8 - O crime perfeito
Actualmente
A porta de entrada do apartamento de Melinda dava acesso directo à sala, por isso quando a agente chegou finalmente a casa viu sua avó Ema sentada no seu sofá vermelho de braços cruzados à sua espera.
A mulher tinha a chave sobressalente da casa da neta consigo, mas nunca a utilizara. Não até então. Melinda ficou supresa, até porque sua avó não estava com a sua expressão amigável de sempre. Também não estava com o semblante das más notícias, estava chateada, desgostosa, decepcionada e com certeza era consigo. Teve a certeza disso quando lhe falou e perguntou o que ela fazia ali.
- Melinda...
Ela nunca me chama pelo meu nome. Que merda fiz eu? Pensou.
Melinda despojou-se do casaco, dos sapatos e de sua bolsa e sentou-se ao lado da avó.
- O que foi, avó?
- Porque não vieste?
- Do que está falando, avó?
- Do fim da pena da tua mãe.
Melinda ficou impávida. Ela não andava a contar os anos que sua mãe passava na prisão, mas era demasiado boa com números e conhecia o caso demasiado bem para não ter noção que a libertação da escritora de terror estava próxima, porém, ela não estava consciente que faziam 16 anos exactos naquele mesmo dia que ela fôra presa. Até porque ela evitava não pensar nisso, não por causa de sua progenitora, mas sim por causa de si, por causa daquilo que sofrera, por causa do que tudo que se passara significava em sua vida, para não falar das repercussões.
- O que tem avó?
- Porque não vieste, Melinda?
- Ai, avó, você sabe que eu a adoro, mas você sabe que... com a Estela as coisas são diferentes.
- Melinda - e mais uma vez ela estava falando como se ela tivesse derramado comida na sua carpete preferida - A tua mãe esteve desesseis anos na prisão, pagando por um crime que não cometeu. Nós sabemos isso. Ela sabe isso. Ela renunciou a desesseis anos de vida para tu teres a tua liberdade, o mínimo que podias ter feito era ir à prisão no dia da saída, já que nunca foste visitá-la.
Aquilo não era propriamente verdade, mas não iria dizê-lo à sua avó, não queria abrir mais brechas para sua avó ficar decepcionada consigo.
Tomou as mãos de sua avó nas suas, tentando amenizar o seu desgosto.
Explicar que não carregara no gatilho, mas mesmo assim a pistola disparara no coração de Lourenço sempre parecera besteira na sua cabeça, embora soubesse que era real. Ela já o tinha dito à sua avó uma vez e não iria repetir. Sempre tivera a sensação de que a sua avó não acreditava nisso, por isso evitava falar. Não se queria sentir uma impostora, pois isso faria com que ela mesma questionasse sua sanidade e ela sabia que não era louca.
- A Estela foi acusada de homícidio doloso e não interessa se não matou o Lourenço, porque a verdade é que ela é culpada. Ela sempre foi culpada.
- Querida - ouvir aquela palavra transmitiu-lhe alívio - Culpada de ter amado um homem que a traía? Um homem que era falso? Pensei que agora, depois de teres vivido com um homem entendesses um pouco o lado da tua mãe.
- Avó... Eu não quero decepcioná-la, mas o problema da Estela não foi ter sido enganada por ele, pelo menos não foi só isso, foi não ter acreditado em mim quando deveria. Foi-me ter obrigado pela sua negligência a finalizar com tudo com as minhas próprias mãos, o que nenhuma criança de quatorze anos devia ter de fazer, foi ter sido uma mãe péssima toda a minha vida.
- Eu sei que a tua mãe nunca fez muito caso de ti, tens razão, mas é tua mãe, abelhinha e mãe há só uma.
Melinda levantou-se, fechando os olhos e indo até à cozinha pegar uma tangerina para comer. Era melhor se afastar um bocado, odiava aquela frase "Mãe há só uma". Para ela Estela não era uma mãe, nunca fôra. Não passava de sua progenitora.
- Avó, eu sei que se há coisa que eu, você e a Estela sabemos é aquilo que aconteceu naquela noite.
O olhar de sua avó transmitia algo mais, como se ela soubesse algo melhor que ela, e talvez fosse o caso, os pontos de vista diferem conforme a posição que a testemunha tem da ocorrência. Ela era da polícia, sabia bem disso.
- No entanto - continuou - Você não sabe de tudo. Você não imagina o que desencadeou aquela minha reação e as coisas que culminaram para que aquele fosse o fim daquele ser desprezível.
- E vais-me dizer?
Ela já tinha perguntado aquilo antes. Melinda abanou a cabeça, como das outras vezes. Ela seria incapaz de encaixar no que sua filha se tornara, seria incapaz de visualizar uma cena sequer de todas as cenas pelas quais Melinda passara. A inocência perdida, os pesadelos intermináveis, os banhos de água escaldante que não queimavam sua pele viva por um milagre em meio a esfregadelas ferozes, e todo o silêncio que tumultuava pelo seu quarto após ser despedaçada mais um bocado, para que compreendesse o quanto a solidão a acompanhava.
Ela não dizia para a poupar. Para poupar a visão imaculada de compaixão que Ema tinha por sua filha mais nova. Para poupar aquele amor que só uma mãe a sério pode ter em relação a um filho, aquele que ela sabia que seu pai tinha tido por si.
Ema culpava-se por ter deixado Rogério morrer, deixando seus netos sem pai, sendo que ela não tinha como prever o que se estava passando naquela noite. Se ela tivesse na sala e não em seu quarto, ela morreria, assim como Rogério também morreu. Ela culpava-se por não ter ficado junto aos netos e não ter impedido que raptassem Xavier. Ela culpava-se daquilo que ninguém alguma vez cogitou sequer culpabilizá-la, mas ainda assim ela se culpava.
Estela não herdara o coração da mãe. Infelizmente Estela sempre disfarçara bem, pois Ema era incapaz de ver isso. Aliás, sendo Estela a única filha a permanecer ao seu lado, ela deveria ter uma percepção da filha ainda mais errônea do que Melinda sentia. A verdade é que os seus dois filhos mais velhos haviam emigrado muito novos e raramente davam notícias, de maneira que a única coisa que se sabia deles é que estavam vivos, com saúde e haviam constituído suas próprias famílias. No entanto com Estela, havia um laço que a filha nunca desamarrara. Ela nunca saíra da casa dos pais. Nem mesmo quando casou e teve filhos. E isto duas vezes. Ema devia sentir-se lisongeada pela filha, por esta lhe oferecer a possibilidade de fazer parte da vida dos netos e da sua de forma quotidiana. Dava para entender isso. Era isso que Melinda não queria estragar, porque por vezes a ignorância é uma benção. Fôra a própria avó que lhe ensinara isso e era uma lição que ela tomara para a vida.
Mais tarde pensaria em como o tempo até parecera ter sido rápido, pensaria onde seria que Estela iria viver, embora soubesse a resposta. É claro que com Lavínia vivendo em Coimbra em época escolar, o quarto dela seria usado por Estela.
Será que a mulher saberia que Ema havia vendido a casa de família onde todos os horrores possíveis haviam acontecido? Talvez agora já soubesse.
Se Melinda fosse crente na altura, coisa que nunca foi, pediria a um padre para exorcizar a casa, pois cada parede parecia o lar de um demónio diferente.
🔥🔥🔥
Antes
O pôr-do-sol trouxera consigo o medo insistente que a invadia todas as noites. Nem sempre eram noites de terror, mas todas elas tinham potencial para o ser. Então, de repente, Melinda teve uma lembrança de seu pai colocando uma arma num sítio especial da casa. Deu por si perguntado-se se ela ainda lá estaria e de repente tornou-se extremamente importante encontrá-la. Era ali que se encontrava a sua salvação. Tinha demasiada vergonha para dizer à avó, a sua mãe não fazia nada para mudar aquilo, recusando-se a acreditar em si e o demónio vestido de gente nunca pararia enquanto fosse vivo. Tinha de ser ela a mudar sua triste sina e seria naquele dia que seu destino ficaria traçado.
Antes que chegasse a hora em que Lourenço fosse ter consigo, Melinda foi ao sítio secreto e foi com alegria que encontrou a Gold, uma arma que seu pai escondia pensando que mais ninguém via. Melinda sempre fôra esperta demais para o seu próprio bem, mesmo em criança.
Levou a arma para o seu quarto e o esperou. Ele costumava vir àquela hora. Bateu à porta e dessa vez o coração descompassado de Melinda não batia tão rápido como das outras vezes. A arma fazia isso, dava-lhe calma pela segurança que transmitia.
O sorriso que se desenhava no rosto de Lourenço, rapidamente se transformou num rictus desconfortável. É claro que ele não esperava por aquilo.
- Nem mais um passo, ou eu disparo - Melinda ameaçou.
- Querida, não vais disparar. Ambos sabemos disso - teve a ousadia de dizer o homem.
- Ó sim, eu disparo. Verifiquei a munição. Está totalmente carregada. Se fosse a ti não arriscava, os primeiros tiros podem ser nas pernas para sofreres mais.
- Melinda, pousa isso! Não é para a tua idade.
Melinda fingiu uma gargalhada.
- Queres falar sobre coisas que não são para a minha idade, padrasto? Talvez devamos chamar a minha mãe para a meter a par sobre isso.
Não saberia dizer se por esperteza ou burrice, mas Lourenço pegou no telemóvel em seu bolso e telefonou a Estela que ainda não tinha chegado a casa. Tinha ido levar Lavínia dormir em casa de uma amiga e como sempre ficara na conversa com a mãe da criança, esquecendo tudo o resto. Provavelmente até jantara lá. Por sua vez, a sua avó Ema supostamente estava em seu quarto, fazendo suas coisas intermináveis que Melinda não entendia bem quais eram.
Estela demorou um pouco a entender, mas quando o fez, foi conduzindo.
- Estela, a tua filha está apontando uma arma carregada para mim. Vem logo.
Claro que ouvindo algo do gênero, Estela iria a correr, mas por acaso nesse dia ela despachara a conversa com a amiga mais cedo. Estava mesmo perto de casa. Quando chegou correu ao andar dos quartos, ao quarto de Melinda.
- Melinda Aires Torres, larga essa arma já!
Melinda não largaria, não a pedido de sua mãe, não a pedido do canalha à sua frente. Nesse momento quem ditava as regras do jogo era ela e isso fazia-a sentir-se bem. Há tanto tempo que não se sentia dona de si mesma. Há tanto tempo que tentavam fazê-la acreditar que ela não tinha poder para mudar nada em sua sina. Pois bem, aquela era ela pegando o touro pelos cornos e provando que nunca mais aceitaria que lhe fizessem o que ela não queria.
- Não vou largar. E aviso já que ela está carregada.
- Vais dar cabo da tua vida por ciúmes?
As sobrancelhas de Melinda se aproximaram dando-lhe uma expressão mais adulta e pesada. Ela não estava só surpresa com a escolha peculiar de palavras, pois sabia perfeitamente que palavras eram o forte de sua mãe, ela estava zangada, porque se entendera bem, a sua mãe estava insinuando que ela tinha ciúmes de Lourenço ou de sua mãe. Faltava saber qual das opções era a certa. Seria a sua mãe tão desprezível que entendesse ou que soubesse o que se passava naquele quarto vezes e vezes sem conta e acaso pensasse que Melinda gostava? Seria essa uma possibilidade? Melinda não queria acreditar nisso. Isso seria mau demais.
- Por ciúmes? Ciúmes? De que merda estás a falar, Estela?
Há um tempo que ela não conseguia chamá-la de mãe. Datava da primeira vez em que lhe contara a verdade e a mãe a desprezou.
- Qual é o teu problema, garota? - gritou, a voz aguçando cada vez mais.
- O meu problema? Eu é que tenho problemas? Sabes, uma altura eu tive pena de ti, por estares cega por esse gajo, mas agora realmente acho que foram feitos do mesmo estrume. Como é possível? Mulheres como tu não merecem ser mães.
Por incrível que parecesse, sua última frase despertou em Estela um instinto de ataque. Talvez se tivesse lembrado do primogênito que fôra raptado. Melinda sempre sentira que sua mãe preferia que tivesse sido ela, não ele. Talvez pensasse em Lavínia, a quem tratava bem. Não dava como entender os pensamentos de Estela, seu cérebro funcionava de maneira diferente. Para si, isso estava claro há muito tempo.
- Tu és uma cabra - disse Estela. E teria se aproximado e batido na filha se esta não tivesse uma pistola na mão - Seduzes o meu marido e ainda te queres fazer passar por vítima.
Então era isso. Aquela história dos ciúmes era mesmo aquilo que ela pensara. A partir daí nunca mais duvidaria de seu poder de dedução.
- Ele é que vem ao meu quarto fazer da minha vida um inferno, mas hoje... hoje é diferente. Hoje são vocês que vão visitar o inferno.
- És uma cabra que vai disparar na própria mãe? O que achas que te espera depois?
- Não era suposto te matar a ti, mas se te meteres à frente, não prometo nada. Acho que já falas-te demasiada merda. O suficiente para me dar vontade de te querer calar para sempre.
- És igual ao teu pai. Ele também se achava acima dos valores morais.
- Cala-te! O meu pai é muito melhor que tu e com certeza que esse ser desprezível. Ele nunca deixaria que se passasse nesta casa, aquilo que se vem a passar há mais de três anos.
Estela deitou um pequeno olhar inquiridor ao marido, mas não perderia a pose de dona da razão. Ela achava que ser mãe era isso, saber mais que seus filhos e ter sempre razão, fosse o assunto qual fosse. Neste caso, se começara defendendo o marido, ela continuaria defendendo. Ela amava-o. Poderia perdoar as traições, mesmo que fossem com sua própria filha. Melinda era a culpada por dar a ele o que ele queria, por esticar os cabelos quase todas as manhãs, por ter os lábios carnudos, os cabelos ruivos que ela não sabia de quem herdara, apesar de ter suas desconfianças, e por estar sempre bonita. Os homens não resistiam a uma mulher bonita, fazia parte do ADN deles. A culpa era dela. Era uma cabra que fazia com o seu marido, o que ele apenas devia fazer consigo. Mas não o culpava, não a ele que sempre a tratara tão bem. Sabia que alguém assim, doce como ele era, com certeza não se deitaria com quem não quizesse. Só não pensara que fazia três anos. Aquilo realmente a surpreendera, mas estava tudo bem. Iria enviar Melinda para fora de casa, assim que conseguisse que ela largasse a arma. Ela era uma cabra, não dispararia. Era demasiado covarde para isso.
Só que não. Numa coisa Estela tinha razão, Melinda era como Rogério. Tinha o seu estofo, entre outras qualidades.
Ema não ouviria os gritos se não saísse do quarto para preparar algo para comer.
Atravessou-se por entre sua filha e genro e apenas parou a dois passos de distância de Melinda.
- Abelhinha. Que estás a fazer?
- O que devia ter feito há muito tempo. Chega de conversas. Já fui demasiadamente ofendida e humilhada. Chega. Chega. Chega.
O seu último grito culminou num calor tempestuoso dentro de si. Seus cabelos voaram, os fios brilhando como o fogo. Seus olhos ficaram vermelhos como o sangue que Lourenço jorraria em breves momentos e sua pele abriu-se ligeiramente em fendas que queimariam se alguém tocasse.
Toda a gente naquele quarto ficou com os pés pregados ao chão, mas rapidamente Lourenço, ainda à porta, um passo atrás de Estela teve o instinto de fugir. Não era assim tão burro. Ele sabia que o alvo era ele. Sempre fôra e apesar de ser sonso suficiente para nunca admitir o que fazia a Melinda, ele sabia bem porque é que ela o queria matar. Não duvidava que ela era capaz. Não agora que ela parecia possuída pelo demónio.
Melinda correu atrás dele. Na verdade ela nem pisara os pés no chão, mas perdera a noção de todas suas reacções corporais quando a raiva crescera em si.
A sua mãe chamara mesmo a polícia, podia ouvir as sirenes, ainda que as labaredas sobre si tornassem o som longínquo. Por isso a conversa. Estela estava vendo se dava tempo.
Lourenço apenas alcançara metade do corredor. A casa era grande.
- Pára, seu porco - ordenou Melinda.
Parara bem ao lado de onde sua mãe se encontrava.
Esqueceu-se de destravar a pistola, mas mesmo assim ela disparara em Lourenço, diretamente na sua testa. Ela nem havia disparado ainda.
O momento do tiro, fez as labaredas deixarem seu corpo. Isso fez com que Estela a derrubasse no chão e lhe tirasse a pistola das mãos.
A polícia entrou pela porta que Estela deixara estrategicamente aberta e quando subiram as escadas, viram Melinda inconsciente no chão, Ema saindo do quarto e Estela com a arma nas mãos.
Para a polícia, a cena do crime estava ali, composta e por muito que Estela dissesse que aquilo não era o que parecia e que não matara ninguém, embora quase tivesse disparado em Melinda, a polícia não acreditava.
Um dos policiais chamara a ambulância para a jovem e o seu colega desmunira Estela e fizera-a ficar de costas contra a parede. Depois de a algemar, levara-a escadas abaixo. Só no carro chamara mais colegas, assim como a equipe forense para analisarem a cena do crime. Embora para ele fosse claro o que se passara ali. Estela havia matado o marido e estava prestes a matar a própria filha. Ele vira. Vira que ela iria disparar na jovem inconsciente.
Aquilo que ele não sabia, era que por vezes as coisas não são o que parecem.
Não obstante a verdade por trás da mentira, aquele policial era o herói que Melinda esperara toda a sua vida. Graças a ele, ela estava livre e em paz e os demónios de sua vida, nos lugares que lhes era de direito.
No hospital, a memória de Melinda não a traíra. Tudo se tinha passado como ela se lembrava, mas a verdade de Melinda escondia aquilo que ela não vira ao espelho.
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É, nesta versão a Estela não tem desculpas. Ela é claramente um ser desprezível.
Não tenho pena nenhuma dela.
E agora uma imagem inspiradora! A Melinda de 14 anos que não se viu ao espelho.
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