Venha embora comigo no meio da noite.
Venha embora comigo
Come Away With Me – Norah Jones

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"Ir com ele de repente me parece uma utopia possível e meu corpo inteiro grita por essa felicidade nova e essa esperança que me cega. Esse parece o único foco de luz que me rodeia e minha única chance de ser feliz" (Diário de Ayana)

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Aquilo tudo me machucava muito mais do que eu gostaria de admitir. Ela parecia falar para se ver livre desses pensamentos que possivelmente estavam presos ali havia muito tempo. Estava claro que ela se importava com o que pensavam. Estava claro que machucava o que falavam dela e por mais que ela não admitisse, estava claro que esses estigmas a afetavam, mesmo que isso não fosse fazê-la mudar de opinião.

– Em uma visão comum, as mulheres não estavam nem física e nem mentalmente aptas a ingressarem em trabalhos manuais pesados – Ayane seguiu falando, ela mal parecia notar que eu estava ao lado dela. Parecia apenas que ela queria soltar as palavras ao ar – essas mulheres "inaptas" agora trabalham sob condições duras, cultivam a terra e fazem a colheita sem reclamarem dos seus malditos destinos enquanto seus maridos e filhos morrem nas barreiras. Elas assumiram as supostas funções dos homens com muito mais eficiência do que eles, mas sei que quando eles voltarem para casa, esses malditos vão voltar a fazer como sempre fizeram. Então para que serviu toda essa inspiração que eu supostamente dei? Elas vão voltar a apanhar por terem feito alguma coisa errada e eles vão estar no direito de fazê-lo. Eu os odeio, mas não consigo deixar de ajudá-los, no fim eles também sofrem com as guerras e aprenderam a ser assim. Essa é a maldita realidade, não importa o que eu penso ou o que eu acho. Aqui as mulheres não ingressam na política sem um marido ao lado e isso se elas tiverem a sorte de nascerem nobres como eu. Elas também não chegam a exercer nenhum cargo influente pela simples opressão masculina.

– As outras ilhas também são assim? – perguntei para manter o assunto, estava claro que ela precisava falar e eu queria estar ali para escutá-la.

– Cada ilha tem leis próprias, apesar de termos uma guerra em comum. Nossas alianças têm limitações, então Daneel não pode interferir em nada daqui por exemplo, do mesmo jeito que Khur não pode interferir nas decisões que Daneel toma em sua ilha. Khur é uma ilha sem leis desde que a guerra se instalou, tento a todo custo que seja uma ilha justa, mas estando nas linhas de frente e sendo uma "mulher perdida" sem futuro e sem marido, o único que posso fazer é pedir proteção aos deuses e torcer para que aqueles malditos estejam cuidando bem do que restou do meu povo. A Falcón Island é diferente, ali homens e mulheres vivem de maneira igual, é o único lugar que conheço que não importa se você nasceu homem ou mulher, seus direitos e deveres seguem os mesmos. Daneel é incrível por manter essa utopia, mas não conheço outro homem que pense como ele.

– Você sempre fala da Falcón Island com admiração – falei sentindo um misto de curiosidade e ciúme difícil de definir.

– Cresci com o Daneel e tanto sua prosperidade quanto sua integridade me fazem admirá-lo ainda mais. A Falcón Island é um bom lugar para se espelhar apesar de eu não concordar com alguns dos seus métodos – fiquei quieto, não podia contestar aquilo sem deixar aparente o que eu sentia, vendo que eu não falaria nada, ela mesma seguiu com o assunto – e em Vixen? Como é ali?

– É um país machista – respondi sinceramente – obviamente nem metade do que é aqui. Em sua grande maioria as mulheres cuidam das casas e dos filhos, mas isso não significa que elas não possam trabalhar ou que sejam vistas como prostitutas se o fizerem. É um machismo que está caindo pouco a pouco.

Ela não pareceu se imutar com a informação, mas colocou uma mão no queixo de maneira pensativa, talvez para ela aquilo fosse um paraíso e eu não estranharia se ela pensasse assim depois de tudo o que ela me falou.

– E como você pensa? – a pergunta me pegou desprevenido.

– Eu acho que mulheres são muitas vezes mais capazes do que homens. Eu nem poderia pensar de maneira distinta, muitas mulheres governam ao meu lado.

– E você nunca pensou em tentar mudar essa visão que você diz ser machista em Vixen? – seus olhos verdes se cravaram nos meus.

– Não. Talvez minha natureza tirânica não me deixe pensar nessas coisas – respondi apertando os olhos para ela e ela riu. Seu riso era gostoso de ouvir e sua expressão relaxou fazendo meu coração palpitar forte – eu ofereço trabalho para homens e mulheres igualmente desde que conheci a gangue que a Aylin faz parte. Todos partilham dos mesmos direitos perante as minhas leis, mas não posso forçar a mudança de pensamentos na cabeça de outras pessoas. O que eu posso fazer, eu faço.

E então, ela pareceu despertar repentinamente de um sonho e pulou do meu lado.

– Eu sinto muito – ela se curvou parecendo assustada – o que eu estou fazendo? Eu sinto muito, eu não deveria reclamar.

– Ayana, para – falei me levantando – não precisa pedir desculpas por isso.

– Pelos deuses – os olhos dela tremeram ao me ver levantar e ela se encolheu – por favor, eu juro que não farei isso de novo.

O que ela achou que eu iria fazer? Bater nela? Eu não conseguia nem sequer imaginar algo assim sem me sentir enjoado. Eu podia ter feito qualquer coisa, gritado, mandado ela ficar quieta ou até mesmo deixá-la ali, porque vê-la se humilhando depois de tudo o que ela falou me deixou com uma raiva incontrolável, mas a minha raiva não era dirigida a ela, a minha raiva era dirigida a todos aqueles que cravaram esses pensamentos na cabeça dela. E então, em um impulso completamente impensado, eu a abracei e ela tremeu.

– Me escuta, por favor – falei baixo acariciando seu cabelo – você é uma pessoa incrível. Ser homem ou mulher não faz diferença e você ser mulher não te torna menos valiosa e nem menos importante. Você não deve satisfação para homem nenhum e não precisa de um para ser alguém importante, você mesma falou isso para aquelas crianças, lembra? Não sei que medo foi esse que você sentiu de mim agora, mas acredite em mim, eu nunca vou te fazer mal, principalmente se o motivo for algo tão banal quanto eu ser homem e você mulher.

Ela primeiro ficou paralisada. Podia sentir todo o seu corpo tremer de maneira intensa, mas acabou cedendo ao meu contato.

– Por que, Kai? – ela entrelaçou seus braços em volta da minha cintura e enterrou seu rosto no meu peito – por que você precisa ser tão diferente? – eu não respondi, nem sabia o que responder no fim das contas, só fiquei ali com ela, enquanto ela parecia se acalmar e quando ela pareceu tremer menos, ela voltou a falar – Kai, por que você não quer ir embora?

– Eu quero ir – falei com franqueza para ela – mas não posso fechar os olhos para o sofrimento daqui.

– Você realmente é o rei – ela falou, mas não havia sinal de desgosto na sua voz – apesar de não concordar com algumas coisas, eu estou feliz de que seja você.

Novamente meu coração pareceu que sairia do peito e aparentemente isso não passou desapercebido por ela.

– Parece que seu coração está bravo – ela riu – se não fosse tão bom senti-lo, eu poderia dizer que ele está tentando me machucar.

– Ele nunca faria isso com você – falei com a emoção prestes a explodir – Ayana, vamos embora comigo. Eu juro que você nunca será inferior e o dia que você não quiser mais ficar do meu lado você estará livre para sair de lá e ir para onde quiser, mas por favor, vamos embora comigo.

Seu corpo ficou tenso antes dela voltar a olhar nos meus olhos, mas ela não me soltou, parecia temer fazê-lo de alguma maneira.

– Eu não posso – ela mordeu o lábio inferior e seu semblante foi tão quebrado quanto eu imaginava que estava a sua alma – como eu poderia ajudar se eu estiver do outro lado do mundo?

– Você vai ajudá-los – respondi – me ajuda a não deixar que eles sofram, mas eu não posso ficar aqui para isso. Você pode fazer muito mais estando lá. Você pode tomar o controle de novo.

Era verdade, ela poderia treinar tropas, poderia juntar recursos, poderia nunca me deixar esquecer do que seu povo precisava, ela poderia ser o vínculo entre Vixen e as ilhas do Oeste, mas acima de tudo, ela também estaria a salvo.

Seus olhos verdes seguiram olhando para mim, como se tentasse ler minhas verdadeiras intenções. Ela duvidava e eu não podia julgá-la por isso, mas não era menos doloroso no fim das contas. Quando eu estava desistindo de conseguir uma resposta, ela sorriu, um sorriso brilhante e caloroso.

– Se eu for, eu vou poder continuar sendo livre? – a pergunta dela era sincera.

– Eu prometo que não vou deixar que ninguém te trate como objeto de novo e que você nunca será inferior a ninguém. Prometo que terá a liberdade de ir e vir quando quiser e que você nunca vai precisar mudar se não quiser fazê-lo.

Seus olhos marejaram em uma emoção difícil de decifrar e o brilho da lua refletiu nas suas lágrimas não derramadas. Ela engoliu algumas vezes, talvez tentando ocultar seus sentimentos já tão expostos.

– Você quer nadar? – ela perguntou sorrindo. Ela não havia respondido, mas eu não a forcei e apenas acenei com a cabeça.

– Vem – ela se soltou do meu abraço e me puxou – a água é quentinha.

Antes que chegássemos, ela se abaixou e com cuidado tirou primeiro meus sapatos. Eu fiquei ali, parado, vendo ela fazer isso sem entender exatamente o que eu sentia ou o porquê ela fazia aquilo. Depois ela tirou os próprios sapatos e levou sua mão até a barra da minha camisa. O calor da sua mão ali fez meu corpo arrepiar e sem conseguir me conter eu a abracei com força e a beijei, e entre um beijo e outro consegui perguntar:

– O que você está fazendo?

– Você não pode nadar com roupa – ela sorriu e o frio no meu estômago aumentou.

– E você? – perguntei olhando em seus olhos. Suas bochechas coraram e seu sorriso se alargou.

– Obviamente que também não posso.

Seus olhos brilhavam de uma maneira intensa. Acariciei seu rosto com o dorso da mão e a beijei de novo. Eu já havia tido muitas mulheres nos braços, mas o brilho de Ayana fez com que todas fossem apagadas rapidamente da minha cabeça, deixando espaço apenas para ela.