8 - A Capella
A cappella: canto sem acompanhamento.
Rick encerrou a conversa com a banda um pouco antes de se prepararem para o show da noite. Enquanto o técnico de som ajustava o volume dos microfones e instrumentos, ele puxou Alex de canto.
— Alex, agora que tá só a gente aqui, preciso te pedir um favor: quando for fazer os solos, tenta ficar ligado nas partes que você tem maior dificuldade e deixa a performance só pros trechos que você já domina. Se você tentar "performar" tudo, pode se atrapalhar, e isso prejudica um pouco o desempenho da banda.
— Caralho, mano! Desculpa aí... — Alex murmurou, inseguro.
Rick abriu um sorriso simpático e o tocou no ombro antes de voltar a falar:
— Fica sussa, ok? Isso é super normal — ele mantinha a voz tranquila, tentando passar confiança —, vou te dar uma dica: quando você for estudar, precisa fazer isso simulando a performance do palco; não fica inventando muito na hora do show se você tá inseguro com algum arranjo.
— Beleza. Vou começar a fazer isso. Eu sempre estudo muito a técnica, não tinha pensando em treinar performance, sei lá, não achava que era importante.
— É bem importante, porque quando você toca, usa tudo o que tem: suas mãos, seu corpo, sua expressão facial; é um conjunto todo que precisa estar em sincronia. Treinando essas paradas, você vai se sentir mais preparado pra ficar à vontade no palco e fazer o que quiser, beleza? Agora vai lá e arrasa, você tem muito talento, eu tenho certeza de que vai tirar de letra.
Alex pareceu bem inseguro com as instruções, mas se comprometeu a segui-las. Depois disso o show começou e Rick subiu até a mesa de som para acompanhar. Ficou bem satisfeito com a melhora que a tarde de conversas causou no desempenho da banda. Eles pareciam mais sincronizados, mais conscientes das músicas e confortáveis com o que faziam no palco. Não era o show de suas vidas, mas estava melhor que o anterior.
Não apenas Rick notou a evolução, mas o técnico de som, alguns presentes que claramente frequentavam o local por entenderem de música, e Duda. Claro que ela notou, pela forma como olhava para o palco com a boca parcialmente aberta.
Por um instante, sua mente se desligou do resto; ele se perdeu naqueles lábios rosados e sentiu um desejo súbito de invadi-los com a língua. O pensamento tórrido o surpreendeu e o afetou a ponto de fazer sua boca secar. Aturdido, ele voltou a atenção para o palco e procurou dispersar tais pensamentos. Logo, seu foco estava novamente na banda, ao menos até o fim da primeira etapa do show.
Quando a música ambiente passou a vir de uma playlist do Spotify, ele se dirigiu ao bar e pediu uma cerveja. Não havia notado o quanto o esforço em parar de desviar a atenção para Duda o havia cansado, tanto que, pela primeira vez, ele não se aproximou dela com um sorriso.
E ela percebeu, assim como notou o vazio que a falta do sorriso lhe causou. Foi como a falta daquele sol da música do Clapton.
Onde foi parar sua luz, roqueiro?
— A banda melhorou, você é mesmo muito bom! — ela comentou, tentando quebrar o clima.
— Eles são bons, não é preciso muito pra mostrar isso — a resposta soou um tanto quanto seca.
Confuso com a própria postura, ele bebeu a long neck quase de uma vez e pediu outra na sequência. A sede não passava. Reparou no olhar de Duda sobre si e se perguntou quando foi que a inspeção de uma mulher passou a deixá-lo ansioso.
Sem demagogia, ele estava acostumado a ser alvo de olhares interessados. Não que se achasse muita coisa, na verdade, era algo relacionado ao palco. Músicos costumam chamar atenção apenas por estarem em evidência, mostrando seu talento em plataformas iluminadas.
Portanto, Rick estava habituado aos elogios e às críticas, mas não sabia o que o olhar de Duda tinha que o deixava inseguro, como se ele estivesse com aqueles aventais de hospital cujo menor movimento deixam a bunda de fora.
— Tá tudo bem? — ela perguntou, notando que agora, além de não sorrir, ele tinha um vinco entre as sobrancelhas.
Tal expressão a deixou saudosa do sorriso, mas provocou algo diferente: intrigante, instigante e, de certa forma, atraente.
Como se ele todo já não fosse lindo o suficiente.
— Você tem um tempo? — Ele puxou um maço de cigarros do bolso, indicando o que pretendia fazer.
Inexplicavelmente, Duda sentiu um calor nas entranhas e olhou para Jonas, que lavava as taças na pia. Falou com ele, depois deu a volta no balcão e acompanhou Rick até a saída para o beco lateral.
Lá chegando, Rick acendeu o cigarro e deu uma profunda tragada. Não se considerava um viciado nem nada, porém a noite pedia um cigarro. E quando a cabeça estava cheia ou confusa como nesse momento, o efeito anestésico da nicotina lhe proporcionava um torpor bem-vindo, uma zonzeira agradável que substituía a ansiedade anterior.
Duda o observava enquanto ele apreciava o efeito do cigarro. Embora ela soubesse que fumar era uma merda que acabava com a saúde de qualquer um, conhecia a sensação, pois chegara a fumar por alguns meses; porém, quando precisou decidir entre comprar cigarros ou comer, não foi difícil escolher.
— Júlio falou que você vai produzir a banda. Eu fico muito feliz, principalmente por causa do Alex — ela comentou, casualmente, pensando no amigo e em como a vida dele andava complicada.
Rick ouviu o comentário e algo o incomodou. Tomou o restante da cerveja como fez com a primeira. Sentiu a languidez provocada pela rápida absorção do álcool associado aos efeitos da nicotina, contudo sua boca continuava seca.
— O que rola entre você e o Alex? — ele fez a pergunta sem pensar muito se era de sua conta.
Provavelmente não era.
Duda sentiu a cobrança velada, o questionamento escondido por trás de um véu de indiferença. Ela conhecia esse tipo de conversa, sabia que não precisava responder, no entanto, sem entender o porquê, ela o fez:
— Ele é como um irmão pra mim. Eu sou como uma irmã pra ele. Só temos um ao outro, desde sempre.
Rick sentiu o corpo relaxar por um instante, mas o incômodo voltou lentamente quando o cigarro acabou, fazendo-o acender outro.
— E quem é Enzo, o cara que te ligou hoje?
— Ninguém importante.
— Você mudou da água pro vinho quando ele ligou. Não me pareceu pouco importante.
— Isso não lhe diz respeito — ela retrucou, ajustando as ferraduras para garantir coices pelo resto da noite. Infelizmente, quando acuada, ela distribuía pancadas verbais como forma de defesa. No passado, palavras eram tudo o que lhe sobrava quando os punhos do adversário se mostravam mais fortes que os seus. E foram elas que garantiram sua sobrevivência.
Rick, por sua vez, repreendeu-se por ter cruzado uma linha proibida. O que havia com ele? Diferente de quando era moleque, hoje ele era um cara tranquilo, não se envolvia com os fantasmas dos outros, pois tinha os seus próprios para gerenciar.
Constrangido pelo momento, ele a encarou, e sentiu algo se mover em seu peito. Ela parecia um gato entocado, pronto a atacar ou a fugir.
O que havia acontecido no passado dela para torná-la tão arredia?
Duda sustentou o olhar, e algo no jeito como ele a encarava deixou-a eletrizada. Receosa, ela deu a volta nele e entrou no bar como quem quer fugir.
Não podia mais ficar ali, tão perto dele.
Que fascínio é esse? Acorda, sua louca! Só pode ser a bruxaria do feiticeiro me atraindo pra uma armadilha.
Quando ela cruzou a porta, Rick jogou o cigarro no meio fio e entrou atrás dela, mas foi direto para a mesa de som para a segunda entrada da banda.
O objetivo de fumar para relaxar foi um fracasso.
No palco, a banda se preparava, entretanto Alex não apareceu. Passaram-se dez minutos do horário para o reinício do show e nada do rapaz. Rick percebeu o olhar preocupado de todos e começou a se preocupar também. Foi ao palco e conversou com os demais integrantes, mas ninguém sabia onde o guitarrista havia se metido.
Tenso, ele foi procurá-lo nos banheiros, cozinha, beco, em cada canto do bar, e nada de encontrá-lo. Sem alternativa, a banda resolveu retomar o show, e ele se viu na obrigação de ajudar o pessoal com quem acabara de se comprometer. Sem aviso, subiu ao palco e pegou a guitarra que Alex deixara para trás.
O show recomeçou e Rick vestiu a guitarra como uma segunda roupa. Puxou o elástico dos cabelos e soltou os fios, que lhe caíram sobre o rosto e o pescoço de modo displicente, ocultando parcialmente seus traços.
Começou a tocar usando a percepção musical para encaixar os próprios arranjos nas canções, reproduzindo riffs diferenciados de guitarra. Mesmo sem ter ensaiado, a qualidade e a pressão do seu som, bem como sua performance, causaram um frenesi no público.
Não apenas no público. Duda se esqueceu completamente de Alex quando viu as madeixas do produtor cobrindo-lhe o rosto e ondulando levemente até os ombros. Quando ele acionou os pedais e fez a guitarra gemer em frequências distorcidas, ela quase gemeu junto.
A imagem daquele homem no palco aqueceu seu corpo, e o calor se concentrou entre suas pernas, lembrando-a do comentário infeliz sobre molhar a calcinha.
Não que Duda fosse inocente nesse assunto. Aos 25 anos, já não era virgem e sabia o que era sentir desejo. No entanto, nunca havia experimentado algo parecido com aquilo: uma vontade insana de tocar aqueles cabelos espessos, de deslizar as mãos pelos músculos tatuados daqueles braços; uma urgência avassaladora de ser preenchida com tudo o que ele pudesse oferecer. O pensamento a assustava e afligia ao mesmo tempo. Ela não sabia como lidar com isso — não naquele momento, talvez nunca.
Entrega. Esse tipo de coisa envolvia entrega, algo que ela nunca conseguiria... nem saberia como começar. Era como uma porta por onde ela não poderia passar por não conhecer o caminho de volta. Era um sonho distante, uma fuga, um devaneio.
Aturdida, decidiu se afastar. Ela não podia mais ficar ali, contemplando as portas incandescentes do paraíso que Rick oferecia. Precisava encontrar seu amigo com o balde de lixo que ele fatalmente despejaria sobre ela.
Ela não sabia lidar com o desejo, mas era craque em lidar com o lixo.
Ignorando as queixas de Jonas, ela pegou suas coisas e deixou o bar. Sabia exatamente aonde ir, onde procurar, então caminhou na noite garoenta e fria pela mudança brusca de temperatura, tão comum nas noites de outono da capital paulista. Ela avançou pelas vielas escuras sentido a escuridão cobrir seu peito.
Medo. Sentia medo pelo amigo, pelo que poderia encontrar. Ela trocou o medo do desejo por outro tipo de temor, pois sua vida se resumia a isso.
Enfim, encontrou Alex numa praça, sentado numa roda de fumadores de crack. Ele mesmo não estava fumando, porém as narinas esbranquiçadas denunciavam que ele havia cheirado pó, provavelmente ainda no bar.
Sem pensar, ela se jogou em cima dele, irada, distribuindo tapas, descontando toda a frustração das últimas horas em cima dele.
— Viciado do cacete! Quando isso vai parar?
— Porra, Duda... para! Caralho!
— Por quê? Por que você tem que ser tão filho da puta? — Ela sentia as lágrimas ardendo-lhe os olhos como vinagre. — A banda tava redonda! Por que você tem que fazer isso? De novo? Que merda, Alex!
As lágrimas começavam a descer por seu rosto. A angústia só crescia e, do nada, pensou em Rick no palco, os cabelos no rosto, as unhas pintadas de preto, o som ardente e pulsante pelo modo como ele tocava...
Então a angústia se transformou em raiva.
Raiva pelo desejo frustrado de ser só uma garota normal, apreciando um cara lindo num palco, curtindo um som sem bagagem, sem ranço, sem a porra de um amigo drogado.
— O que você tá fazendo aqui? — Ele se ergueu, afoito; seu coração palpitava. Buscou se lembrar do que deveria fazer a seguir, olhando em volta, confuso.
Eu preciso subir ao palco, mas cadê a porra da guitarra?
Então olhou para o rosto de Duda, molhado pelas lágrimas, e finalmente caiu em si.
Tinha feito merda, outra vez.
— Duda... me desculpa.
— Não tem desculpa, Alex! — ela vociferou.
— Eu fiquei tenso por causa do Rick... fiquei com medo de ser cortado... eu só queria dar uma relaxada...
— Cala a boca! Cala essa merda de boca! — Ela colocou as mãos nos ouvidos e se afastou; deu alguns passos e parou, aguardando que ele a acompanhasse. E ele o fez, como sempre.
Eles voltaram ao bar em silêncio, pois ele estava envergonhado; e ela, irada demais para conversar. Quando chegaram ao local, a banda tocava a última música. Duda notou os olhares: aliviado de Rick, irritado de Jonas.
Eu posso me ferrar num balcão numa sexta-feira movimentada, mas esse infeliz não pode ficar cinco minutos sem ajuda...
A banda finalizou sob os aplausos de um público delirante. Apenas Alex e Duda pareciam não vibrar com essa nova formação. Ela ouvia fragmentos de conversas: "O novo guitarrista é foda demais!", "...foi o melhor show da banda...", "...nunca tocaram assim antes!", e frases do tipo.
Os comentários, obviamente, chegaram aos ouvidos de Alex, que estava plantado ao seu lado com ar decepcionado. Ela sabia o quanto isso podia feri-lo.
O filho que não deu certo.
O cara que não chegou a lugar nenhum.
O que não era bom o suficiente em nada na vida.
Ignorando a raiva que sentia dele, ela o abraçou pela cintura e lhe falou ao pé do ouvido:
— Não liga pra isso. Só faz o que você tem que fazer. Para com essas merdas e se dedica! Rick te elogiou, disse que você é bom. Só falta você acreditar nisso. Não se entrega, por favor, por você, por mim...
Sem se preocupar com o mau humor de Jonas, ela acompanhou Alex até o palco. Rick abriu a boca para falar algo, entretanto ela fez um sinal com a cabeça, e ele ficou em silêncio.
Os outros integrantes da banda pareciam decepcionados, porém o sucesso do show maquiou um pouco sua insatisfação. Eles sabiam que não adiantava falar nada, então deixavam esse papel para Duda.
Afinal de contas, alguém sempre tinha que tirar o lixo.
***
Foi bom sonhar
Mas acordei ao som dos pesadelos
E do jazz
Sim, foi demais
(Falso Milagre do Amor - Ed Motta / Ronaldo Bastos)
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