9 - Voo vampirizado
Atualmente
Uma causa maior. Tudo se tratava de uma causa maior, mas Señior sabia muito bem que era sua própria causa. Que era egoísta e que ninguém trabalharia para si se soubesse disso. Ele tinha noção daquilo que era, isso não tinha importância. Ele sabia manipular. O objectivo? Capturar a criatura mais rara do mundo. Uma criatura que se reencarnava a cada século. Não fôra à toa que ele criara o Impulsionador. Era um aparelho que ocupava uma sala inteira, escondida numa cave secreta na cidade do Porto.
Epaminondas era o seu homem de confiança. O primeiro de todos. Fôra com ele que tivera a ideia de criar o impulsionador e fôra graças à sua lealdade cega que fôra tão longe em seus propósitos.
Epaminondas sempre acreditara que Señior tinha uma doença rara. Que talvez sofresse de uma patologia igualável com a de Benjamim Bottom. Nunca ninguém acreditaria nisso, mas Epaminondas sabia que o sobrenatural existia melhor que ninguém. Podia ser surdo, e isso o salvara um dia, mas gostava de conseguir ouvir e pensava francamente que capturar uma fénix seria sua cura. A sua, a de Señior e de outros tantos. Aí a fénix iria embora e ele estaria curado de sua surdez. Ele nascera assim, mas isso não o fazia sentir-se melhor. Señior o ensinara que ele não deveria se aceitar, deveria lutar pela cura. Ela existia. Señior abrira seus olhos. Se ele não fosse surdo, ele teria sido capaz de ouvir a criatura entrar em seu quarto e matar a sua mulher e a sua filha. Ele as perdera por ser surdo e sobrevivera por a mesma razão.
Se a história fosse contada, Epaminondas nunca acreditaria, mas ele vira. Aquela criatura, de cabelos brancos e olhos cinzentos, com um rosto extremamente familiar quebrara a sua janela com todo o seu corpo sem se cortar e gritara estridentemente. Aquele grito horrível e ensurdecedor matara quem o ouvira e partira todos os vidros da casa, deixando o caos à volta do homem que não conseguira fazer nada, tão pouco percebera. Após isso ele queria vingança, mas também uma cura.
Nunca mais tentara formar uma família, não seria capaz de suportar uma nova perda. A presença de Señior o confortava. Era um homem que o entendia. Que entendia a sua dor e que acreditava em si, não só na sua história, mas também em seu potencial. Os dois podiam-se ajudar. A morte e seu foiçe. A cura e a vingança.
Fôra señior quem lhe explicara que tipo de monstro era aquele que matara sua família. Ele nunca esqueceria. Aquela palavra tinha em si mais que sua vontade de vingança, tinha em si a realidade do que realmente era o mundo e do que existia nele. Banshee. A assassina de sua mulher e de sua filha era uma banshee e ele iria encontrá-la e matá-la. Estrangula-la. Queria vê-la sofrer.
Señior depositava todas as suas esperanças na fénix, portanto seu amigo confiava. Apenas confiava que o Impulsionador que estava fazendo criaturas e humanos diferentes se descontrolarem, fizesse a fénix se transformar em sua forma animal e sobrevoar o país. Já utilizara vários arranha-céus na esperança e a avistar. Lisboa foi a primeira cidade. A capital possuía os arranha-céus mais altos em número: a Torre de Vasco da Gama, onde o hotel Myriad se encontrava era o mais alto do país e fôra o primeiro que eles tentaram, mas não levou a lado nenhum. Seguiram-se a Torre de São Rafael e o teleférico do parque das Nações, a Torre de Monsanto em Oeiras e a Barragem de Cabril, que fizera Epaminondas tremer que nem varas verdes.
Enquanto isso, aquele fiel escudeiro que chamavam de tigre estava nos Açores, em cima da Torre Solmar na Ponta Delgada, no arquipélago dos Açores. A torre atingia 137 metros. O máximo que vira foram aviãos, sobrevoando o céu. Passara lá dias e noites, até à noite em que suas provisões acabaram e estava a pontos de ser pego pelas vezes que precisava se esgueirar para ir à casa-de-banho.
Por isso íam mudando de torre.
Há uns dias, Señior e Epaminondas haviam tentando a Torre São Gabriel, igualmente no Parque das Nações de Lisboa, mas não conseguiram. Nem sempre seus planos superiores davam certo.
Señior vivera durante alguns meses no Sheraton Lisboa Hotel & Spa. Tinha sido uma escolha estratégica. O hotel atingia os 100 metros, mas nada acontecia, não o que ele queria e quando o Impulsionador estava no seu estado de melhor funcionamento mandara homens para as torres gêmeas de Lisboa, cada uma com noventa metros, mas nada. A fénix não parecia estar em Lisboa.
A rede extinguia-se e separava-se pelos edíficios mais altos de Portugal, a Torre do Lidador na Maia com 92 metros, o Edifício Nova Póvoa na Póvoa de Varzim com 86 metros, o Holiday Inn Porto Gaia na Vila Nova de Gaia com 80 metros... As mortes aconteciam, entre outras coisas bizarras, mas a fénix não aparecia em lado nenhum.
Señior queria guardar a cidade do Porto para último, mas enfim se hospedara no Hotel Vila Galé no Porto. O edifício media 76 metros e os seus binóculos avistavam longe.
Ver a cidade, a sua cidade novamente não lhe fazia sentir nenhum tipo de nostalgia. Ele não tinha esse tipo de sentimentos por nada na sua vida, mas sentira uma pitada de alguma coisa quando avistou com seus binóculos um casal que seguia sua vida, o homem com dois filhos pela mão e a mãe puxando um carrinho de bebê. Ele podia ter sido aquele tipo de homem e poderia ter tido aquele tipo de família há muitos anos, mas não quisera. Trocara aquilo tudo pelo poder e trocaria novamente. Era milionário, tinha várias pessoas trabalhando para si e aquela família que um dia ficara para trás estava muito bem no passado. Mas seria bom ter alguém a seguir os seus passos, que nem um herdeiro, como o herdeiro que fugira quando percebera que o pai não era o que pensava ou aquele que tivera tão pequeno a coragem de fugir de si e que ele nunca conseguira encontrar.
Suas escolhas de vida haviam sido escolhas muito questionáveis, para não falar narcísicas. Ele era narcisista, sabia -o e tinha orgulho nisso, apenas nunca falava. Não era importante.
Haviam muitos anos que sabia da existência do sobrenatural. Estudara muito e apaixonara-se por o assunto e então vinha capturando os seres, para usá-los em proveito próprio ou vendê-los. O seu tráfico de criaturas místicas tinha rendido mais dinheiro do que imaginava, mas faltava sempre ela, a mais importante, a fénix. Virara uma obsessão. Por isso criara o Impulsionador, as criaturas não se conseguiam esconder tão bem, coisas aconteciam à sua volta. Os lobisomens transformavam-se sem precisar haver lua cheia e os vampiros deixavam os caninos à vista sem se aperceberem disso. Até alguns humanos especiais faziam coisas com a mente, que nunca fariam normalmente, graças ao Impulsionador, portanto, acreditava que seria uma questão de tempo até encontrar a fénix, aquilo com que ele não contava era com pessoas como a família Masalis ou com uma jovem que o perseguia há muito tempo, seguindo seus passos, procurando justiça...
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Sempre fôra protegida por sua mãe e o homem que toda a vida conhecera como pai, até que seu pai foi apanhado por uma rede. Não sabia o que se passava, era apenas uma jovem acabada de sair da adolescência, mas focara-se tanto em descobrir a verdade que acabou por alcançar o seu objetivo. Descobriu enfim que o pai não era apenas um humano comum. Ela sempre sentira isso, ela só não via porque ele era seu pai e independentemente de tudo o resto, era seu herói, seu ídolo. Uma pessoa capaz de lutar contra o preconceito ao mesmo tempo que lidava com ele. Provar que a pele negra era tão limpa quanto a branca era tristemente uma realidade mesmo no século XXI.
Inês sempre fôra inteligente. Seu percurso escolar era notório e seu currículo invejável. As suas qualidades eram infinitas, assim como suas possibilidades profissionais. Não havia um limite, mas ela escolhera a paixão que a movia há muito tempo. Um dos talentos que a destacavam no meio de uma multidão: a criptografia, estatísticas... Essa era a sua cena. Como um negócio familiar, visto que seu pai também trabalhara com aquilo toda a sua vida.
No decorrer de sua investigação minuciosa, Inês descobriu uma unidade policial secreta, a UNDOM.
- Ora, ora, o que temos aqui? - indagou quando encontrou aqueles registros scanneados no sistema policial.
Ela era capaz de entrar em qualquer sistema, não importava o quanto difícil parecesse. Nunca era apanhada. Era muito boa no que fazia, não deixava rastros ou assinaturas. Sabia que o ponto fraco de alguns hackers era o ego, mas ela não era eles. Ela era ela mesma, não se nomeava de nada. Era apenas um fantasma. Um fantasma sorrateiro sem nome, sem pegadas
Um nome. Procurava um nome. Bernardo Furtado Teles, chefe da preventiva, responsável da supervisão de agentes e chefia de equipas policiais e seus resultados.
Uma coisa que aprendera com seu pai, era sempre saber mais da pessoa, ter noção de sua vida pessoal, para perceber que tipo de profissional deveria ser. Bernardo Teles era um homem com menos de cinquenta anos, divorciado há cinco anos de Pâmela Cristóvão, uma secretária do estado. Os dois tinham tido dois filhos, actualmente com quinze e onze anos de idade. Tudo nos registros dava a entender que Bernardo era muito focado no trabalho, talvez esse tivesse sido o declínio do seu casamento.
O chefe-principal, acima de si era Eduardo Campos e o chefe coordenador era Leandro Araújo, mas Bernardo parecia muito mais envolvido com a UNDOM. Sendo assim seria a ele a quem ela se reportaria, sem rodeios ou esquemas.
Já sabia onde o encontrar e vira a fotografia dele. No dia seguinte, ela seria o mais novo membro da UNDOM, pois não daria alternativa a Bernardo Teles de negar o seu incrível currículo, sobretudo depois de saber de tudo que ela descobrira por conta própria. E ela sabia mais que qualquer um ali do que eles precisavam naquele momento. Para além do mais, ela tinha pistas sobre o que acontecera no hospital e não só. Para todos aqueles eventos impulsionados por uma reacção em cadeia, Inês tinha uma resposta, mesmo que ainda não estivesse completamente estruturada. Ela precisava da DOM e a DOM precisava dela. Ela não tinha dúvidas disso.
- Ainda no computador, querida?
A sua mãe acabara de acordar ou talvez ainda não tivesse conseguido dormir. Isso acontecia muito desde a morte de seu pai.
- Estou a estudar bem a lição para amanhã candidatar-me à PSP.
- À PSP, Inês Sofia? Querida, não é que me opunha, tu sabes, mas tu és tão inteligente.
- Por isso mesmo, mãe. Sou uma mais valia para eles.
- Não tenho dúvidas disso - era verdade. Alda não tinha dúvidas, mas a escolha de rumo de sua filha a deixava apreensiva.
Enquanto colocava água na chaleira, pensava no tanto que gostava de ver a sua filha a tomar um lugar profissional com mais destaque.
- Não te preocupes, mãe. A PSP vai-se render a mim.
- Estou mais preocupada com as tuas horas de sono.
- Tudo bem - respondeu Inês, baixando o ecrã. Já absorvera toda a informação importante que lhe interessava - Eu vou para a cama, após beber esse chá que estás a fazer.
A taça quente nas mãos dava-lhe uma sensação boa, agora que a temperatura começava a baixar e as folhas a cair das árvores.
- O outono sempre foi a minha estação preferida - comentou a mãe, enquanto dava seu primeiro gole.
Inês não conseguia beber o chá a ferver.
- Mas sem ele aqui, até as folhas que caiem parecem cair de maneira diferente. Isto faz sentido?
Inês olhou a cor do chá, sentiu o fumo quente no rosto.
- Faz, mãe. Para mim, faz.
E se nalgum momento tivera dúvidas, aquele momento confirmara que estava fazendo a escolha certa. Ela precisava se unir à UNDOM e desmatelar a rede que fizera seu pai morrer, assim como outras pessoas. A sua mãe merecia justiça, o seu pai merecia justiça, todas as vítimas da rede mereciam justiça. Não havia torre demasiado alta que não pudesse alcançar, mas seria tudo muito mais fácil com ajuda de quem carregasse munição, porque os talentos dela eram vastos, mas não passavam por pistolas e balas. Ela era o QI que eles precisavam. Na verdade um dos, ela só ainda iria descobrir isso.
Fôra necessário muito trabalho e afinco para descobrir aquilo que era tão protegido, mas sendo ela quem era, nada era demasiado inalcançável que não pudesse acessar. Egos inflados... Ela sempre conseguia obter alguma coisa quando se tratava do sexo masculino. Aqueles seus egos inflados, pedindo, implorando mesmo, para serem exibidos eram a perda dos culpados e a vantagem da hakeadora inteligente que era, sempre escondida na sombra.
Aquele homem chamado tigre não era um grande haker, apenas fazia uns pequenos trabalhos, mas seus acessos eram limitados. Aquilo que não era limitado era seu exibicionismo, aquele ego descomunal... Bastara beber um pouco mais da conta à frente do computador para escrever mais do que devia no blog que tinha de creep pastas.
"Esta noite um avião despencou no chão e sem nenhum sobrevivente." Começava assim, de forma natural, nem um pouco dramática. Não transmitia a dor da perda ou o drama alheio, era apenas uma frase lançada no vento virtual como se não fossem vidas postas em causa.
É, seu pai morrera naquele vôo. Ela sabia muito bem de que avião se tratava, mas porque aquilo era notícia ou sujeito num blog de coisas creepy? Teorias sobre a Zona 51, vampiros, bruxas... O que aquilo tudo tinha em comum com o vôo 123?
Se havia coisa em que Inês era muito boa, essa coisa era ligar os pontos, fazer as conexões exactas. Doeu quando soube que toda a vida seu pai, ainda que não fosse o biológico a enganara. Doera saber que sua própria mãe lhe mentira desde pequena, mas doeu muito mais a sua morte, a sua injusta morte que levara tanta gente consigo. Tanta gente precisando de justiça.
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Antes
A bordo do Vôo 123
Kamau era mestiço. Sua mãe era angolana, mas seu pai era do Madagáscar e não era alguém muito agradável, segundo sabia, mas ele não sabia grande coisa. Nunca conhecera o pai. Misteriosamente, a sua mãe escolhera dar-lhe um nome natural de Madagáscar, dizia ela que era pelo respeito ou algo assim. Kamau sabia que era por superstição, ou religião... algo assim.
Kamau fizera parte das forças aéreas. Era um integrante fiel e já estava na reforma quando viajara, porém algo correu mal naquela viagem. Algo que envolvia uma hospedeira de bordo e sua suposta injeção para a diabetes.
Sabia bem que o que aconteceria ali, nunca seria descrito de maneira fidedigna, mas certo momento soube que todos morreriam e seria por causa dela, por causa daquela mulher louca que pensara que ele estava fazendo uma tempestade num copo de água.
Quando Kamau começou a tremer, a hospedeira percepetou-o e tentou ajudar, mas Kamau precisava de sua pasta, colocada acima de sua cabeça. Estaria tudo bem, se a mulher não lhe dissesse que nesse momento não poderia retirar nada das gavetas. Foi aí que Kamau começou a entrar em pânico, coisa que nunca lhe tinha acontecido antes.
Pressionou o braço da hospedeira e informou de maneira urgente o que iria fazer e os cuidados a ter.
- Eu sou diabético e preciso da insolina que está na minha pasta.
- Mas o senhor...
Ele olhou as horas... Não valia mais a pena, tarde demais.
- Vou-me fechar na casa-de-banho. Não abra a porta, nem me deixe sair. Se eu sair, toda a gente aqui corre perigo de vida.
- Do que se trata? - perguntou ela alarmada. Acreditando ilusoriamente tratar-se de uma ameaça de terrorismo e não de um aviso sério.
Kamau respondeu-lhe.
- Cosmofadunga. Eu tenho Cosmofadunga e não diabetes. Avise o piloto e ele que avise a central.
- O que é isso?
Kamau já estava a fechar a porta da casa-de-banho. Antes de a trancar, disse :
- Doramangas...
A hospedeira não percebera o significado de tais palavras, mas correra para a cabine de pilotagem. Bateu à porta, para não assustar os homens e então falou sobre aquelas palavras estranhas à parceria de pilotagem.
- Deve ser uma crise de pânico - disse o co-piloto - misturada com histórias de assustar provenientes do Madagáscar.
- Quer dizer que sabes o que isso é? - perguntou o piloto ao parceiro.
- Sei, doramanga é o sinônimo de vampiro.
Nesse momento o dito vampiro entrou pela porta aberta da cabine de pilotagem e atacou a hospedeira. Em pouco tempo o piloto e o co-piloto não eram mais eles mesmos e toda a tripulação estava afetada por cosmofadunga.
O avião perdeu o controlo e toda a vida dentro dela. Dos últimos bancos de trás, da parte econômica um livro caiu na cara daquele doramanga que até era bem doce, quando não estava doente e era humano. Ele sabia que ía morrer e por isso achou tão irónico o nome daquele livro: Vôo vampirizado.
A última coisa que visualizou ante a sua própria morte e que conseguiu sussurar em meio ao caos e à morte foi o nome da escritora: Luana Almirante.
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Bebendo cházinho antes de dormir. :)
Que acharam desse final de capítulo?
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