74 - Símile
Símile: é um símbolo utilizado na música para indicar que o compasso anterior se repete por uma ou mais vezes.
— Eu era apenas um colega dela. Nunca foi nada além disso. Sei que pra você pode parecer confuso, não digo que não seja até meio imoral, mas pra mim e boa parte dos músicos profissionais, é difícil manter um relacionamento, porque geralmente tem muito ciúme envolvido, então quem tá aí na ativa, tocando na noite, fazendo shows, acaba se divertindo como pode. É um lance físico, nada emocional. Foi o que aconteceu entre mim e ela. Não passou de puro entretenimento sem compromisso.
Duda sentiu uma pontada no peito, mas ignorou o sentimento e manteve a postura. Não ia deixar que emoções sem controle se interpusessem novamente nessa conversa.
— Percebe o quanto é complicado ouvir isso de você, bem agora, depois que a gente tá tentando se acertar? Eu nunca vi você galinhando no bar, então pra mim é muito difícil entender. Sei que pra homem não precisa de afeto pra fazer sexo, pra algumas mulheres também não, mas eu não fico nada confortável com isso.
— Não tem que ficar confortável. Já cruzamos essa linha faz tempo, quando eu menti pra você e escondi o que aconteceu. Eu mereço todo o seu desprezo, não esperava nem que você me perdoasse mais, então você tem todo o direito de questionar, até desconfiar, mas eu quero que você tente ver pela minha ótica. Eu não fazia ideia que você existia quando conheci Isadora. Não sabia nem que ela tinha uma filha. Quando eu soube que ela havia abandonado alguém, fiquei profundamente aborrecido, por causa da minha história. Ela me mostrou seu vídeo, eu achei você muito talentosa e ficava imaginando você crescendo sem a mãe, como aconteceu comigo. Eu já queria voltar ao Brasil, então minha ideia era te conhecer e me oferecer para produzir seu trabalho musical, e tentar te ajudar no que precisasse, como um amigo. Foi só isso. Eu não esperava sentir o que senti quando vi você pessoalmente. Eu tive um desejo imediato de te proteger, e conforme fui conhecendo sua história, não pude mais me afastar. Quanto mais eu me apaixonava por você, mais me odiava por ter conhecido sua mãe, mas não sabia como resolver o dilema.
Duda foi envolvida pelo silêncio do quarto, deixado quando ele parou de tocar em algum momento da narrativa. Ele não desviava os olhos dos dela, olhos que no momento estavam molhados por lágrimas reprimidas.
— Isso é um tabu gigantesco. Precisei de meses para entender que você não teve culpa por conhecer ela, mas saber que escondeu é o que me feriu de verdade. Na minha cabeça fica matutando uma ideia de que você vai voltar a tocar, produzir, e uma hora ou outra uma loira qualquer vai te encurralar no beco e te render num beijo roubado, e pensar que você pode esconder isso de mim...
— Duda, Duda... me escuta — ele se ajeitou na cama para encará-la mais de perto —, eu nunca mais vou esconder nada de você. O que eu sinto por você vai além de qualquer coisa que eu já tenha sentido. Primeiro veio um fascínio pelo seu talento, quando vi o vídeo, depois veio a vontade de te proteger quanto te conheci. Em pouco tempo, estava envolvido, te amei antes mesmo de te desejar, e eu nem sabia que isso era possível. Todos esses meses longe me mostraram que eu não ia conseguir seguir em frente, e foi por isso que voltei.
— Você já entendeu o que aconteceu no dia em que esse vídeo foi gravado, não é?
— Sim. Alex me contou tudo. Eu não tinha ideia, Duda. Se soubesse, não sei se conseguiria me sentir da mesma maneira sobre você. Não dá para saber, na verdade. O fato é que, naquela época, eu estava buscando um elemento motivador para voltar ao país e você foi o motivo.
— Que coincidência você ser amigo do meu patrão...
— Não é? E você não imagina como foi difícil esconder que já tinha ouvido você cantar e tocar antes, e como fiquei surpreso ao saber que a música era um problema pra você.
— Era sim... agora não é mais, graças a você.
— A música nos conectou, Duda, e não somente isso. Acredito que a solidão que eu sentia ecoava na sua, e quando percebi a sua fragilidade emocional, não consegui revelar meu breve envolvimento com a Isadora. Eu observei e esperei o momento certo que nunca chegava porque eu estava envolvido demais, eu te amava demais e tinha pavor em te perder, então me acovardei. Essa é a verdade, eu fui um covarde, Duda.
— Você foi mesmo, e certamente você me subestimou, mas hoje posso entender, ao menos em parte. Eu também achei essa história toda muito louca. Me consola saber que, se você não tivesse aparecido, provavelmente eu estaria no mesmo lugar, vivendo os mesmos dramas, sobrevivendo a cada dia sem esperar pelo amanhã. Eu não teria voltado a tocar nem a cantar, não aceitaria novos amigos, não teria conhecido minha mãe e, fatalmente, ainda estaria carregando o lixo.
Emocionado, Rick colocou o violão no chão, ao lado da cama. Agora não havia mais segredos entre eles e, caramba! Como isso era bom!
— Se não tivéssemos nos encontrado, eu nunca saberia o que é o amor. Baseei minha vida inteira no fato de ter sido abandonado, de não ser suficiente para minha mãe escolher ficar, então acreditei que estar só era a minha sina... até você. Eu amo tanto você, Duda! Obrigado por me perdoar e por me aceitar de volta.
— Coisa do Sr. Destino.
Rick riu e segurou as mãos dela. Ela suspirou ao sentir o calor restabelecido nas palmas firmes dele.
— Não culpo o Sr. Destino. Na verdade, eu dou o crédito a ele — Ele levou as mãos dela aos lábios e beijou as pontas dos dedos. — Não vejo a hora de sair daqui, Duda. Não aguento mais isso.
— Logo, logo, você sai. Já sabe o que vai fazer quando sair?
— Ainda não sei. Eu cheguei a procurar uns imóveis enquanto estou aqui mas não deu em nada, então pedi pro Júlio procurar algo para mim.
Ela o mirou por mais alguns instantes, então se aproximou e o beijou nos lábios. Ele não se moveu a princípio, mas logo a segurou pela nuca e aprofundou o beijo, dando-se conta de que era o primeiro beijo que trocavam desde que haviam se afastado.
— Por Deus, Duda... — ele murmurou quando os lábios se descolaram. Respiravam de modo acelerado, pegos de surpresa pela intensidade das sensações há tanto reprimidas — senti tanta falta de você que achei que iria morrer...
— Eu também senti...
O martelar dos corações e a reação dos corpos os conscientizou do longo período em que ficaram separados. Duda se sentiu aquecer, e esse calor foi a forma que seu corpo mostrou a ela que o estava perdoando. Entregue, ela encaixou os lábios nos dele mais uma vez e o beijou com a força da falta que ele fez por tantos meses.
Quando a carícia se tornou mais intensa do que convinha, separaram-se e passaram um tempo em silêncio, trocando confidências através do olhar. A noite caía na cidade quando uma enfermeira foi até o quarto assistir Rick e lhe administrar medicamentos, e Duda aproveitou para se despedir.
— Preciso ir, tenho que resolver umas coisas. Você vai ficar bem?
— É o melhor que estive em meses, fada — ele sussurrou, já com os olhos cerrados, numa sonolência embalada pelos remédios.
Com um beijo rápido, ela o deixou e, assim que saiu do quarto, ligou para Júlio. Havia muito a digerir, e muitos assuntos a serem resolvidos antes que Rick, finalmente, recebesse alta do hospital e pudesse também voltar para casa.
***
Mesmo com tantos motivos
pra deixar tudo como está
Nem desistir, nem tentar
Agora tanto faz
Estamos indo de volta pra casa
(Por Enquanto — Renato Russo)
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