Dois Lados
O sol estava se pondo, eram 5:30 da tarde. Era inverno e o ar do escritório estava forte, mesmo com o casaco e o café amigo, sentia frio. Não tinha terminado as demandas do dia, o trabalho estava uma semana atrasado graças à droga do sistema. Não era minha culpa, mas quem se importava? Dane-se. Fechei o software e enfiei o dedo no power, empilhei os papeis de amanhã, e arrumei a mesa. Tudo na bolsa, levantei para deixar os relatórios na chefia, e parei no corredor. Parava todo dia, a vista era incrível! As janelas de vidro, do teto ao chão, deixavam ver um trechinho de mar no horizonte. Senti uma mão no ombro.
- Alice, que cara esquisita é essa? - era Bárbara, trabalhava comigo, simpática, terapeuta holística nas horas vagas e concursada.
- Nada - coloquei um sorriso profissional, éramos colegas, eu acho. - Hora de ir.
- Ah, mas hoje é sexta, vamos no Shanningan's com a gente? Carolina e Marcos vão também, e o pessoal do jurídico. - resumindo, a elite moradora da zona sul ia.
- Acho que não, Barbara, estou tão cansada. - eu tinha 28 anos, não sabia que outra desculpa dar - Mas semana que vem, vou. - sempre semana que vem.
A mulher fez um bico torto, por um momento, acho que ela já tinha notado que semana que vem nunca chegava. Era um bar caro demais, que abria tarde demais para quem não podia demorar, nem gastar demais. Moro há 4 horas do trabalho, em outro município! Não tinha como acompanhar aquele ritmo, não tinha roupa nem cartão para aquilo.
Bárbara me deu três tapinhas no ombro e ajeitou a cara.
- Que pena, ne? Mas semana que vem você vai mesmo. - disse e saiu, com seus saltos finos, vermelhos.
- Claro...
Voltei pra mesa e peguei a bolsa, não havia para quem dar tchau, não se fazia isso na empresa: Interagir. Na porta do RH eu parei e enfiei a cabeça lá dentro, Fabiano já tinha ido embora, poxa... ele sim era meu amigo, mas ninguém sabia. Ele e a Cat, de T.I. eram minha inspiração para sair da cama e atravessar a cidade, todo dia, eles e os boletos.
Desci os 12 andares para o saguão majestoso de mármore cor de rosa e porcelanato. Já estava acostumada, mas aquele lugar, as pessoas e todo o contexto me faziam sentir tão pequena e ridícula. Já na rua, eu não tinha qualquer animação para andar os dois quarteirões até o metrô. Suspirei, eu não queria ir pra casa. Mas que merda de vida.
Atravessei a rua e caminhei em direção a praia. As pessoas passeavam com seus cãezinhos de casaco; os bares, animados, derramavam música na calçada e as luzes, mornas, convidavam todos a ficar, sentar, se divertir. Mas me causavam tristeza.
Era inverno e estava frio, mas o mar era sempre incrível. O céu laranja completava a visão. Sentei em um dos bancos à beira-mar, Copacabana nem era minha praia favorita, mas isso não importava muito. Bárbara estaria fazendo piadinhas agora? Ou comentários condescendentes sobre eu morar longe, sobre nunca almoçar com eles, sobre repetir roupas, sobre ser diferente, "tadinha". Suspirei de novo, me encolhi sob o casaco e peguei o celular, tinha uma lembrança do Google... Amy... Amy e eu.
Now that she's back in the atmosphere
Agora que ela esta de volta a atmosfera
With drops of Jupiter in her hair
Com gotas de Júpiter em seu cabelo
She acts like summer and walks like rain
Ela age como o verão e anda como a chuva
Reminds me that there's a time to change
Me lembra que há tempo para mudar
Since the return of her stay on the Moon
Desde o retorno da temporada dela na Lua
She listens like spring and she talks like June
Ela ouve como a primavera e conversa como junho
Fizemos faculdade de Direito juntas, nos apaixonamos. Amy era incrível, uma loira alta, esguia, com a skin care e a rotina capilar em dia. Sua auto estima era invejável, esbanjava confiança e simpatia, os professores a adoravam, bem, todo mundo a adorava. Era da atlética e jogava handball nas competições, eu joguei também, mas só por um ano, eu não tinha tempo, morava longe, minha mãe precisava de mim e eu trabalhava.
Fomos juntas em algumas viagens da faculdade, mas Amy foi à todas, e trazia tudo o que podia pra mim: fotos, souvenirs, docinhos e sorrisos, muitos. Eu não sei o que ela podia ter visto em mim, mas não era soberba, apesar de poder, com toda certeza, dizia que eu era boa e gentil, que eu era a melhor amiga que já teve. A família dela tinha dinheiro e morava perto, tinha tempo de sobra e suas metas definidas: queria ser grande! Não gostava do pai.
Ficamos juntas até o último ano, quando consegui aquela indicação, ficamos tão felizes! Tínhamos planos, bobos, um apartamento, viajar e casar? Suspirei de novo, acho que esse último era um plano só meu. Rolei a tela, depois disso foi seu aniversário de 20 anos. A família dela deu uma festa e tanto, mas a melhor celebração nós fizemos. Sorri, lembrando. Passamos a noite em um Airbnb aqui perto, com muitos petiscos, filmes e romance, ele ficava no mesmo prédio que pretendemos ver um apê. Na foto eu estava abraçada à Amy, seu cabelo, em uma trança longa, caía entre nós. Ela sorria numa careta com seu pijama de alcinha, sua mão sobre as minhas, a outra segurando o celular para a selfie. Eu tinha os braços em volta de sua cintura, sentadas na cama. E o meu sorriso era tão feliz, confiante com ela, aquele dia tinha gosto de futuro.
But tell me, did you sail across the Sun?
Mas me diga, você velejou através do Sol?
Did you make it to the Milky Way
Você chegou até a Via Láctea
To see the lights all faded
Para ver as luzes todas apagadas
And that heaven is overrated?
E que o paraíso está superestimado?
Tell me, did you fall for a shooting star?
Me diga, você se apaixonou por uma estrela cadente?
One without a permanent scar?
Uma sem uma cicatriz permanente?
And did you miss me
E você sentiu minha falta
While you were looking for yourself out there?
Enquanto estava buscando por si mesma lá fora?
Um mês depois Amy também conseguiu uma indicação, nos EUA. Eu fiquei feliz por ela e demoramos a entender. O resto do último semestre se dividiu em pequenas viagens e muitos preparativos, foi difícil ficarmos juntas. Rolei a galeria do celular para mais daquela época. Quando nos despedimos, ela me pediu para esperar, seria só um ano, afinal, mas eu sabia que não. O mundo jamais devolveria a incrível e linda Amy para mim. Eu concordei e ela se foi. Nos falamos, no início, todos os dias, depois uma vez por semana, por mês e eu não pressionei. Como podia?
Amy fora chamada por um escritório famoso, enorme, era uma experiência, mas ela se destacou, eu não esperava menos. Trabalhava cada vez mais, acumulava projetos, comparecia a coqueteis, seu inglês era fluente e seu sorriso luminoso nas fotos. Foi contratada em Nova York. Ela não tinha tempo a perder e eu acompanhei de longe. Cada foto, cada vídeo, na Times Square, em resorts de inverno, na neve, nos diversos congressos, ela brilhava. Disse que não daria pra voltar em 6 meses, mas prometeu no Natal, era só animação e saudades. Em dezembro daquele ano ela foi convidada por uma empresa de peso, um conglomerado, como representante. Ela não pode vir, claro que não. Havia tristeza na sua voz, mas também muita certeza. Ela perguntou de novo se eu esperaria, eu concordei.
A tela do celular brilhava no escuro.
Now that she's back from that soul vacation
Agora que ela está de volta daquelas férias da alma
Tracing her way through the constellation
Traçando o caminho dela através da constelação
She checks out Mozart while she does Tae-Bo
Ela escuta Mozart enquanto faz Tae-bo
Reminds me that there's room to grow
Me lembra que há espaço para crescer
Now that she's back in the atmosphere
Agora que ela está de volta à atmosfera
I'm afraid that she might think of me as
Estou com medo que ela possa me ver como uma
Plain old Jane told a story about a man
Garota desinteressante que contou uma história sobre um homem
Who was too afraid to fly so he never did land
Que tinha tanto medo de voar que ele nunca aterrissou
Continuei acompanhando, o Coliseu, Santorini, Place de la Concorde, Maldivas... os encontros de trabalho, seu dia a dia, o happy hour, tanta gente bonita e elegante. Todos pareciam tão importantes. Nos falamos muito pouco no segundo ano, mas ela sempre tinha o que dizer, de suas viagens, de suas conquistas, de seus planos, de como tudo era incrível e eu dizia a ela que estava se saindo muito bem. Não que ela precisasse ouvir. Ela perguntava de mim, também, mas eu não tinha o que dizer além da minha vida pequena, meus problemas com a família, meus irmãos barulhentos, minha tia doente, a correria de todo dia, das madrugadas no ônibus, a falta de dinheiro e o celular novo que eu queria, mas não podia comprar. Nos fins de semana ela visitava a Disney ou o Canadá e eu dividia uma pizza com minha mãe, irmãos e os outros 4 integrantes da família. Eu não podia contar nada disso a ela, então dizia que estava bem e perguntava mais dela..
Daí ela comprou um apartamento, estiloso e elegante, com janelas de parede toda, conceito aberto e mobiliado. Não se parecia em nada com o que queríamos e seu enorme sofá branco ostentava isso no meio da sala, Eu a vi modificá-lo e deixá-lo com a sua cara. O nosso apartamento era só dela. No Natal daquele ano, ela novamente não veio e fazia 3 meses que não nos falávamos. Ela ligou e eu ouvi saudades, sucesso e uma pontinha de solidão. A certeza ainda estava lá, como a minha também havia estado desde o princípio, que o mundo nunca a devolveria para mim. Ela não me perguntou de novo se eu esperaria, mas não dissemos adeus.
Olhei para sua foto em algum castelo de Dublin, os cabelos voavam no rosto e ela olhava para o horizonte azul, o rosto misterioso. O casaco felpudo lhe escondia o corpo, mas a silhueta era decorada por um grosso cachecol lavanda, que chicoteava. Meu cachecol lavanda, que ela tinha levado. Na tela ela nem parecia real, muito menos alguém que eu conheci um dia. A loira era feliz, suficiente, plena e não precisava de nada, muito menos de alguém como eu. Fechei o celular. Amy era quatro anos mais nova... Eu tinha quase 30 e não era nada. Meu trabalho era bom, se comparado a tantos outros, eu tinha sido contratada também, pagava as contas com dificuldade, mas pagava. Morava no mesmo lugar, fazia os mesmos caminhos. Minha ex tinha ido embora há 4 anos e não voltara mais, a última vez que nos falamos fora no ano passado, no meu aniversário, ela tinha ligado, por 3 minutos.
But tell me, did the wind sweep you off your feet?
Mas me diga, o vento te conquistou?
Did you finally get the chance to dance along the light of day
Você finalmente teve a chance de dançar junto à luz do dia
And head back to the Milky Way?
E voltar para a Via Láctea?
And tell me, did Venus blow your mind?
E me diga, Vênus te surpreendeu?
Was it everything you wanted to find?
Foi tudo o que você quis encontrar?
And did you miss me
E você sentiu minha falta
While you were looking for yourself out there?
Enquanto você estava buscando por si mesma lá fora?
Enfiei o aparelho na bolsa e olhei o mar, os holofotes clareavam as ondas e os doidos que se aventuravam na água fria. Como eu gostaria de morar aqui. Estava atrasada, minha casa ficava há muitos quilômetros e eu não tinha dinheiro para um uber. Se não corresse, perderia o último ônibus. Levantei e comecei a andar, o vento empurrava meus cachos, como na foto de Amy, mas eu não era ela, eu era uma zé ninguém. Meu telefone tocou.
- Alice? Onde você esta, filha? Vai chegar tarde, hoje? - era minha mãe, ela sempre ligava, preocupada com o horário.
- Um pouco, sim, mas vou tomar cuidado.
- Liga quando estiver chegando que o Bruno te pega no ponto. - Bruno era um amigo, morava próximo e era uma companhia maravilhosa.
- Está bem - sorri - que tal um frango frito quando eu chegar? - Bruno levaria a cerveja, ele sempre tinha na geladeira.
- Se não estiver fechado, né? Voce fica andando na rua tarde da noite. - ela já estava irritada e eu ouvia meu irmão mais novo fazer balbúrdia ao fundo, pedindo por refrigerante.
- Eu sei, eu sei, vou correr e levo a Coca. Beijo, mãe. - desliguei.
***
Eram 5:30 da tarde e o sol ainda estava firme no céu. Era verão em Nova York e as ruas fervilhavam de gente. O distinto prédio se erguia na Broadway, iluminado, mas o décimo segundo andar estava apagado. Era aniversário da moradora, 24 anos, mas ela estava sozinha, há 4 anos sozinha.
Can you imagine, no love, pride, deep fried chicken
Você consegue imaginar nenhum amor, orgulho, frango frito
Your best friend always stickin' up for you
Seu melhor amigo sempre defendendo você
(Even when I know you're wrong)
(Mesmo quando eu sei que você está errada)
Can you imagine no first dance
Você pode imaginar nenhuma primeira dança
Freeze dried romance
Um romance congelado
Five-hour phone conversation
Uma conversa de 5 horas no telefone
The best soy latte that you ever had, and me?
O melhor café com leite de soja que você já tomou, e eu?
Amy saíra cedo do trabalho, day off, mas fora trabalhar mesmo assim e agora, abraçava os joelhos, em cima da cama, com o cobertor sobre a cabeça. Nem balões ou bolo, visitas e abraços, não os que importavam. Todo ano era convidada por marcas e escritórios, lhe enviavam flores e presentes, ganhava cupons e jantares de pessoas que não conhecia e que não se importavam com ela. Seu chefe a queria em seu quarto, todos os três e sua vida era difícil por isso, o assédio era nojento.
Desde de que chegara, se sentia impotente e sozinha, uma farsa, fizera mais que o seu melhor, fizera tudo e sempre queriam mais. Estava vazia e farta. Voltar deixara de ser uma opção quando seus pais se separaram, 6 meses depois da viagem. Seu pai tinha uma nova família e nunca mais quis saber dela. Sua mãe lhe enviou uma soma todo mês, no primeiro ano, depois pediu desculpas e lhe desejou felicidades, nunca mais entrou em contato e não atendia seus telefonemas. E Alice... havia abandonado a namorada. A correria, a falta de tempo e o desespero de dar certo a sufocaram e, no seu egoísmo, pediu-lhe que lhe esperasse. Mas depois de tudo o que tivera que fazer... não podia continuar aquele namoro, morria de medo que a morena descobrisse seus pecados, traições e mentiras, mas também não podia voltar atrás. Ela sempre lhe dava ânimo, forças, a alegria de Alice, seu otimismo e resiliência eram invejáveis, nada parecia vencê-la. Sua namorada era um leão e ela era uma cobra.
A loira estava agarrada ao celular e as lágrimas desciam, seu apartamento era enorme e vazio, oco, como seu interior. Muito diferente daquele que tinha, ainda, em sua cabeça. Não fizera amizades ali, as pessoas não gostavam dela, não de verdade, aquela não era Amy, era uma mulher arrogante de sucesso. Amy estava assustada, era carente e precisava de apoio, gostava de encontros românticos, pantufas e minimalismo, era insegura e só queria que alguém tivesse orgulho dela. Como naquela foto que olhava, do seu aniversário, em cima da cama, Alice tinha os cachos chocolate soltos, alguns na frente dos olhos amendoados, que brilhavam... para ela; contornava sua cintura com os braços e o sorriso em seu rosto transbordava admiração e orgulho. Alice fora a primeira pessoa que oferecera isso a Amy.
O aperto no peito parecia insuportável, mas não ligaria para a namorada. Tinha acompanhado a vida dela, no início Alice parecia triste e sozinha, mas foi por pouco tempo, a morena tinha muitos amigos e uma família incrível, sempre cercada de afeto e amor. Não era certo fazê-la se isolar para esperar um ser humano vazio, que sequer sabia se conseguiria encará-la de novo. Percebeu isso quando viu a proximidade do tal Bruno, ele gostava de Alice, via nos olhos dele. Eles eram próximos, amigos e ela parecia feliz com ele. Feliz. Amy não tinha o direito de mexer com isso.
Queria ter no peito metade da coragem de Alice, de sua compaixão e gentileza, da sua força e talento. A outra mulher lhe ensinara a amar e não soube retribuir nem para si mesma. Fechou os olhos com força e soluçou alto.
Alice sabia o quanto sentia sua falta? Sabia que vivia das lembranças que tinham juntas e de como ela fora importante? Ela devia saber o quão rica era. Pensou, sozinha na escuridão, enquanto mais um entregador deixava algo na sua porta que algum estranho lhe enviou por mala direta.
But tell me, did the wind sweep you off your feet?
Did you finally get the chance to dance along the light of day
And head back toward the Milky Way?
Tell me, did you sail across the Sun?
Did you make it to the Milky Way to see the lights all faded
And that heaven is overrated?
Tell me, did you fall for a shooting star?
One without a permanent scar?
And did you miss me while you were looking for yourself?
(Drops of Jupiter - Train)
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