22 - Faro apurado
Actualmente
A vida era muito boa... ao som daquela música que acabara de descobrir e gostava muito, no relaxamento da água parada de sua nova piscina, nas palavras de Duarte quando lhe desejara sorte na sua nova casa e na sua nova vida. Aquele era o recomeço que qualquer um gostava de ter, mas ela era a sortuda que o tivera em mãos. Por algum propósito, a casa estava apenas mobilada de uma cama bem básica, à parte claro, a cozinha que era equipada na cor preta. Quem escolhera aquela cozinha, tinha extremo bom gosto, pensou Estela. Na verdade toda a casa estava revistida por padrões preto e branco. Aquela era a casa com que sempre sonhara, mas que nunca pensara ter, não com o que as imobiliárias estavam a pedir, obviamente.
Durante os anos que passara na prisão, a tecnologia e a internet tinham feito grandes passos, um deles, que a agradava imenso, era poder fazer as compras sem sair de casa. Agora que estava em liberdade com certeza iria poder fazer compras sempre que bem entendesse, mas de momento, tinha muita coisa para se inteirar e com certeza para aproveitar. E fazer isso tudo enquanto pensava numa história convincente para contar de como apenas o dinheiro que ganhara com os livros, aqueles anos na prisão, lhe serviram para se poder oferecer todo aquele luxo. Era o que diria à sua mãe e a qualquer um que perguntasse. A verdade é que que por trás da compra da casa estava o seu pato bravo. Não sabia o que o homem via em si, tão pouco o que queria ou suponha que ela faria para agradecer tanto favor, mas ele estava indo longe demais. Tudo bem, não podia se queixar muito, afinal das contas ele comprara-lhe uma casa e não foi uma casa aleatória qualquer, foi a casa entre tantas outras, que ela mesma escolhera. Era impossível não estar agradecida por isso, sobretudo sabendo que a versão que ela ía contar à sua mãe e a Lavínia podia ter sido verdade. Estela tinha dinheiro para comprar uma casa. Talvez não aquela casa, contando com o recheio e custos adicionais, mas ela tinha. Estivera na cadeia recebendo muito e não gastando nada. Algumas pessoas não gostariam nada de saber que alguém na posição dela estava tendo teto e comida gratuita, enquanto construía uma fortuna fora da prisão. Um tanto ou quanto injusto tendo em conta a situação financeira do país, onde cada vez mais, o rico fica mais rico e o pobre fica mais pobre.
Quando o entregador da Jumbo lhe tocou à campainha, ela não fingiu ser simpática, algo que depois de pensar um pouco percebeu que tinha de trabalhar. A prisão muda algumas pessoas, mas no seu caso meteu à mostra a sua verdadeira essência. Dentro da prisão ela não precisava da máscara social que colocara toda a sua vida, mas daí adiante seria diferente, agora estava livre e o mundo não podia ver a narcisista que era. Não importava se estivera presa durante toda a sentença que lhe fôra imposta, pela sua reputação de escritora, pelos fãs e o dinheiro a entrar na sua conta bancária, ela teria sempre que fazer a postura da inocente que foi presa injustamente. Ao fim e ao cabo, não era tão difícil, porque o pilar de sua própria versão baseava-se na sua própria verdade. Estela foi presa por um crime que não cometeu. De inocente tinha muito pouco, mas a sociedade não precisava saber disso. Aliás, ela iria mostrar como a sua consciência estava limpa no baile que a Estantin promovera. Embora eles não tivessem mencionado a ninguém, ela era a razão daquela festa e tinha quase a certeza que o seu Pato Bravo tinha dedo naquilo. Ele parecia ter sempre um dedo nas coisas que lhe corriam bem. Aquele Pato Bravo estava mais para fada madrinha e ela a Cinderela. Uma Cinderela bem diferente e com mais anos em cima e ainda assim fiel à aparência charmosa e delicada da loira de olhos azuis da Disney. Podia até parecer presunção, mas ela realmente gostava do que via no espelho e agradecia os seus genes paternos em segredo, por ter aquela beleza. Beleza essa que a prisão não tirara de si. Se Melinda esperara isso, tinha-se dado muito mal. Melinda, a sua prepotente e arrogante cria. Embora a tivesse feito duvidar da sua paternidade, nem ela podia negar, não para si mesma, que era filha de Rogério. Nem sabia dizer de onde lhe saíra tanta raiva, tanto desafeto por aquela criança, que para seu desgosto saíra de dentro de si, mas sabia que as parecenças com Rogério a faziam experiênciar muitos de seus sentimentos negativos a seu respeito.
Após arrumar três caixas de tamanho grande de comida, deixou o restante das caixas com produtos de higiene e de limpeza onde pedira ao entregador para colocar. Pegou na sua antiga bolsa e saiu de casa, tudo sem reparar no corvo que a espionava empoleirado num candeeiro da piscina exterior. O mesmo vôo até um fio de electricidade à frente da casa quando ela saiu. De algum jeito, Ernesto a encontrara. No final das contas não fôra tão difícil, a maldade fedia no rasto luxuoso e impetuoso que a loira deixava para trás.
Durante os dezesseis anos que passara na cadeia, muitas coisas tinham mudado, a cidade tinha mais rotundas, estátuas, centros comerciais... Sem GPS nunca conseguiria encontrar o que queria, mas seu carro estava pronto para isso. Conduzira até um centro comercial, onde Ernesto não se atrevera obviamente a entrar e saíra de lá com as mãos cheias de sacos de papel, alguns exibiam o nome das lojas respectivas.
Mesmo sendo um animal mais vezes do que era humano, Ernesto sabia que aqueles eram sacos de roupa. Ficou intrigado com a vida boa que Estela se porpocionava. Após meter as compras na bagageira do carro, Estela tirou de sua bolsa um maço de tabaco e um isqueiro. Tragou o cigarro como alguém que já fez isso muitas vezes, Ernesto concluiu. Ernesto, empoleirado mais uma vez num fio de electricidade acima do estacionamento, refletiu na ironia da vida de Estela. Ela era uma pessoa tóxica, assim como os cigarros que agora consumia. Realmente a prisão não a mudara, apenas realçara a sua essência. A sua essência podre.
Satisfeita! Estela estava realmente satisfeita consigo mesma. Comprara o vestido perfeito para levar àquele baile, para além de outras coisas. Não é que a sua roupa de antigamente não lhe servisse, podia gabar-se de que ainda conseguia vestir aquilo, mas a sua mãe não guardara muita coisa sua. Quando mudara para o apartamento, apenas guardara uma caixa de roupas da filha e mais duas com outro tipo de pertences. Não era um apartamento muito grande. Obviamente que a atitude de sua mãe não lhe agradara minimamente. Ema agira como se ela nunca mais fosse sair da prisão, mas nunca partilharia esses seus sentimentos com a mãe, pois a sua boa imagem ficaria em cheque. Não queria abrir uma brecha que deixasse a sua mãe desconfiada sobre o verdadeiro tipo de pessoa que ela era. Não a sua mãe, que era a pessoa que mais acreditava em si e a mais fácil de manipular.
Entretanto o corvo estava empoleirado no corrimão da varanda do seu quarto, enquanto ela pousava os sacos no chão. Ernesto podia jurar que Estela estava percebendo a gafe que acabara de cometer. Ela ainda não tinha móveis no quarto, ela nem tinha máquina de lavar a roupa para puder pôr aquela roupa a lavar se quizesse. Talvez devesse ter ido comprar os móveis, antes de comprar a roupa, se bem que não faria diferença. Estela percebeu a sua pequena gafe, porém precisava de um vestido e o dia ainda não tinha acabado e Ernesto por sua vez, estava a milhas de distância de saber que ela iria a um baile promovido por a sua Editora literária, a mesma Editora de Luana Almirante, a escritora que iria levar ao baile seu melhor vestido verde e o jovem Pedro Pimenta, agente da PSP e da DOM.
Depois de arrumar o restante do que tinha para arrumar, Estela desceu até ao rez-do-chão e apreciou a piscina interior. Do outro lado dos vidros via a piscina exterior. Ai, a vida era muito boa! Esperava que a vida nova a inspirasse como a prisão a inspirara a escrever vários best-sellers. A única grande vantagem daquele sítio, era o poder que tinha de a inspirar, todas as histórias de criminosas que cercavam os corredores, muitas verdadeiras histórias de terror, a sua praia. Ela só precisava pegar nessas histórias, moldar à sua maneira, inventar coisas aqui e além e prontos, tinha ali um livro prontinho a ser best-seller. Uma das coisas interessantes é que o fato de estar na prisão fazia as pessoas comprarem mais. Mesmo sem a ajuda adicional do pato bravo, o seu estatudo parecia promover a sua glória, o poder das suas palavras no papel. Nunca iria admitir tal coisa, mas talvez Melinda a tivesse ajudado um pouco.
Viu enfim o corvo que a espiava do outro lado do vidro, pertinho da piscina exterior. Estranhou um pouco, porque aquela era uma zona conhecida pelas gaivotas. Na verdade podia contar pelos dedos de uma mão só, as vezes que avistara um corvo na zona do Porto em toda a sua vida. Essa foi a única razão pela qual deu minimamente atenção àquele que para si era simplesmente um pássaro de mau agouro.
Estar naquela casa tão grande para uma pessoa só fazia a sentir ligeiramente solitária. Não dava valor à reciprocidade numa amizade, mas gostava de se rodear de pessoas a quem a sua presença agradasse, pessoas fáceis de manipular, que acreditassem em si cegamente, que lhe fossem leais, mas depois de tanto tempo na prisão, tirando a sua mãe e a sua filha mais nova não tinha mais ninguém. Não tinha Lourenço. Inspirou fundo, o ódio solidificando a frieza de seu coração. Não tinha mais Lourenço consigo por causa dela, de Melinda. Fazê-la imaginar que não era filha de Rogério era muito pouco como castigo. Muito pouco! Que tal apanhar aquele corvo e mandar o cadáver dele para o endereço dela? Ela nunca apanharia o corvo, mas ainda assim tinha sido uma ideia e tanto.
"Espera lá, ele está a olhar fixamente para mim?" Questionou-se.
Rodeou a cama. O corvo virava-se na direção dela conforme ela se mexia, escoltando-a detalhadamente. Se antes era uma dúvida, agora tinha a certeza. Sim, aquele corvo olhava para ela. Isso fez os pelos de seus braços se eriçarem. O que aquilo quereria dizer? Por momentos ficou petrificada olhando para ele, até que ele levantou vôo e deixou Estela questionando a sua sanidade mental.
Ernesto ainda não sabia o que faria. Não era uma pessoa vingativa. Sofrera muito nas mãos de Estela e sabia o monstro que ela por dentro, mas não ambicionava vingar-se, porém sentia que ela por seu lado ambicionava fazer isso contra alguém. Desde que era um metamorfo podia sentir isso nas pessoas, era como se cada sentimento tivesse um cheiro diferente. Literalmente ele tinha faro para esse tipo de situações, mas que poderia ele fazer para descobrir o que ela planejava fazer sem se expôr? Estar na sua forma original de humano era um risco, mas... ele não precisava de ter mãos e pés para proteger quem quer que fosse da mente doentia e psicótica de Estela. Ele acabava de ter uma ideia. A ideia de sua vida!
🔥🔥🔥
Um gato de pelo laranja roçava-se contra a vidraça dupla da varanda de Estela. Ela andou com cuidado até ele e abriu a porta de vidro lentamente, para não espantar o animal. Ele não parecia ter intenções de fugir. Mal viu a porta aberta entrou e roçou-se nas pernas de Estela. Os animais para Estela normalmente eram seres indiferentes, nem gostava, nem desgostava, mas agora que olhava em volta e se sentia sozinha, não achava má ideia deixar aquele gato fazer-lhe companhia. Se ele fosse dócil como parecia ser, ela até podia suprir dele o afecto de que estava sentindo necessidade.
- Oi, gato - disse, pegando nele com jeitinho - Queres comer?
O felino miou fininho. Estela levou-o no colo até à cozinha, de onde tirou uma lata de atum, abriu, meteu o molho a escorrer e colocou num pires. O felino comeu aquilo num instante. Estava cheio de fome.
- Nossa, quanta fome, bichano. Queres água?
Colocou água numa tigela de sobremesa e viu o gato deliciar-se. Tinha comprado aquela louça antes de escolher aquela casa fantástica, mas não falhara na escolha. Combinava com o estilo. O seu estilo.
Por estranho que pudesse parecer e ela própria tinha essa consciência, gostava de ter um animal ali. Aquela casa era grande demais para não ser partilhada. E era um gato bem bonito. Não destoava do seu estilo. Podia até lhe comprar tudo que ele precisasse e quem sabe ele não precisaria mais sair à rua, ficaria ali, apenas consigo, roçando-se nas suas pernas. Aquele gesto fazia com que se sentisse especial. Talvez ele fosse domesticável, apesar da reputação felina.
- Tens donos? - perguntou - Pensei que os gatos mostrassem as garras a desconhecidos.
Mais uma vez o gato roçou-se a ela e estendeu o corpo no chão, mostrando que não tinha medo de ficar vulnerável na sua presença.
- Gostas-te de mim - afirmou. Isso agradava-lhe imenso. Ela adorava ter esse efeito nas pessoas, a acabava de descobrir que também adorava ter esse efeito nos animais.
Olhou para o relógio de pulso.
- Atrasados - falou - os homens do Conforama estão atrasados. Caramba! Quero meter roupa a lavar e comer sem ser no meu balcão. Tu percebes, n'é bichano? Não sou um animal como tu. Eles sabem quem eu sou? Sou uma escritora best-seller. Sabes, comprei mobília digna de uma rainha. Não te preocupes, bichano, comprei um arranhador para ti. Já viste como sou uma boa dona?
Se Estela entendesse minimamente sobre o carácter felino, ela não se julgaria dona daquele gato laranja dando ares de gato das botas. Nunca ninguém lhe ensinara que gatos são animais independentes, difíceis de subjogar. Eles escolhem o seu lar, eles é que são a parte dominante numa relação com humanos. Eles! Mas era indiferente, porque aquele gato podia ser o animal que bem entendesse, quando assim o entendesse. E ele podia fazer com que ela pensasse que ele era o bichano ideial para suprir as suas carências. Acabava de constatar que consigo ela abriria as portas de seu verdadeiro ser sem reservas. Afinal, ele era apenas um animal, não um humano com que Estela precisasse fingir ser boa pessoa. Em sua casa, apenas com um gato como companhia, Estela podia se despir de todas as máscaras sociais que usava fora daquelas paredes. Ali ela era a verdadeira Estela. Se por momentos ponderara levar para ao pé de si a sua mãe e a sua filha, percebera a tempo seu futuro erro. Não, por uma vez na vida ela poderia baixar as defesas e agir de acordo com suas vontades. Não podia viver com mais ninguém.
O som da campainha assustou o gato desprevenido. Ele pulou para trás. Estela foi abrir a porta aos homens.
Aos poucos a casa antes vazia foi-se enchendo. Não aconteceu tudo num dia só, pois Estela era demasiado fina para comprar tudo num único sítio, mas de facto tivera a delicadesa de comprar a arranhadeira para o gato num espaço bem curto de tempo. Ficara tão contente por ter um gato que tivera a enorme amabilidade de encomendar uma coleira com um nome forjado, sem pensar mais se ele já teria um lar. Isso era-lhe indiferente. Estava claro que ele queria ficar consigo.
Foi com algum espanto que o gato descobriu o nome que Estela escolheu para si. Era até difícil de saber o que sentir perante aquela coleira vermelha com um pequeno sininho irritante. Ele haveria de arrancar aquilo à primeira oportunidade.
Estela idolatrava tanto o seu pai ao ponto de chamar o gato de quem se julgava dona, de Óscar?
Óscar! O nome do pai de ambos.
Óscar! O nome dos prêmios que os famosos ganhavam e que via na televisão.
Óscar, um nome que Ernesto tinha trancado na memória há muito tempo.
Obviamente que para si aquilo era só teatro. Ele era um metamorfo, não um gato, mas Óscar...
A sua irmã realmente teria sempre o poder de o surpreender e ainda não parava por ali.
- Bichano, o teu nome é Óscar. Era o nome do meu pai. Ele dizia muita vez uma frase...
Antes de ela terminar a frase, Ernesto já sabia o que ela iria dizer. Disse-a ao mesmo tempo em pensamento.
- Nomes têm poder.
🔥🔥🔥
Oiii, travei um pouco neste capítulo, mas cá está ele.
Espero que tenham tido uma boa páscoa.
Dêem o vosso feedback e até ao próximo capítulo.
Deixo-vos com um gif que a minha filha me veio mostrar no outro dia. Fiquei vidrada nesse vídeo.
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