1- Pequena ave mágica
Antigamente
No ano de 1139, ano em que Portucale se tornou Portugal e D. Afonso Henriques se proclamou rei, um dragão pousava algures num castelo construido por mouros, esses que durante tanto tempo povoaram as terras portuguesas, deixando artefactos históricos assim como lendas e superstições.
Escondido do povo, bem no alto da montanha, onde a torre fôra estratégicamente montada, o dragão esperava algo. Era o último dragão da terra, e ele sabia disso. Sentia-se triste e só. Na verdade era fêmea e estava pronta a pôr um único ovo. O dragão mãe ouviu os estalidos e olhou lá dentro com estupefacção. Não era um réptil com asas pequenas. Não era um dragão e sim um pássaro que quebrou a casca do ovo rijo com a chama que lançara da boca.
Era um passaraco feio nos primeiros minutos, mas de repente penas vermelhas começaram a crescer pelo ser corpo despido. Enormes penas no rabo e na cabeça. Soltou um chiado agudo que fez a mãe aproximar-se quando seria esperado que se afastasse. A mãe a olhou curiosa, a pequena ave acariciou com sua cabeça o focinho de sua mãe e nessa ternura, o dragão deu seu último suspiro e deixou a fénix que acabara de chocar, sozinha no mundo. Durante três dias a fénix não parara de chiar, chorava e gritava à sua maneira até que alguém a ouviu. A pessoa foi à procura de quem possuía tamanha dor.
Tratava-se de um pobre lenhador de seu nome Altair. Tinha ido demasiado longe para cortar árvores de grossa envergadura e acabara por perder noção da distância que percorrera. A única vez que havia ido tão longe, fôra quando as tropas de D. Afonso Henriques o convocaram para a batalha de São Mamede, que o rei travou contra a sua própria mãe, Teresa de Leão, condessa de Portucale e sua antecessora da posição de Conde que ele tivera antes de se proclamar rei.
Altair não era covarde, mas detestava guerras, sangue, o ódio inerente de parte a parte, a morte e o que ela trazia consigo. Ele negava-se a fazer parte disso, nem que para isso tivesse de fugir, assim como fez. Queria viver junto à sua esposa e à sua filha e construir um destino sem guerras.
O homem aproximou-se cada vez mais da torre. Entrou e depois de subir as escadas até ao cimo, avistou o volume do dragão, que com a morte começara a transformar-se lentamente em cinzas.
O seu primeiro impulso foi fugir, mas sentiu o corpo pedir para se aproximar. O seu coração sentia que não havia perigo. Mais uns passos e então avistou uma pequena ave de penas com cores fogosas. Nunca tinha visto um pássaro assim. Era o animal mais bonito que já vira. Isso fizera Altair esquecer que estava bem próximo de um dragão.
Mais tarde lembrar-se-ia com auto-admiração que vira um dragão e nem sequer gritara. Ele que nunca acreditara em seres sobrenaturais. Ele que era igualmente cético com a sua vizinha Capitolina, a quem as pessoas mais supersticiosas procuravam para os mais variados problemas. A mulher estava a caminho dos oitenta anos e ainda dizia para quem quizesse ouvir que era um instrumento de Deus na Terra.
Olhou para o pássaro que deitara tantas lágrimas que se encontrava com as pequenas patas submergidas numa poça. Aproximou-se. A fénix parou de chorar e chiar e olhou para Altair com curiosidade, abanando a cabeça de um lado para o outro como se estudasse as feições do homem. Altair era louro, de um louro quase castanho, ainda assim louro. Os seus olhos eram azuis como o céu em dias límpidos. Isso instigou a pequena ave, que até então só vira os olhos enormes da sua progenitora e em nada se assemelhavam aos do lenhador.
Altair pegou na fénix, sem saber de que pássaro se tratava e foi direito para casa, louco por mostrar à mulher e à filha aquele ser espantoso. Andou imenso até chegar à sua carroça. Colocou a pequena ave na parte da lenha, ainda sem um tronco sequer e sentou-se no curopito, de onde agarrava as cordas presas aos burros e os instigava a andar.
- Anda, burro, anda - gritou com ansiedade em chegar a casa. Os burros seguiram viagem para a aldeia mais próxima e pararam numa pequena casa de tijolos, feitas pelas mãos de Altair, quando era mais novo.
De dentro da casa, uma criança brincava com amigos imaginários e pareceu a Altair que ela iria brevemente abrir a porta de entrada e vê-lo.
- Violante - disse o pai contente - Não vais acreditar no que o pai encontrou.
A menina olhou para a carroça de laterais fechadas.
Altair saiu do curopito saltando para o chão e abriu uma das laterais da carroça. Qual não foi o seu espanto quando em vez de uma ave majestosa, viu um bebé recém nascido.
Quando Violante pousou os olhos na bebé ficou estupefata. De quem era aquele bebé?
Altair também ficou estupefato, mas por razões bem diferentes. Ele sabia perfeitamente que tinha pegado num pássaro e não num bebé. Aquilo não fazia sentido algum.
A sua vizinha, a curandeira Capitolina abriu a porta de sua casa e viu ao longe a bebé. Ela sentia a sua aura. Ela sabia que não era apenas um bebé. Ela sentira a presença daquela criatura mística cada vez mais próxima, por isso viera à porta. Ela precisava de ver.
Pai e filha se entreolharam. A bebé soltou uma gargalhada e o clima mudou de repente.
A fénix encantada, pensou Capitolina.
- Pai, que bebé é esse e porque não tem roupas?
- Não sei, filha - respondeu Altair.
- No fundo tu sabes, só não queres acreditar - disse Capitolina perto do seu ouvido. Ela aproximara-se com passos de veludo, por isso ele deu um pequeno pulo de susto quando a ouviu.
- Vai buscar uma manta para a cobrir - pediu Altair à filha.
Violante foi obediente. Passou pela mãe que cozinhava sem dizer uma palavra e voltou para fora a fim de cobrir a bebé com a manta que pegara.
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- Que bebê é essa, Altair? - perguntou Norvinda, a esposa - O que é que isto quer dizer, homem?
Não era raro haverem homens com filhos bastardos e outras mulheres, e Norvinda ouvia todo o tipo de histórias quase todos os dias quando ía lavar a roupa no rio.
- Encontrei em Algar da Pena.
- Foste tão longe?
Por momentos pensou em falar do dragão, mas logo a seguir decidiu guardar esse segredo consigo. Não queria acreditar que aquela bebê era uma cria de dragão, mas sabia que era essa a verdade e iria guardar esse segredo e levá-lo para o túmulo.
- Fui, tem lá uma torre, foi lá...
- Ela foi abandonada lá? - Norvinda abriu a boca.
- É - concluiu Altair. Não havia mais o que dizer. Era preferível que ela pensasse isso.
- Vou ter uma irmãzinha? - perguntou Violante.
- Sim - respondeu a mãe.
No entanto Violante, quando virara a cara, dando as costas aos pais, não era uma expressão de alegria que seu rosto exibia, apenas apatia. A partir desse momento no seu coração começou a crescer uma espécie de fumo negro, fabricado pela futura falta de protagonismo no seio da sua família. Os pais de nada se aperceberam.
- Temos de lhe dar um nome - constantou Norvinda, olhando apenas para a bebê dormindo.
Enquanto a família conversava, uma família de periquitos fazia alvoroço na amoreira que se encontrava bem em frente à janela da cozinha, apesar das horas tardias.
- Os periquitos não largaram as amoras o dia inteiro - comentou Norvinda.
- Amora... - disse Altair pensativo - Amara... Que acham do nome?
O nome foi aceite por unanimidade. A partir dali em diante, a filha do dragão tinha um nome parecido com amor.
Amara tinha nascido numa torre que parecia tocar as nuvens, mas era ela quem poderia ir até ao céu, se soubesse que tinha capacidade para isso.
As pessoas do povo tinham tão pouca cultura que nem se questionaram uma só vez da maternidade da criança. Como se Norvinda tivesse carregado a criança em seu ventre magro durante nove meses. Havia apenas uma pessoa que não tinha dúvidas de que aquela criança não era filha daquele casal. Capitolina sabia perfeitamente quem ela era e o que ela era. E os pais adotivos sabiam que ela sabia e por alguma razão confiavam no seu silêncio. Era velha e chamada de bruxa, mas se havia coisa que ela não era, era cusca. Aquela mulher de bruxa não tinha nada, mas isso, pouca gente sabia. O seu marido, Abel, carpinteiro de profissão, amava-a incondicionalmente e para si, era o importante. Ela sabia o tanto de amor que Abel tinha por si, porque ela lia auras, a do marido, a de Amara, a de Altair, a de qualquer um. Ela inclusive vira a aura de Violante ir mudando de cor e de tonalidade com o tempo, ela sabia o que estava a acontecer no interior da menina. A sua puresa tinha-se putrificado. Por fora era uma menina loura de olhos azuis como seus pais, mas por dentro era uma cobra cujo veneno invejoso só se intensificava. A inveja tinha esse poder, corrompia até não haver nada de bom para encontrar ali dentro. Fazia dela disposta a qualquer coisa para prejudicar a irmã e ela não mediria esforços para tal.
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Naquela altura, quando Amara foi encontrada, a família Benavente era extremamente humilde. Os recursos eram escassos e a casa de pedra no inverno ficava muito fria, mas depois que Amara aparecera, os recursos haviam redobrado a olhos vistos. Os alimentos brotavam do quintal grandes e vicosos e a temperatura dentro de casa também parecia ter mudado. Amara gostava de acender a lareira, tinha um especial talento para manusear o fogo de maneira a durar mais tempo e aquecer a família.
Os pais tinham orgulho nela, mas Violante queria esse sentimento de orgulho para si. Ela chegara primeiro, ela era a verdadeira filha, aquela outra era uma espécie de bastarda que só aparecera para ofuscar a sua presença. Após a sua chegada, nunca mais nada fôra igual, nem os seus pais.
Conforme os anos se passavam, a menina ficava cada vez mais bonita, mas era diferente. Como se algo nela saísse do padrão e tudo que saía do padrão era estranho. Suas mãos eram muito quentes, aliás, todo o seu corpo, mas não era algo de relevância até se sentir constrangida ou enervada. Não importava o que estava sentindo, se era ruim e desconfortável, Amara queimava como se estivesse sendo vítima de uma febre infernal. Aprendera a controlar-se com a ajuda de sua mãe, mas sobretudo com a ajuda da velha e sábia Capitolina, que começava a caminhar a passos apressados para o colo da morte.
Por muito que Amara tentasse, Violante não era sua amiga e sim sua rival, não que ela quisesse, tão pouco desejasse, ela nem acreditava nisso, mas Violante sim.
Violante não queria apenas que Amara partisse para nunca mais a ver, ela queria ver a irmã sofrer, quem sabe implorar por o perdão que ela nunca lhe prestaria. Ela queria alimentar o seu ego, porque sua auto-estima estava subnutrida há muito tempo.
Violante não era má com Amara em frente dos pais, não aparentemente. Ela até fazia tranças na irmã e quando ninguém estava vendo puxava-lhe o cabelo e magoava-a. Esperava que Amara se queixasse, tendo a oportunidade perfeita para dizer que não foi ela, mas Amara nunca se queixava de nada. Ela fervia por dentro, literalmente, mas não diria aos pais a pessoa que tinham dentro de casa, porque isso os desapontaria. Ela não queria magoar as pessoas que a criaram desde sempre. Ela sabia que não pertencia ali, tão pouco era parecida com eles.
Aonde pertencia? Não sabia. A sensação que sentia a maior parte do tempo era a de não pertencer a lugar nenhum, mas não podia saber isso, nunca saíra daquela pequena vila nos arredores de Leiria. O que poderia saber sobre pertencimento, se nunca estivera em mais lado nenhum?
Com quatorze anos, farta dos afrontos e humilhações de Violante, começou a desejar sair dali. E para longe, procurar algo que a preenchesse e um sítio para pertencer, sem ter uma irmã endemonizada. Não sabia para que lado ir, mas havia uma carroça de burros que todos os dias saía da pequena vila para um outro sítio. Se se escondesse lá dentro poderia ir embora. Ela adorava os pais, mas não aguentava mais a irmã. Pegou em duas mudas de roupas, que um dia haviam pertencido a Violante, coisa que esta nunca se esquecia de a lembrar e meteu dentro de um saco de tecido, costurado por si mesma. Esperou o cair da noite e então se esgueirou por o palheiro perto de sua casa. Foi então que começou a ouvir gemidos cada vez mais altos e poderia jurar conhecer aquela voz. Nunca ouvira nada do gênero, apesar de já ser mocinha e sangrar. Ela não entendia aquele barulho. Naquela época, com a pouca educação e os muitos tabus, não era algo de que se falava, ainda mais a uma moçinha. Então movida pela curiosidade, adentrou o palheiro e vislumbrou um cabelo loiro comprido cobrindo umas costas curvilíneas nuas. Ela conheceu a farta cabeleira, porque a vira toda a sua vida.
Por baixo dela estava um homem, que se moveu para cima e viu Amara por cima do ombro de Violante. Assustado pegou Violante por a cintura com as duas mãos e a puxou para o lado de maneira quase violenta, dizendo que aquilo não era o que parecia, mas Amara não sabia o que aquilo parecia. Ela não entendia porque Violante estava nua em cima do padre, que também estava nuo. Parecia-lhe errado, mas não entendia porquê. As suas bochechas arderam de vergonha, pois sentiu que não era suposto ver aquilo. Pouco tempo depois, Violante alcançou-a já vestida.
- Peste - Amara não se lembrava de nenhum momento durante toda a sua vida, em que Violante a havia chamado pelo próprio nome - Espera - agarrou os pulsos da irmã com força a mais, quando a alcançou - Ai de ti que contes o que viste a alguém. Ouviste? Seja aos pais, seja a quem for.
- Larga-me! - mandou Amara. Era a primeira vez que algo que ela dizia soava como uma ordem, porque era exactamente isso que aquilo era - Já disse para me largares. Estás-me a magoar.
Violante rosnou de raiva. O padre apareceu de batina ao lado dos dois. Era um homem com cerca de dez anos a mais que Violante.
- Tu estás a dar-me ordens, criatura?
- É, eu estou - lançou Amara, o seu olhar estava duro e determinado. Finalmente tinha ultrapassado o seu limite. Saber que não ía ter mais de olhar para a cara da irmã daí a pouco, dava-lhe essa força.
- Sua...
O padre olhava para Violante, mais especificamente para suas pernas. Amara achou que aquele não era um olhar muito religioso, mas o que sabia ela? Também não devia ser nada religioso estar todo núo com uma moça menor de idade no palheiro a fazer uns movimentos desenfreados e fazendo a menor gritar. No entanto, Violante não parecia nada chateada com isso, parecia mais chateada por aquilo ter acabado, fosse o que fosse.
- Criatura? Já sei. Ouve. Podes voltar a ficar nua com o senhor padre. Nem sei porque pararam quando eu entrei. Não tinha a intenção de interromper... isso. Eu só quero que me largues porque me estás a magoar. Já te disse, Violante. Larga-me os braços.
Aquilo que Violante ouviu foi "vou dizer a toda gente que estavas a fornicar com o padre", então disse algo que nunca se deve dizer a uma fénix.
- Estou-te a avisar. Se contas, eu mato-te.
- Violante, olha a blasfémia - avisou o padre.
Amara tinha os pulsos extremamente doloridos a essa altura. Violante tinha muita força e não parecia querer largar. Ela nunca respeitara a irmã e não se importava com a dor que lhe podia provocar. Amara teve certeza nesse momento que a irmã não ía parar de apertar e uma raiva cresceu dentro de si, sobretudo por ouvir daquela pessoa a quem nunca fizera mal nenhum, uma ameaça de morte tão convicta. Ela nem sequer entendia que tipo de segredo era aquele e já dera a entender que isso não lhe interessava. Deveria ter bastado a Violante. Tanto ódio já devia ter bastado há muito tempo. Ódio esse que a cegara a ponto de não perceber que os pulsos que apertavam começavam a aquecer mais e mais. Só largou os pulsos de Amara, quando estes a queimaram literalmente. Mais um pouco e teria tido a pele das mãos arrancadas.
- Sua maldita. O que é isto? Estás tramada, vou dizer aos pais e desta vez vais ser castigada.
Violante correu para casa e o padre olhou para Amara como se estivesse olhando o demónio em pessoa. Inclusive meteu os dedos em cruz e os beijou. Poucos minutos antes beijava partes de corpo que não eram as dele.
- Porque está a olhar assim para mim? - perguntou Amara, consciente da má criação.
Ela não sabia que seus olhos ficaram vermelhos como fogo e que sua pele parecia ter-se aberto em pequenas fendas luminosas.
- Cruzes Cristo - disse o padre, besendo-se e caminhando a passos apressados para longe.
Quando Amara inclinava novamente o canto do palheiro, afim de ir embora, ouviu uma voz dizendo "Sê tu mesma, pequenina, voa voa voa". A mesma frase repetiu-se quatro vezes. Não entendera que estava parada na beirada do palheiro até seus pais surgirem.
Quando Altair olhou para si, viu o saco de pano que Amara tinha consigo e não demorou para perceber o que se estava a passar, ao contrário de Violante, cega por o próprio umbigo.
- Ondes pensas que vais, filha?
Uma lágrima escorreu dos olhos de Amara.
- Desculpa, pai. Eu não aguento mais, eu vou-me embora.
- É por teres queimado a tua irmã?
- Eu... não. É porque ela é horrível comigo. Ela sempre foi. Eu entendo. Sou eu que estou a mais, portanto sou eu que vou embora.
O sorriso no rosto de Violante abria-se numa alegria maliciosa. Pela primeira vez, Altair apanhou-a sorrindo assim e percebeu tudo. Podia nunca ter visto nada, mas aquele rasgo de momento, aquele sorriso maquiavélico mostrara a verdade que rasgou seu coração. Ele criara um monstro, pois só um monstro sorria daquele jeito. Ficou tonto e deixou-se cair, mas foi apanhado por sua filha mais nova.
- Estás bem, pai?
- Ele é o meu pai - contestou Violante.
Amara levantou-se com raiva e pela primeira vez Violante teve respeito. Não, medo. A sua expressão era de puro medo.
- Pára de agir que nem uma menina mimada e ajuda o nosso pai. Tem um pouco de respeito. Ele está-se a sentir mal.
Violante aproximou-se do pai e ajudou-o a levantar-se, com o desejo urgente de se distanciar da pessoa a quem ela chamava de criatura. Começava a pensar que não deveria ter repetido aquele nome para Amara tanta vez, a sentir-se culpada, porque a culpada devia ter sido ela. Amaldiçoara tanta vez Amara em segredo, que agora ela estava possuída por o demónio. Nunca tinha visto nada assim.
Amara sentiu uma mão em seu ombro, o que a fez virar. Era Capitolina.
- Ó minha pequenina...
- Era a sua voz. Era você que estava falando para mim.
Capitolina anuiu com a cabeça.
- A tua irmã fez-te a vida num inferno. Se queres partir, parte. Sê tu mesma, pequenina, voa!
Amara sorriu ligeiramente.
- Voar, dona Lina? Não sou uma gaivota.
Capitolina deu uma gargalhadinha.
- Não, não és uma gaivota. És muito mais especial e majestosa e estás há tanto tempo aprisionada no teu corpo de humana, que já não sabes quem és. O que és.
Do seu bolso de avental, Capitolina tirou um pedaço de espelho, raro naquela época histórica.
- Olha para ti!
- Isso é um espelho?
Sem esperar uma resposta ela se olhou e se deparou com dois olhos vermelhos. Fendas raiavam sob sua pele no rosto. Sentiu que o certo era sentir medo, assim como Violante e o Padre. Olhando para o espelho acabava de compreender a atitude deles, mas não foi isso que Amara sentiu. Ela sentiu-se mais bonita que nunca, resplandecente e livre. Pela primeira vez sentiu o pertencimento que tanto desejava. Sentiu que pertencia a si mesma.
- Você não tem medo de mim, dona Lina?
- Eu? - Capitolina gargalhou - Ai, minha querida. Eu vi-te no dia que chegas-te. Estavas perto e eu já sentia a tua presença. Tu foste o acalento de teus pais e o gatilho de tua irmã.
- Eu sou especial como você?
Capitolina abanou a cabeça.
- Não tem comparação possível. Não sei se existe um nome para aquilo que sou, mas irão existir muitas mais pessoas como eu ao redor do mundo, no entanto como tu... devem existir, mas mesmo entre elas tu és especial. Eu sinto aqui - meteu as mãos em seu coração - tu és pura, tão pura que nem entendeste o que viste no palheiro.
- A senhora sabe?
- Óóó, se sei. Aquele padre é um malandreco, anda com várias novinhas. E a tua irmã de santa não tem nada. Não penses nisso, pequenina.
- Dona Lina. O que sou, então?
Nesse momento sentiu um barulho de asas que vinha de trás de si.
- Olha atrás do teu ombro, pequenina.
Amara olhou, e viu uma asas flamejantes e enormes. Ela icendiara a noite escura com a sua luz, algumas tochas se aproximaram das janelas. Olhos a prescrustavam na noite. Capitolina a olhava como se estivesse admirando Deus em pessoa. "Que privilégio ver uma aura assim" pensava ela. Amara se aproximou da senhora idosa e algumas pessoas curiosas que haviam saído à rua para ver, tiveram medo por Capitolina, esquecendo-se momentaneamente que a chamavam de bruxa. Amara abraçou a velha amiga e deitou uma lágrima em seu ombro. A lágrima foi sugada para dentro de sua roupa e Capitolina sentiu-se revigorada. "A cura das lágrimas da fénix".
- É hora de ires, pequenina. Esta gente tem a mente muito pequena, não entendem o que desconhecem.
- Dê um beijo aos meus pais por mim. Diga-lhes que os amo.
- Direi, mas vai já. Voa - mandou um beijo com a mão - Voa!
Amara deixou cair o saco de pano com as mudas de roupa e se transformou inteiramente em fénix. O seu rabo era enorme e fascinante. Com as patas pegou no saco de novo e então vôou. Sobrevoava a igreja quando viu vários vilaenses a olharem com espanto e admiração. Ficou surpresa que alguns pareciam estar amando testemunharem tal aparição, mas dois ou três homens pareciam estar prestes a alvejá-la, então ela vôou bem rápido em direção às estrelas e nunca mais voltou àquela pequena aldeia, mas levara em seu coração os pais que a criaram, assim como a velha Capitolina e seu marido Abel. Eles eram os únicos naquele sítio que mereciam ser lembrados. Só se cansou quando alcançou uma torre em ruínas em Algar da Pena e ali repousou.
Os lugares guardam memórias. Não era por acaso que ela tinha ido ali parar, precisamente no ciminho daquela torre.
Quando se deitou no amontoado de cinzas e sentiu o aconchego que nunca sentira antes, ela não tinha como saber, mas mais cedo ou mais tarde descobriria que se enroscara nas cinzas de sua mãe biológica. Ela pertencia mais ali, do que a qualquer outro lugar, mas agora sabia quem e o que era e tinha um pedaço de espelho mágico que servia de portal entre si e Capitolina, a augenide que a vira crescer e que sempre conhecera sua genética mágica. Aquele bocado de espelho que a faria descobrir que haviam outras criaturas mundo afora que ela precisava conhecer, porque ela, Amara, pertencia a si mesma e o mundo lhe pertencia.
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Augenide - Leitora de auras
Oi, espero que estejam a gostar.
Eu viciei nas pinturas.
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