Do Lado De Cá
Há muito sentia-me sozinha. Um vazio na alma munido de uma tristeza sustentavam meu ser. Não dividia a angústia com ninguém e, ainda que quisesse, não teria forças para tal. Esse sentimento — sufocante — rondava-me dia e noite e se espalhava pelo corpo como a areia da praia, estando reclusa ou em meio à multidão, mesmo em festas ou reuniões familiares. O fato era que, embora acompanhada, estava só.
Na época, morava numa casa acolhedora com meus pais e uma irmã pequena. A garagem acomodava bem os três carros, os quartos e a sala sempre equipados com eletrônicos de última geração. A despensa oferecia do bom e do melhor. Desde que me recordo, roupas de marca, um ótimo plano de saúde, escola particular e atividades extras nunca nos faltaram. O dinheiro, no entanto, não supria mais minhas necessidades. Presa em algum lugar dentro de mim, minha alma se apagava lentamente feito uma vela sem graça morrendo à beira da mesa. Eu pressentia que algo não se encaixava, mas não sabia identificar o motivo da corrosão à qual me esvaía e, assim, mantinha-me distante e infeliz, apesar da vida que levava.
Em certa ocasião, enquanto descansava no quarto, meu coração foi aos saltos quando vozes familiares se aconchegaram em meus ouvidos. O murmúrio provocou uma mistura de saudade e apreensão e fez meu estômago queimar de nervoso. Explicação àquele sentimento? Desconhecia.
Num ímpeto de curiosidade, abandonei os afazeres e ganhei o corredor da casa. O local estava diferente, talvez o assoalho fosse novo ou um quadro diferente decorasse a parede. Não distingui a mudança, mas estava lá, adormecida, apenas esperando por atenção. Alcançando a porta entreaberta da cozinha, reconheci as vozes de imediato. Pelo calor do momento, meus pés não se intimidaram com o frio do piso, afinal, cedi a atenção à lamúria da minha mãe, Rosana.
Cabisbaixa, refugiava os olhos debaixo do cabelo liso, enquanto uma mão apoiava parte do rosto. Sentada em uma cadeira, percorria a vista numa blusa de lã infantil. Acariciava-a com delicadeza como se buscasse no objeto um conforto ao seu padecimento. Estranhei o vestuário e tampouco lembrei de quem o pudesse vestir. Então, o ar chegou a faltar ao pensar na minha irmã. Fazia um tempo não a ver por perto.
No entanto, outra queixa arrancou-me de um possível ataque de nervos. Fiquei confusa ao notar uma adolescente, na faixa dos quinze anos, aninhando os dedos nas mechas escuras de minha mãe. Não reconheci a face alongada que por sinal muito se assemelhava às minhas tias quando jovens. Além de consolá-la, também sustentava um semblante melancólico, de quem volta de um enterro. Um arrepio escorregou pela coluna e enchi os pulmões até não mais caber um gole de ar.
— E qual o motivo da tristeza, posso saber? — Colando os punhos à cintura, atropelei o medo ao enfrentá-las. A pose quase sempre dava certo, embora uma culpa inexplicável me rondasse feito um cão de guarda prestes a morder o invasor. — O que fiz desta vez?
Confesso que em várias situações — preferia que fossem poucas, mas não quero me enganar — as palavras saíam pesadas e cheias de rancor. E, sem que reparasse, desferia golpes cruéis a quem estivesse perto.
Não obtendo resposta, o ar saiu pesado pela boca e a língua amargou. Julguei ser esse o gosto do desprezo. Então, as encarei de queixo erguido, pois o silêncio enlutava meus pensamentos. Havia algo de errado e eu precisava descobrir. No entanto, a única coisa que consegui foi captar olhares cuja a felicidade deixara de visitar a um bom tempo. Eu queria ajudar minha mãe de alguma forma, apesar de ser ignorada. Afinal, sempre me ensinaram que família é para todo o tipo de momento.
Contudo, ao tentar abraçá-la não ganhei retorno. Quem sabe o desgosto restante de uma última desavença — embora não lembrasse — a impedisse de se aproximar. Àquele cenário, porém, crescia a certeza de que algo de mal eu arquitetara. Apertei as têmporas. Por ora, bastava encontrar a origem do impasse, pois a frieza fisgava-me a alma como o punhal o corpo. Desejando não ser Celina o centro da confusão, fechei os olhos e inspirei. Manter o equilíbrio era crucial.
— Por que, Catarina? — A voz trêmula de Rosana veio fraca entre os soluços. — Por quê?
O sangue congelou ao ouvir tal nome. Não sofria de amnésia, mas curiosamente levei alguns segundos para entender que se referia a mim. Ajoelhei ao lado.
— Estou aqui, mãe — com um nó instalado no meio da garganta e os batimentos galopando a mil, a fala saiu arranhada. — Calma, não chore! Diga o que fiz? Por que está tão transtornada?
Sem dirigir uma única palavra, ela avançou os olhos como se eu fosse vidro. Senti as bochechas esquentarem e o nervosismo começou a entupir as veias. O desespero das mulheres tomava meu corpo, tanto pelo abismo revelado entre nós, quanto pela incompreensão do contexto. Era como se o vento frio do inverno invadisse seus corações com rajadas violentas que acabavam por devastar meu ser.
Enchi os pulmões, buscando por reflexão, mas nada me ocorreu. Então, abandonando-as à própria sorte, alcancei a sala de estar e provei certo conforto ao encontrar Inácio sentado em sua poltrona. A expressão de desapontamento, contudo, causou-me um impacto ainda maior. Nutrindo olhos pequenos e vermelhos encarava o nada. Segui a linha de visão e me deparei com o branco da parede. Feito um trator em primeira me aproximei. Não queria assustá-lo, já que parecia compartilhar o mesmo sofrimento da cozinha.
— Oi pai — contendo qualquer entusiasmo, despejei a voz mais mansa possível ao perceber notar minha presença. — Você está bem?
Para a minha surpresa, os olhares se encontraram e, por instantes, perseveraram num fio invisível. Sinalizei um sorriso, aliviada por retribuir a acolhida. Entretanto, a linha entre a paz e o caos se rompeu, arrancando-me da conexão com um baque no peito. Foram menos de três segundos.
— O que veio fazer aqui? — com o rompante dominando o cômodo, cravou as unhas na poltrona. — Vá embora! — Cresceu nos decibéis. — Vá embora!
As palavras ecoaram como um mantra de yoga e eu não tive outra reação a não ser recuar. Preferia levar um soco no estômago ao vê-lo lacrar as orelhas com as mãos e os olhos quase sumindo de tão apertados.
— Vim ver como estão — com as têmporas latejando, avancei para perto por medo de não me ouvir. — E encontrei tristeza e amargura. Por que minha mãe e aquela moça se recusam a falar comigo?
— Aquela moça? — Apesar da pergunta tremer nos lábios e de manter a posição irritante das mãos, ele sustentou uma expressão admirada. Logo, o azedume de sempre se fez presente. — Aquela moça?
Os dedos voltaram com o agarramento na poltrona. Então, meu coração deu uma parada quando me analisou da cabeça aos pés e estacionou no chão. A confiança bateu-me à porta. Não me queria por perto, mas me escutava.
— Quem é ela? — Ajoelhada ao lado, adiantei o curso, torcendo para que não desistisse de mim. — Parece em muito com minhas tias!
— É claro que não a reconheceu — a fala se comprimiu entre os dentes e o canto da boca se esticou num lado, um sorriso forçado que nasceu e morreu em segundos. — É sua irmã, Catarina.
— Celina? — Enruguei a cara com o salto de desenvolvimento da menina, porém, inspirei aliviada. — Há quanto tempo não a vejo?
Não imaginava, no entanto, que esse seria o ápice da nossa conversa. Havia lido, uma vez, que o medo se veste de fúria como válvula de escape, uma defesa natural do ser humano em situação às quais não é capaz de lidar. Constatei a veracidade do fato ao ver o rosto a frente se transformar. Exalei um ar esgotado com o progresso barrado em plena luz do dia. Mal me recobrava do susto em saber que a loira da cozinha era minha irmã e a insistência para partir ganhou terreno novamente.
— Vá embora — abanou as mãos para um cão de rua numa acidez que corroeu meu coração. — Seu lugar não é mais aqui!
Foi difícil de engolir o choro, mas o orgulho manteve as bochechas secas. O tom acalorado ardeu em meus tímpanos, porém bem menos que as palavras daquele homem. Minha respiração travou a ponto de pensar que iria desmaiar.
"Minha casa não era minha casa?" — sentindo uma pressão na testa, tonteei para trás. — Que absurdo ele estava dizendo?"
Mesmo com o mal-estar, tomei coragem e o enfrentei. Entretanto, a vista avermelhada tentou se esquivar de mim. Num zigue-zague confuso, quicava de ponto em ponto a cada movimento meu.
— E para onde devo ir, se este não é mais meu lugar? — Lancei os punhos à cintura, decidida a entrar no jogo maluco. Farta de tanta indiferença, igualei o tom ao dele. — Pode dizer?
Então, uma força envolveu-me a garganta, uma coleira que sufocou os sentidos ao me puxar. O ar passou com dificuldade, mas sussurrei:
— Para onde... devo ir?
Meu pai, contudo, já me ignorava e passei assimilar apenas pânico, medo e dor. Retorcendo-se na poltrona, abraçava o próprio corpo como se protegesse de algo prestes a atacá-lo. Nunca o vira daquele jeito, indefeso feito uma criancinha perdida na multidão.
Pronta para arremessar uma voadora, olhei ao redor. Relaxei os músculos, no entanto, ao ver que estávamos a sós. Logo, duas hipóteses singulares cercaram-me: ou ele estava demente ou o perigo era eu.
Com as mãos amarradas às costas, reparei que o serpentear do corpo diminuía à medida em que me afastava. De soslaio, o espiei uma última vez. Inácio, um homem solitário em sua poltrona, envolto por uma apatia indescritível. Suspirei a derrota e, cabisbaixa, retornei de onde não deveria ter saído.
***
Trancada em meu mundo particular, percebi uma agitação invadir a casa. Pela fresta da porta, vi sombras passarem pelo corredor. Em seguida, batidas de portas de carro atiçaram-me os sentidos. Temendo ser tarde demais, corri à garagem. Meus ombros caíram, ao ver minha família saindo sem avisar. Pareciam clandestinos fugindo de um algoz.
— Esperem — o protesto veio a todo vapor, mas o barco estava partindo e sem mim. — Eu vou junto. Queiram ou não!
Voei em direção ao automóvel e até estranhei a velocidade. Sempre chegava em último nas corridas, mas ali não tinha tempo para raciocinar.
Sentado no banco do passageiro, meu pai não abriu a boca por todo o trajeto. Considerei que a tensão era por conta do conflito na sala. A mãe sustentava, contudo, uma tranquilidade que me confortou a alma. Sem choro ou soluços, se concentrava na direção. Na pressa por alcançá-los, não reparei a ausência de Celina. Dei de ombros, na certa saíra com alguma amiga. Adolescentes fazem isso e eu achei que poderia me acostumar.
O destino final era perto e, em poucas quadras, estacionamos o carro. Fiquei feliz por reconhecer a casa que visitaríamos. Minha memória estava se recuperando e o corpo respondeu à saudade gostosa da infância acelerando o coração. A sensação de bem-estar, entretanto, se esvaiu logo que pisamos na sala. Cecília mal me cumprimentou. Ao cogitar que os anos pudessem corroborar com a falta de calor humano — afinal, fazia anos que não nos víamos — enganei-me outra vez.
A mim, sobrou o puff gigante, ao qual me atirei assim que o vi. Minha amiga desaparecera para dentro e eu dediquei o tempo a ouvir a conversa dos adultos. Revirei os olhos, quando Rosana reiniciou com a lamúria. Voltara a chorar e, agora, abraçada à dona da casa. Inácio, emperrado num canto do cômodo, seguia a me observar de soslaio. Vez ou outra resmungava algo que não conseguia decifrar. Logo, provei as veias do pescoço pulsarem com a cena e eu me senti mal. Um enjoo somado à vontade de sumir dali dobravam-me ao meio. O ambiente estava pesado como se um espírito circundasse o local, açoitando nossos pensamentos.
Inutilmente pedi licença para usar o banheiro e, trancada no lugar mais frio da casa, desabei. Uma tristeza intragável invadiu meu ser, sangrando o corpo de dentro para fora. Os pulmões ardiam a cada respirada, o estômago — uma massa dura — dava cambalhotas na barriga e minhas pálpebras pesavam quilos. Então, o medo me cobriu por inteira, arrebentando qualquer brecha que a felicidade ousasse depositar em mim.
Contudo, numa introspecção que há muito não dispunha, num arroubo d'alma, vi meus dedos se entrelaçarem e comecei a orar. Há tempos agarrava-me apenas na rotina costumeira, mas aquela situação — de incerteza e desprezo — clamou por um resgate. Ao terminar com as súplicas, uma leveza afagou o coração e acabei por adormecer enrolada em mim mesma.
Não sei ao certo quanto tempo se passou e, apesar de uma ponta de desgosto insistir em me espetar a mente, despertei mais calma. O piso gelado de antes aconchegava meu corpo inerte ao se converter em uma cama que não era minha. Sondei ao redor, desconfiada por acordar num quarto desconhecido, em que tudo tinha o mesmo tom. O branco triunfava nas paredes, cortinas, lençóis, móveis e uma penumbra agradável cobria o local. Na certa, a tarde se despedia de outro dia fatídico.
Ainda assim, precisava levantar e esclarecer sobre meu paradeiro, como cheguei lá e o que era o lugar. Primeiro pensei em um hotel, talvez um hospital. Quando o juízo se assentou com a imagem de um hospício, mordi os dentes e amassei o lençol.
"Que diabos era aquilo?" — Soltei todo o ar do pulmão, temendo desmaiar de novo. — "Calma, Catarina, calma."
Assim que sentei —, devagar, pois parecia despencar de uma montanha-russa com minha cabeça pesando para baixo —, uma mulher morena surgiu. Dona de um olhar sereno, reparei certa comoção visitar a fisionomia ao me ver. O cabelo encaracolado acariciava os ombros e estava preso por uma tiara metálica. Deduzindo ser médica, a julgar pela roupa, devolvi um sorriso meia lua e escondi mãos apertadas nas costas. Apesar de apreensiva, queria demonstrar tranquilidade.
— Chamo-me Eleonora. Está se sentindo melhor, Catarina? — Ela me auscultava e eu respondi um sim em silêncio. — Acredito que logo você se recuperará.
Num impulso, toda a encenação interpretada se dissipou. Enruguei a testa descrente de que a conhecia. Além de saber meu nome, vestia as palavras com cordialidade. A frase, no entanto, me embalou como uma canção de ninar. Era tudo o que desejava ouvir, não importava aonde estivesse.
— Um pouco tonta — com um conforto me envolvendo o espírito, resolvi abraçar a sinceridade. Mesmo por que em breve iria embora. — Que horas vou ser liberada?
— Ainda é cedo para isso, querida — murmurou meio sem graça e estendeu a mão para meus pés tocarem o chão aquecido. — Talvez necessite de um tempinho extra aqui.
"Tempinho extra? Que história é essa?" — Espremi a vista pelos ombros dela com o coração latejando uma vontade de escapar pela porta. Ao invés disso, cerrei a boca e concordei.
Meus pensamentos, contudo, brincavam comigo numa espécie de tiro ao alvo, acertando várias boladas de perguntas. Precisava devolvê-las a alguém, antes que explodisse.
— O que quer saber? — Seus olhos se engatilharam nos meus e eu mirei os pés. — Estou aqui para isso.
Soltei um suspiro tremido, não pude evitar. Meu mundo virava de ponta-cabeça e eu não conseguia alinhá-lo. Ocorreu-me, assim, que talvez ela lesse mentes. Àquela altura, o improvável poderia caminhar ao lado da sensatez com facilidade. Torci a boca para cima e, reunindo coragem, a encarei.
— Se minha família me ignora, quem me trouxe até aqui? — Cruzei os braços, duvidando ouvir a verdade. — E por que não lembro? E como sabe meu nome? E por que me trata bem?
Eleonora me envolveu num abraço fraternal parecia enxergar a essência da minha alma. Engoli apertado. Então, segurou-me pelos ombros enquanto me avaliava. Os olhos brilharam como se prestes a revelar um segredo. Eu não soube explicar o porquê, mas embacei a vista a ponto de transbordá-la.
— É por que eu já desencarnei, Catarina — disse com a voz suave ao que seria a resposta mais direta e simples possível.
Eu devo ter empalidecido, por que a mulher me sentou na cadeira.
"Do que ela está falando?" — Meu coração congelou e, num gesto preguiçoso, a analisei com interesse. Talvez desse para notar meu rosto retorcido em descrença. — "Estou no hospício, definitivamente."
Um choque disputou as veias quando uma perspectiva se enfileirou com os pensamentos. Levantei de súbito e me afastei feito um cão acuado até a parede me barrar. Supondo que tudo poderia ocorrer, ri sem alegria ao cogitar que dera para falar com os mortos. Logo eu que sempre fugi desse tipo de assunto conforme morcegos fogem da luz.
Num balançar de cabeça, julguei beirar à loucura. Então, as pernas viraram geleia e escorreguei até cair no chão. Ao tentar conter as lágrimas, cobri a face com as mãos e subi até alcançar os cabelos. Agarrei-os.
A suposta médica, no entanto, ficou parada assistindo o alvoroço colidir com a realidade. Por minutos, só consegui opor-me ao inevitável até que uma luz brilhou dentro de mim. Levantei.
— Você deve estar brincando — num último protesto, estiquei os braços como se me defendesse de um monstro. — E uma brincadeira de muito mau gosto, por sinal!
Eleonora unia as sobrancelhas. Piedade era algo que queria longe. Contudo, para meu desespero, ela anuiu numa insistência ao admitir minhas nefastas suspeitas. Senti o rosto esticar de horror com o horizonte obscuro se alongando diante da vista.
— Não pode ser — a voz caiu dois pontos e acabei tropeçando em mim mesma, os olhos mareados decifrando o porvir. — Você não está morta! Não, não — repeti, forçando as palavras tornarem a verdade mais leve. — Eu posso vê-la, senti-la! Eu posso me sentir! Estamos vivas! — Parei para buscar o ar que custava entrar. Então, gritei a pleno pulmão. — Eu estou viva!
— Sim, querida — a confirmação invadiu meus ouvidos feito uma onda mansa, enquanto mãos frias tocavam meus dedos trêmulos. — Estamos, vivas. Mas não do jeito que você presume.
Pressionei as têmporas. A cabeça parecia um tambor, batucando pencas de dúvidas a todo vapor. Como era possível? Se eu respirava, sentia o corpo, pensava, tinha sentimentos, via e ouvia a tudo ao redor. Ou será que a vida desbarrancava a uma demência repentina, corroendo cada fibra do meu caráter?
Apesar de debilitada, apresentei uma fresta de melhora ao dar os primeiros passos rumo à luz. No entanto, ansiava por uma evidência sólida, algo palpável feito aquele lugar, feito eu e ela.
Então, uma pressão interna sugou minhas energias, exalando pelos poros a vontade de retornar ao lar. Era como se alguém me chamasse e a tal força atraísse meus pensamentos para lá. Eu não tinha escolha, precisava partir.
— Tudo o que disse é verdade, Catarina — Eleonora cortou a ligação ao tocar o polegar na minha testa. — Também sou igual você: sem corpo físico.
Meus olhos se engatilharam nos dela, lâminas afiadas prontas a dilacerar o alvo. Contudo, a mulher ignorou a ameaça, pois seguiu como se soubesse o que eu experimentava:
— E o que você sente em relação ao regresso é fruto do desejo de sua família terrena. Ainda não se desapegaram de ti.
— Mas ninguém me queria por perto — rebati analisando o nada, entristecida com as últimas lembranças de casa.
— Calma — a mulher soou esperançosa em um sorriso tímido. — Eles apenas não sabem lidar com a perda repentina. São leigos e estão evoluindo conforme você e eu.
Eleonora me envolveu nos braços, tal mãe com o filho enfermo e eu me servi de cada gota de amor fraternal que poderia absorver. Assim, a quietude visitou-me pela primeira vez em anos. Ela enxugou minhas lágrimas e eu desenterrei um semblante de felicidade.
Com o amparo, aliado à sinceridade e à humildade que amadureciam em mim, foi possível vislumbrar uma imagem. O borrão do início se encorpou, tornando-se mais nítido a cada segundo. A verdade, então, engrossou feito um furacão e invadiu-me o juízo, percorrendo minha essência e unindo cada pedaço de meu espírito. Admiti ter desencarnado.
Ao admirá-la, compreendi sua real função. Àquele instante, a comunicação com minha protetora correu sem que movêssemos os lábios. Num passe de mágica, as ideias iam e vinham sem bloqueio algum entre nós.
"Mas, como aconteceu?" — Engolindo o medo, quis conferir meu fim. — Quando? Onde?
As dúvidas ainda assolavam o peito, contudo, desconforto e aflição não mais se valiam de minh'alma. Eram emoções distantes, enfraquecidas, quase apagadas da memória.
Eleonora tocou-me a testa com o polegar direito — decerto avaliava-me o estado de espírito — e meus pensamentos fluíram na velocidade de um raio. Assim, se libertaram os esclarecimentos dos quais necessitava para soltar os grilhões e progredir com a jornada em liberdade.
Logo, um filme rodou dentro de mim e o quebra-cabeça se encaixou com perfeição. Eu não pude me desprender deles, pois ambos me amarraram em seus sofrimentos. Sem controlar a intensidade, ao lamentar minha ausência, prejudicavam meu ato de desencarne que se arrastou por longos anos.
— E meu pai? — Esbocei um sorriso torto, a culpa sufocando-me por atormentá-lo. — Por que me via?
— Inácio é um médium vidente, embora não saiba lidar com a própria condição — o olhar vagueou à janela e depois voltou-se cravou-se em mim. — Por isso, o único a notá-la.
Com a revelação, reorganizei-me em um grande suspiro. Meu pai — o cético da família — dotado de tais "poderes". Não fora à toa que reagira daquela forma.
Então, Eleonora tornou a tocar minha testa e a origem do pesadelo despontou, clara feito manhã em dia de sol. A imagem de um barco surgiu e portava duas crianças à deriva. Reconheci a menina sentada de frente e meu nariz entupiu com o choro retraído. Cecília, amiga de infância, agarrava a vida nas bordas da pequena embarcação.
Mesmo usando roupas de verão, engoli um ar gélido e agucei a vista ao redor. Não havia remo ou colete salva vidas e a margem tremulava a metros de nós tão solitária quanto o deserto. De quem fora a brilhante ideia, afinal? Tentei falar, mas não fui capaz de me movimentar. Estava ali como expectadora. Assim que Cecília entrou em pânico, o barco balançou. Apertei os punhos, desejando acalmá-la. Logo, senti um rápido incômodo nos pulmões com a sensação de tê-los encharcados de água. Respirar ficou difícil, cada vez menos ar, menos força, uma espécie de sufocamento silencioso apagou minha mente. O passeio em família, naquele dia de calor, cresceu e virou um inferno.
Em seguida, veio a recordação de um corpo molhado e frio se escorando no tronco de uma árvore. Apesar de ver Eleonora de relance, tremi como se estivesse vivendo a situação. À beira do lago, a menina apalpava a garganta. Dava para ver o peito trabalhar com dificuldade. Então, algo me puxou para cima e a vista esbarrou num corpo azulado jogado na grama. Algumas pessoas circundavam a criança, enquanto outras socorriam a sobrevivente.
Ainda colada à árvore, Catarina do passado também espionava o caos. Com o rosto contorcido — numa mistura que julguei ser dor e medo — esticava os braços à direção da cena. Quis confortá-la, explicar o que ocorria, porém continuei paralisada.
Quando Cecília recobrou os sentidos, ouvimos gritos desesperados ao redor do nosso corpo. Minha mãe o chacoalhava sem parar. Vi a menina agarrada ao tronco — mais pálida que papel — acenar e dizer um tímido "estou aqui". Estava a cinco passos dos pais. Franzina e encharcada, observava tudo sem compreender nada. Um nó entulhou na garganta e senti pena de mim mesma.
Afastaram Rosana da catástrofe à força e Inácio seguiu firme, estagnado ao lado da filha morta.
"É agora que vou gritar" — não contive as lágrimas ao relembrar do momento angustiante. E, assim, a "profecia" se cumpriu. Ninguém se virou para me atender e eu fiquei só.
Sempre ouvi a mãe dizer que a esperança é a última que morre, portanto, aguardei virem ao meu socorro. Apenas não imaginei que duraria décadas.
Àquele final de tarde, porém, não houve abraço, não houve atenção, nem ao menos um olhar que aquecesse meu coração. Sem parar um segundo de tremer, caminhei até o carro e segui solitária no banco de trás. Desnorteada, circulei por uma estrada traiçoeira sem perceber a lamentável condição à qual pertencia. Eu estava em casa, com meus entes queridos, embora eles não estivessem comigo.
Podemos nos desapegar das coisas materiais de modo a nos surpreender. Das pessoas que amamos e nos são caras, contudo, precisamos de força e conforto, seja de qual for o lado da vida em que nos encontramos, se de cá, se de lá.
Ao lado de Eleonora pude aprimorar conhecimentos que jamais fantasiei existirem. Num futuro, se me permitirem, poderei recepcionar meus amados familiares. Honra e benção levados no mesmo cesto. Enfim, estava em paz.
Confesso que assistir toda a cena foi, no mínimo, horrível. Se a presenciasse — antes de me fortificar — certamente a loucura se apossaria meu juízo para sempre. Ainda assim, compreendi sua necessidade, pois em muitas ocasiões, a conquista do crescimento espiritual vem pela dor.
Talvez, por isso, haja o véu do esquecimento, tanto para quem chega, quanto para quem vai. Essa conclusão levarei ao lado do coração.
***
Assim, a jornada de Catarina termina, ou melhor, começa.
Espero que tenham gostado do conto📜. Um texto reflexivo com obstáculos e insights que nós, muitas vezes, passamos longe na correria do dia a dia🏃🏽♀️. Com calma, resignação e boa vontade também podemos vencer os percalços que a vida nos impõem🏆. Estando do lado de cá ou de lá.
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