para os seres sobrenaturais.
— Simplesmente sei.
— E sobre o rapaz com um olho de cada cor?
Cila encolheu os ombros.
— Não senti que ele fosse uma fada.
Melinda cerrou os lábios em comiseração. Definitivamente tinha muito a aprender.
— É ela? — perguntou sobre a moça que entrara em seu carro.
Elas olharam-se entre si.
— O que tu sentes, Melinda? — perguntou Tânis.
— Bem, eu não sou uma augenide.
— Não precisas — constatou Sana. — Uma fénix pode muito bem saber isso. Tu tens o poder de vários seres, tudo de uma vez só.
Melinda sorriu. Não podia negar que aquilo era um lisonjeio, por outro lado isso assustava-a.
— Não, eu acho que não, mas vou-me aproximar, falar com ela.
— Porquê? — perguntou Sana. O seu olhar estava rude. Melinda sentiu-se julgada.
— Eu... não posso? — perguntou Melinda.
— Não fazemos as coisas assim — disse Sana, demonstrando enfim a sua rudeza mais rudimentar, por muito redundante que a expressão pudesse parecer.
— Pois, mas eu sou uma agente, eu faço as coisas assim.
Tânis fez um gesto de cabeça para Sana, para esta se acalmar.
Das três Artemísias, Sana era a aparentemente mais quieta e calma, mas na verdade era a mais nervosa e rude. Tânis devia frequentemente frear o seu mau feitio.
Melinda foi-se aproximando daquela moça de cabelos castanhos amêndoa e óculos na cara. Melinda falava francês perfeitamente. Fizera questão de aprender ainda na adolescência, simplesmente porque sentia que precisava, assim como outras línguas que falava e ela falava várias. Tinha uma incrível capacidade para aprender línguas, um dom que fôra muita vez invejado pela sua mãe.
Olhou o Anfiteatro bem do seu lado da rua.
— Oi — disse — És uma atriz deste teatro?
A moça compôs os óculos no rosto e olhou para si, Melinda precisou lembrar que aquela mulher estava vendo uma adolescente e não alguém com possivelmente a sua idade.
— Não, e neste momento não está havendo nenhuma peça, só ensaios de ballet.
Nesse momento apareceu uma adolescente correndo na direção da jovem de óculos.
— Lorelei, ainda bem que ainda estás aqui. Esqueci do telemóvel no teu carro.
Aquela sim, ela emanava uma carga muito mais energética e brilhante que a moça que agora sabia chamar-se Lorelei. Tinha uns olhos claros e um cabelo que na noite Melinda diria que era castanho, mas se a visse de dia, veria que era de um loiro escuro.
— Oi — disse a adolescente a Melinda.
A adolescente era do seu tamanho e Melinda podia jurar que tinham algumas parecenças físicas. Achou-se meio louca por achar isso, como se por serem adolescentes isso as tornasse automaticamente parecidas.
Lorelei abriu o carro e procurou pelo telemóvel da irmã, enquanto esta falava com Melinda com interesse.
— Oi — respondeu Melinda. — Fazes ballet? És mesmo muito... elegante.
Aquele sorriso soltou um brilho invisível sobre si.
Definitivamente fôra muito fácil descobrir aquela futura Artemísia. O que mais poderia fazer?
— Obrigada — disse a adolescente. — Vem ver!
Melinda olhou para as Artemísias.
— Na verdade eu estou com... uma tia e as amigas dela — respondeu Melinda.
— Bem — disse a garota que olhou nesse momento para Tânis, Sana e Cila. — Venham todas! A propósito, o meu nome é Inaïa. E o teu?
— Melinda, mas os mais íntimos chama-me de Mel.
Inaïa sorriu divertida.
— Gostei de ti — ela disse.
— É reciproco. Vou chamar a minha tia. Já vamos.
Lorelei deu o telemóvel à bailarina que correu para o anfiteatro. Melinda correu até as Artemísias o mais lento possível para não dar nas vistas.
— Venham! É ela.
✨✨✨
Ver Inaïa dançar era indescritível, ela parecia a anos-luz de todas as bailarinas daquele lugar.
— E agora? O que fazemos? Já sabem que é ela, graças a mim.
— Adolescentes — alvitrou Sana, revirando os olhos.
— Não sou uma adolescente — respondeu Melinda, agressiva. Começava a sentir uma real implicância por Sana, bem mais que algo passageiro.
— És sim, estás-te a sentir muito boa por a teres encontrado de forma fácil. Achas que é só isso?
— Eu não achei nada, por isso perguntei.
Cila e Tânis olharam-se entre si, sentindo a tensão aumentar. Como sempre, Tânis acalmou os ânimos. Não era à toa que a skinwalker era a líder das Artemísias, "e nunca poderia ser Sana", pensou Melinda.
— Bom, precisamos entender porque alguém que emana tanta energia mágica está aqui na terra, ainda mais uma adolescente que não sabe que é fada — explicou Cila. — Por isso te pedimos ajuda, pode ser uma...
— Uma?
— Trocada. É uma criança mágica que foi trocada à nascença por um humano — explicou Cila.
— Bem, não me parece — disse Tânis. — A outra moça adulta era irmã dela, tinham o mesmo cheiro. Sãos filhas do mesmo pai e da mesma mãe. São nascidas de épocas diferentes, acho que isso torna evidente que não foram trocadas.
Melinda percebia que ainda tinha muito a aprender sobre o mundo mágico, ainda assim, enquanto as Artemísias falavam, o seu cérebro pareceu desligar. Deixou de as ouvir, para ouvir apenas aquela música de ballet e apreciar cada momento em que Inaïa entrava em cena. Ela... planava no ar. Ela realmente planava. Como ninguém reparava? Como a própria Inaïa não reparava que planava no ar? E Melinda sabia, nenhuma corda a segurava, era mesmo ela e seus poderes de fada.
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