31 - Além do limite
Actualmente
Se havia algo que Melinda nunca faria quando se aproximava de uma batalha, era ir despreparada. Aquela mulher de fibra até para os imprevistos se preparava. Pedro a seguia por exemplo.
Maurício tinha uma pistola, das mais fáceis de manusear, para ficar no carro de tocaia, perto do forte do... avô da mulher por quem se estava a apaixonar.
Melinda e Pedro tinham um coldre carregado de pistolas para conterem todo o armamento que levavam. Podia-se dizer efectivamente que os dois agentes estavam carregados até aos dentes de armas sedativas e normais.
Luana voltara à pensão e fechara-se no quarto, temendo por todos eles, mas sobretudo por Pedro.
Por fim, Ernesto, a chave daquela operação, antes de atravessar o muro, despiu-se e colocou as roupas no carro de Melinda. Depois transformou-se numa abelha e voou até aos seguranças do local. Eles pareciam alheios à sua presença, então entrou. Um pouco à frente viu-se perante uma escolha tripla: seguir o lado direito, o lado esquerdo ou em frente, onde tinha um elevador e uma escadaria. Ele escolheu o caminho da frente. Até ali, não se cruzara com ninguém.
Aquelas escadas levavam a uma arquibancada que preenchia todo o redor do edifício, como uma varanda que dava vista para o que estava no meio, em baixo. À parte um carrinho de limpezas abandonado bem no meio da arquibancada, o local estava vazio. Porém, lá em baixo, onde parecia estar a accão, ouviu vozes e pessoas de batas brancas se movimentavam.
Voou até ao centro e viu o que parecia ser uma máquina enorme. Rodeou-a voando que nem uma abelha louca e com pressa. De seu ponto de vista, parecia ser uma chaleira de forma esquisita, gigantesca, com uma fornalha de um lado e do outro um tipo de boca por onde o fumo partia. Ernesto nunca vira uma coisa daquelas. Desceu sem no entanto se aproximar do fumo ou da fornalha e viu uma espécie de laboratório muito diferente do laboratório do Dr. Raúl. Havia musgo em cima de uma das mesas e numa outra estava um corno perfeitamente direito que poderia ser de um... unicórnio?
Afinal, o que eles fabricavam ali?
Voou até uma porta vermelha. No interior daquela porta pareciam soltar-se gritos de agonia. Era capaz de sentir alguns feromónios vivos vindos dali. Mas como entraria? Olhou para trás, ninguém parecia querer entrar ali, o que queria dizer que não poderia pegar boleia de ninguém. Concluiu portanto que já havia feito a parte dele: consultado o perímetro e analisado a situação. Não poderia fazer mais do que aquilo. Agora o melhor era partir dali e reportar o que acabava de ver, sobretudo aquela porta, porque sentia que aquilo era importante.
Saiu do edifício sem precalços, sem ninguém o ver e mal saiu transformou-se num sapo, porque aquele frio de inverno que se fazia sentir no ar não era apto a uma abelha. Quando chegou ao carro, transformou-se no homem que era e pediu para os agentes esperarem que se vestisse para dizer o que vira.
Tudo bem explicado, os agentes se prepararam para entrar, mas não sem antes colocarem Ernesto e Maurício o mais seguros possível.
- Tira o carro daqui - pediu Melinda a Maurício - Escondam-se, se preciso na floresta, só não vás contra nenhuma árvore.
Maurício entendeu a referência e ficou um pouco magoado, mas isso passou num instante, bem exactamente no momento em que Melinda tocou a sua mão e disse para se proteger a si e ao seu tio e também para ligar a Bernardo contando as recentes descobertas e avisando aonde todos eles se encontravam.
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Bernardo ficou atónito com as novidades e angustiado com Melinda e Pedro por terem ido se meter na boca do lobo, porém não estava surpreso. Sabia melhor que ninguém como Melinda conseguia ser pouco ortodoxa e como conseguia sempre fazer de Pedro seu cúmplice.
Bernardo nem podia imaginar que a sua chamada estava sendo ouvida. Por isso é que quando Bernardo e Inês pegaram as suas pistolas, casacos e bolsas e sairam do escritório do chefe, não foram os únicos a irem ao encontro de Melinda e Pedro.
Aquele telefone fixo no escritório havia sido grampeado e Bernardo não fazia ideia, mas iria descobrir.
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Dois guardas estavam de pé frente à porta de entrada do grande edifício que fazia lembrar um pavilhão de desporto, então quando Melinda e Pedro saltaram o muro, fizeram-no de um ponto cego.
Empunharam as armas e caminharam até eles. Melinda acertou os homens em cheio na barriga com dardos tranquilizantes. Os homens caíram desamparados no chão, de forma descoordenada e os agente tiveram que passar por cima de braços e uma cabeça ao entrar no edifício. Caminharam em frente e então separaram-se. Pedro subiu as escadas e Melinda seguiu um dos lados. A escolha foi feita por meio de uma cantiga de crianças, cantada na sua cabeça. Seguiu o lado esquerdo.
Pedro deu por si naquela arquibancada onde Ernesto, enquanto abelha, estivera minutos antes e ao olhar para baixo deparou-se com aquilo que julgou ser o Impulsionador, bem no centro do que poderia ser um campo de futebol. O seu formato era esquisito. Lá embaixo avistou algumas pessoas fardadas de branco, mas ninguém o viu, não até o presente momento, até que viu Melinda aparecer por um dos lados. Os trabalhadores olharam para ela e ela os atingiu com dardos tranquilizantes, como se estivesse jogando um jogo de nintendo e aquilo fosse das coisas mais fáceis do mundo.
- Pedro, tens ali a escadaria - ela gritou, apontando para o lugar.
- Obrigada - agradeceu o homem e correu naquela direção.
- Está ali a porta vermelha que o meu tio falou.
Quando Melinda alcançou a porta, levou a mão ao punho desta, mas a porta estava trancada. Sentiu uma onda gelada a percorrer, o que a fez ter a certeza que ali dentro estava algo de gelar o coração. Lembrou-se que sentira aquilo mesmo no hospital, quando estivera no meio de quarenta cadáveres. Retirou do coldre a pistola verdadeira e rebentou a fechadura com um tiro.
- Era preciso isso? - perguntou Pedro por fim alcançando-a.
- Era, estava trancada. Não tenho tempo a perder. Nem as chaves.
Abrir aquela porta, foi como abrir a porta de um inferno tortuoso. Era uma sala cheia de jaulas enormes e dentro delas estavam... pessoas.
Melinda e Pedro engoliram em seco e se entreolharam.
- Espero que tenhas balas suficientes para todos esses cadeados - constatou Pedro.
Melinda não conseguiu responder, sentiu que tinha uma bola de ar presa na garganta. Ao adentrar mais naquele espaço, começou a ver rostos tristes, algumas daquelas criaturas que não deixavam de ser pessoas pareciam até doentes. A iluminação provinha de algumas lâmpadas leds no fim de consumo. Estavam ligadas quando Melinda abriu a porta.
- Será que a luz está sempre ligada? - Pedro questionou-se retoricamente.
Melinda continuava num mutismo agonizante, até que uma voz feminina falou.
- Por favor, tirem-nos daqui!
- Claro. A gente vai tirar, prometo - Melinda aproximou-se - Por acaso sabe onde estão as chaves desses cadeados? Ficava mais fácil. Nós sedamos os empregados, mas não vai durar muito. Temos de nos despachar.
- Todos têm uma, nos bolsos - disse uma outra voz.
- Tudo bem - disse Pedro atrás de Melinda - Eu já venho.
Pedro não demorou mais que cinco minutos. O que Melinda estranhou. Parecia estar a demorar tempo demais. Alguns rostros tristes se ergueram, a esperança invandido seus corações.
- O senhor tinha razão - disse Pedro - Todos eles têm, então eu trouxe cinco de todos os empregados que estavam neste espaço.
- Fixe. Dá-me duas!
Com a ajuda de três enjaulados, Pedro e Melinda começaram a abrir aquelas jaulas, até que Melinda deu de caras com a dríade que conhecera na floresta, quando tivera o acidente de carro com Maurício. Conheceria Gaia mesmo que esta estivesse vestida de Catwoman. A cor verde daqueles olhos não era nem um pouco humana, porém, naquele momento eles tinham perdido o brilho tão característico de sua mágica.
- Gaia?
- Melinda!
A dríade segurou-se às barras, esparançosa.
- Foste capturada.
- Foi por causa daquela coisa atrás da porta. O que eles fazem é horrível.
- Eu sei, mantervos aprisionados aqui à espera para vos vender. Isso é monstruoso.
- Não é disso que estou a falar. Estou a falar daquela coisa. A forma como ela funciona.
- Aquilo é o Impulsionador n'é? Como ele funciona, Gaia? Como?
- Impulsionador, sim. É ele. Ele tem uma fornalha e...
Os olhos de Gaia miravam acima do ombro de Melinda.
- Foge, Melinda! Foge!
- Porquê?
- Atrás de ti.
Melinda olhou para trás, onde estava Duarte.
- Tudo bem, Gaia. É o Duarte. Ele é da PSP, como eu e o Pedro.
Gaia não pronunciou nenhuma palavra, mas seus olhos se arregalaram e abanou a cabeça para os lados ligeiramente. Melinda percebeu a desconfiança, mas entendeu porque Duarte estava ali. Maurício ligara a Bernardo a falar dos últimos eventos e o chefe da sua divisão de certeza que chamara outro agente. E ali estava ele. Só se perguntava onde estava Bernardo.
- Duarte, ajuda-nos!
- Claro - respondeu o homem - Mas quero-te mostrar uma coisa. O Pedro está a tomar bem conta da situação.
- Uma coisa?
- Sim. No Impulsionador. Nem imaginas o que descobri sobre ele. Precisas ver.
Melinda seguiu Duarte até a outra sala e rodeou um pouco daquela enorme máquina até à onda de calor. Duarte parou perto da fornalha e ela também.
- Tens de olhar lá para dentro.
Finalmente para Melinda, o calor estava estável. Antes sentira um calor sufocante ali, naquele espaço, perto da fornalha, mas agora nem parecia que havia fogo ardendo. Fôra o frio em suas veias que se misturara com o calor da fornalha e resultaram naquela temperatura amena. Isso atrapalhara seus sentidos, porque em outras circunstâncias ela perceberia que algo de muito errado estava acontecendo.
Melinda fez o que Duarte disse sem nem questionar. Já eram parceiros há tanto tempo, porque haveria de desconfiar?
- Está a arder sem lenha. É isso que me querias mostrar?
- Não só. Se te aproximares vais perceber.
A boca da fornalha era bem grande e Melinda contemplou as chamas mas não havia mais nada para além disso.
- Não sei o que queres eu veja, Duarte.
- Não, Mel - gritou Pedro saindo pela porta vermelha a correr urgentemente, assim como alguns fugitivos estavam fazendo.
Melinda virou as costas para o fogo, para olhar para Pedro e então viu Bernardo e Inês descerem a escadaria da arquibancada. Porém, muito rapidamente, o seu corpo fôra lançado na fornalha e foi nesses últimos momentos de fôlego que Melinda conseguiu enxergar a verdade. Aquele não era Duarte, porque Duarte nunca a traíria daquela maneira. Ele nunca a mataria.
Sorriu e aceitou a morte que a abraçava em labaredas agressivas e flutuantes. O fogo a consumia e ela consumia o fogo. Pensava que morrer queimada era agonizante e das piores maneiras de morrer, mas ela não sentiu dor nenhuma, ela apenas sentiu seu corpo se abrir em mil fendas e no instante a seguir era apenas cinzas.
Cinzas...
Os olhos de Pedro se encheram de dor, de raiva, de sede de vingança.
- Seu traidor maldito - gritou - Tu matas-te a Mel. Cabrão! Ela era a nossa Mel. Era como uma irmã para nós. Eu vou-te matar, desgraçado. Eu vou.
- Tu não vais merda nenhuma, se não eu disparo.
- Pedro? A Melinda? - perguntou Bernardo.
Custava-lhe tanto dizer a verdade, que as lágrimas nublaram totalmente a sua visão.
- Esse traidor atirou-a naquela fornalha. Ela morreu, chefe. A nossa Mel morreu. Eu vou matá-lo.
Inês não conteu a lágrima no canto do olho e as mãos de Bernardo se fecharam em punho com força. A dor apertara-lhe o peito, porém, a verdade estava escancarada.
- Ele não é um traidor.
- Como pode dizer isso?
Ele é a razão pela qual as Artemísias não se uniram à DOM.
- Ele é um infiltrado. É um mutante.
Não falou das Artemísias, porque isso poderia estragar os plano das guardiãs ou guerreiras, ou fossem lá o que elas realmente fossem. Sabia graças a Maurício e aos seus relatórios que estava nas mãos delas levaram os responsáveis pela Rede para a prisão do outro lado do véu, no reino das fadas.
Num instante todas as respostas estavam claras na cabeça de Bernardo, inclusive o porquê das fadas serem as criaturas mais caras do cardápio da Rede de tráfico. Ele só tinha que atar as pontas, para tudo fazer sentido. Como não pensara nisso antes?
- O Duarte é um mutante? Como assim?
Aquele a quem ele chamava de Duarte ainda empunhava a arma de fogo, mirando o lindo rosto de Pedro.
- És mesmo burro, não é?
- Não, Pedro - Bernardo deu um suspiro enorme - Esse não é o Duarte.
- Então onde está o Duarte?
O impostor abriu um sorriso malicioso, perverso e olhou de esguelha para a boca da fornalha, ainda de porta aberta.
Inês levou as mãos à boca. Bernardo cerrou ainda mais as mãos. O ódio tomava conta de todo o seu corpo. Naquele momento Bernardo era puro controle.
- Arrrg - gritou Pedro de raiva - Tu matas-te o Duarte. Matas-te a Mel!
Inerentes ao que se estava a passar em volta, aos fugitivos correndo por todas as direções e até às criaturas que presenciavam a situação calados, os membros da DOM e o mutante impostor não perceberam que estavam a ser mais que observados.
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- É ele - disse um facanito - Vamos acabar com ele.
- Está armado - travou uma harpia.
- Quando nos apanharam, estavamos sozinhos, conseguiram isolar os nossos poderes de nós, mas agora não estamos sozinhos. Vamos unir os nossos poderes - disse Gaia, encorajando o pequeno grupo que antes de partir, queria se vingar - Emira? Estás connosco? - perguntou à ninfa, a criatura mais triste daquele lugar.
- Eu não sirvo para nada. Isto tudo é culpa minha. Eu mereço morrer. Era eu quem devia ter queimado à muito tempo, só não fui porque... - fungou e impediu-se de terminar a própria frase.
- Emira, já falámos disso. Resolves esse problema com um psicólogo depois. Agora vamos ajudá-los.
- É, vamos ajudar - disse outra voz - Ela matou dois deles.
- É. Mais ou menos - disse Gaia.
- Como assim, mais ou menos? - perguntou Emira.
- Nem sempre a morte significa o fim.
O grupo a olhou perplexo.
O facanito, um ser incrivelmente pequeno e irrequieto, correu freneticamente até o mutante, que como estava tendo o seu momento de vilão, não se apercebeu. O facanito mordeu-o com força com seus dentes que pareciam pequenas navalhas na perna. O mutante baixou a arma na direção da própria perna o que deu tempo a Pedro, Bernardo e Inês sacarem da própria arma e empunharem contra Duarte.
- Pequeno monstrengo - gritou o mutante.
- Olha quem fala - disse Pedro - E agora? Ainda achas que vais sair daqui numa boa?
Gaia esticou os braços e de suas mãos sairão troncos ondulantes. Um deles lançou a pistola do mutante para o chão, o outro prendeu-se num nó bem forte nos dois punhos do mutante. Gaia afastou os seus troncos num estalo, deixando para trás, agarrado aos pulsos do mutante o tronco que o envolvera.
- Que coisa é essa?
- É aquilo que te vai prender até que apenas um ser sobrenatural desprenda, traidor da própria raça.
Bernardo e Inês a olharam em reconhecimento, no duplo significado da expressão.
Dentro da fornalha, um barulho estranho ecoou de forma estridente fazendo toda a gente se calar e alguns fugitivos pararem para olhar. Parecia o lamento de uma ave. Poderia ser um palreio, mas era outra coisa, algo que cruzava a linha tênue da humanidade e do mundo animal.
Como Gaia dissera e bem, nem sempre a morte significa o fim. Melinda, melhor que ninguém acabara de perceber isso.
- Não pode ser - disse a harpia - Isso é uma lenda.
- Todos nós somos lendas - disse Gaia.
- Ela resistiu às chamas da fornalha - disse o facanito, pulando freneticamente - Eu nem acredito.
E na verdade, poucos ali acreditavam no que estavam vendo. De dentro das chamas da fornalha, estava surgindo um animal de beleza incomparável. As suas asas eram fogo. O seu corpo era o de um passáro vermelho alaranjado.
- É real - a harpia colocou as mãos na boca.
Os fugitivos que testemunharam a sua aparição estavam todos atônitos. Inclusive o mutante que se virara para ver o que todos estavam vendo.
Pedro, Bernardo e Inês nunca haviam imaginado ser testemunhas de uma aparição daquelas.
- Uma fénix? - indagou Inês.
Bernardo sorriu.
- Creio que é a nossa fénix.
- Você acha que...?
A ave então se transformou numa adolescente. Bernardo sentiu o tempo voltar atrás. Desta vez não contera as lágrimas, mas estas eram de alegria. Aproximou-se da criatura em chamas, mas não demasiado, para não se queimar.
- Melinda?
- Sou eu. Eu estou viva. Espera... esta é a minha voz?
- É - respondeu Pedro - minha nossa, és uma adolescente.
- Eu sou?
Os três afirmaram com um abano de cabeça.
- Vês - disse Gaia à ninfa - A morte nem sempre é o fim.
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Só tenho a dizer que continuamos no próximo capítulo.
Obrigada por chegarem até aqui.
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