71 - Contratempo
Contratempo: é quando uma nota ou um acorde musical é tocado fora do pulso principal ou do tempo forte de uma música.
Consternada, Duda observava Rick estendido e imóvel no leito da UTI do Hospital Estadual Vila Alpina. Aparelhos transmitiam informações relevantes em pequenos monitores ao lado da cama, uma bolsa gotejava soro e fluidos através de um acesso à veia da mão esquerda, e outra mangueira levava o oxigênio que entrava pelas narinas. Eram mangueiras demais e uma estética apavorante.
Ele parecia estar dormindo, e não fosse a quantidade assustadora de ferimentos espalhados e o sangue pisado em regiões em que as tatuagens não conseguiram maquiar, o subir e descer do peito teria sustentado a ilusão do sono profundo e ajudado a conter o mau agouro da imagem do corpo tão machucado.
A maior parte dos ferimentos se concentrava abaixo da cintura. Uma lesão grande percorria a perna direita desde a virilha até o joelho. A perna esquerda estava imobilizada, os braços tinham diversas escoriações, e o abdómen, parcialmente oculto por um lençol dobrado que cobria apenas a região íntima, apresentava uma bandagem maior. Por baixo do lençol, outros fios e mangueiras se conectam aos aparelhos e a uma bolsa coletora ao lado do leito.
Eram fios demais. Eram mangueiras demais. Eram curativos demais...
Era silêncio demais.
Duda não queria acreditar no que seus olhos viam. Mesmo a contragosto, passara meses imaginando um reencontro, e em todos os cenários hipotéticos, nenhum poderia antever algo assim.
Ignorando as ordens médicas e aproveitando-se de um momento de distração da enfermeira de plantão, ela atreveu-se a se aproximar e, munida de coragem frágil, alcançou a mão direita outrora ferida, mas que desta vez parecia intacta. Sentiu os dedos gelados entre os seus, o que piorava tudo a um grau alarmante, porque algo marcante sobre Rick era que ele sempre tivera mãos quentes.
Saudosa do calor, contemplou atentamente o rosto tão amado onde, por sorte, não havia nenhuma lesão. A barba parecia mais longa e a tez parda outrora dourada, estava acinzentada e marcada por olheiras. Os cabelos agora bem mais longos, emaranhavam-se pegajosos devido ao sangue respingado. Ela teve uma vontade ridícula de lavá-los só para sentir novamente a textura dos fios fartos entre os dedos.
— Rick, se puder me ouvir, eu estou aqui, a Duda, sua... noiva.
Foi então que ela se deu conta da "mudança de chave". De repente, nenhuma mentira dita parecia importante; as mágoas iam se desintegrando como a névoa evanescente da manhã, e tudo o que ela desejava do fundo da alma era ver os olhos dourados se abrindo e fitando-a como antes.
Impressionante como os acontecimentos à volta determinam o real peso das coisas. Duda pensava no tempo que perdera sentindo mágoa, para, no fim, perdoá-lo sem que ele sequer pedisse perdão. Seria diferente se o tivesse recebido naquele dia no hospital? Algo mudaria se tivesse ouvido o que ele tinha a dizer?
Provavelmente não. O fato é que ela não estava pronta na época. Tudo acontecera rápido demais, um monte de coisas se encavalando umas sobre as outras. Nenhum dos dois estava pronto para a revelação daquele segredo, nem para as consequências do mistério, e por isso não havia como estarem prontos para o noivado ou para morarem juntos. Ela não admitiu isso na época, mas constatou essa verdade quando se mudou para sua antiga casa na Mooca. O tempo foi determinante para colocar tudo em seu devido lugar, para mudar a percepção dos acontecimentos, resolver questões insolúveis, equalizar sentimentos, e finalmente curar.
Sem pensar muito no ato em si, ela removeu a corrente do pescoço e tirou dela o par de alianças. Não tinha certeza se podia fazer isso, mas o fez mesmo assim. A mão de Rick, outrora lesionada, parecia mais fina agora. Todo ele parecia mais magro, menor, principalmente no estado vulnerável em que se encontrava. Ela ergueu o anelar direito dele, o mesmo que ele fraturara há tanto tempo, e encaixou ali a aliança, que entrou com facilidade. Em seguida, ela recolocou a própria aliança no dedo.
— Eu realmente espero que você acorde e veja isso antes que alguma enfermeira enxerida venha e remova o anel. Apesar de tudo o que você me causou, eu espero que você me entenda, e compreenda o fato de eu ter sido mais uma a te rejeitar. Vou aguardar aqui fora até você acordar, porque não aguento mais esperar, Rick. Já esperei tempo demais. Vê se volta logo à consciência pra eu poder te xingar por ter se enfiado num carro alugado, sem dormir e num dia chuvoso só pra atender a um pedido meu. Se quer tanto atender desejos, se empenha para atender esse, ok? Acorda logo... por favor. Eu ainda amo você.
Com um beijo leve nos lábios estáticos e frios, ela deixou a UTI e, enquanto caminhava até Júlio, voltou a girar o anel para a direita, para a esquerda, e contou as pedrinhas...
***
Havia um pavimento amplo e claro por onde Rick caminhava. Não reconhecia onde estava, pois as vistas não identificavam os elementos distantes. Não sabia se estava num local aberto ou fechado, porque o que estava acima também era de um branco puro e imaculado. À sua frente, um homem impossível de descrever tinha o olhar fixo no horizonte. Rick o interpelou.
— Oi... você pode me dizer que lugar é esse?
— Um lugar qualquer. Que importância tem o lugar?
Rick achou a resposta esquisita e ficou ainda mais apreensivo. Não entendia o que estava acontecendo, nem por que ou como fora parar ali, naquele ambiente insólito. A última coisa da qual se lembrava era das lanternas dos carros na Marginal, da chuva e de que era noite, então, por que tudo ali estava tão claro?
— O que aconteceu? — insistiu.
— Aconteceu exatamente o que deveria ter acontecido. Mas não fica preocupado, pois eu estou aqui agora.
— E por acaso... quem é você?
— Sou seu pai.
Rick deu um passo atrás, aturdido.
— Eu não tenho pai!
— Claro que tem. Todo mundo tem um pai, ainda que não tenha. Alguns têm consciência disso, outros fingem que não. Muitos têm medo, mas o fato é que, mesmo aqueles que têm apenas a mãe, ou duas mães, ou aqueles que acham que não têm ninguém no mundo, têm um pai em algum lugar. Sim, todos, no geral, têm mãe e pai.
Rick começou a tomar consciência do que isso poderia significar.
— Isso aqui não é real, certo?
— Se considerar que você está aqui, por que não seria real? Só porque não faz parte do seu espaço-tempo ou da sua concepção existencial, não significa que seja irreal.
— O que exatamente é você? — Agora Rick estava verdadeiramente aflito.
— O que eu sou? Já disse: um pai.
Rick sentiu os olhos úmidos sem entender a razão. Subitamente, todas as suas carências se manifestaram de uma só vez, cada qual atingindo-o como chicotadas ardentes e compassadas. Aos poucos, as memórias do que antecedeu a este instante de semiconsciência surgiram diante dos seus olhos como um vídeo em reverse: a ansiedade de reencontrar Duda, os meses solitários na Irlanda, o rompimento do noivado, o noivado, a primeira vez que a viu num beco, o vídeo, a morte dos avós, a morte da mãe, as brigas...
O abandono e a solidão constantes.
Todas as lembranças o assolaram ao mesmo tempo como um torvelinho intenso, aumentando a robustez das lágrimas que agora corriam soltas sem que ele percebesse.
Seria tarde demais? Teria ele perdido a chance? Perdido o tempo?
— Por quê...? — foi a única pergunta que conseguiu fazer, e nela todos os questionamentos da sua existência se resumiam.
— Não há uma resposta compreensível para isso agora. Se não houvesse perguntas aparentemente sem respostas, qual seria a motivação da busca? Qual seria o sentido da vida? Sempre há uma resposta, sempre há um sentido em tudo, mas existe o momento certo para descobrir, então não pense no que perdeu, concentre-se no agora e aguarde o que está por vir.
— O que está por vir... Então, eu não estou... Morto?
— Não exatamente.
— Como assim, não "exatamente"? Então isso aqui é um sonho, não é real!
— O que é real, Ricardo?
Rick continuou com os olhos fixos no homem que não conseguia descrever. Dentro de si, brotou uma convicção inbabalábel de que aquele ser era real, e ainda que se apresentasse como seu pai, não era o tipo de pai que Rick conseguiria compreender, interpretar ou rejeitar.
O tempo se estendeu, imensurável, assim como o silêncio, que foi quebrado apenas por uma voz doce, como de um anjo.
"Eu ainda amo você..."
A frase sussurrada o fez virar o rosto em direção ao som. Quando voltou a olhar para o homem, ele havia desaparecido. Naquele instante, o lugar começou a perder luz, e Rick vasculhou os arredores, depois inspecionou a si mesmo, suas pernas e mãos, constatando que podia se mover. Um brilho em sua mão direita chamou-lhe atenção, e foi quando percebeu a aliança, devidamente encaixada em seu anelar. Seu coração deu um salto e a escuridão se acentuou, restando uma névoa alaranjada.
Desesperado por sair daquele estado suspenso, caminhou em direção um tênue faixo de luz horizontal que piscava ao longe. A luz era inconsistente, intermitente, ia e vinha conforme ele se aproximava; Aos poucos, ele percebeu que aquela não era uma luz qualquer. Era porque suas pálpebras estavam se descolando, e ele tentava abrir os olhos.
***
A primeira coisa que o assustou foi a luz, agora forte e branca demais. Depois, veio a sensibilidade generalizada, como se todo ele estivesse sem pele, tal qual um nervo exposto. Ele ouviu o bipe irritante de algum aparelho, semelhante a um metrônomo funesto que fazia contratempo com outros ruídos igualmente sinistros. A claridade fazia seus olhos doerem, além de todo o resto. Tudo girava num entorpecimento generalizado, e mesmo assim, a dor se distribuía ao longo do corpo, ele sequer conseguia identificar exatamente onde.
Uma forte tontura o acometeu, e o ácido do estômago voltou até a boca; de certo teria vomitado se houvesse algo para expelir; chegou a sentir a contração abdominal, a força que o esôfago fez para expulsar qualquer coisa lá de dentro, e o movimento involuntário ampliou a agonia e a dor. Um dos aparelhos começou a bipar de modo acelerado, como se denunciasse seu tormento, e uma mulher vestida de branco se aproximou rapidamente.
— Já acordou, valentão? É muito cedo, precisa descansar um pouco mais.
Rick percebeu que não podia responder. A boca e a voz não funcionavam. Com muito esforço, ele testou o movimento das mãos e dos dedos. Eles se moviam sem dor, então parecia tudo bem, mesmo que o resto do corpo estivesse todo lesionado, se as mãos funcionassem, o resto se ajeitaria.
Lembrando-se do sonho, com grande dificuldade ele olhou para baixo; ergueu lentamente os dedos da mão direita e constatou que estava lá, a aliança, como um sonho distante, um delírio causado pelas drogas tão bem-vindas que agora lhe aliviavam a dor.
A agonia não mais o afligiu, pois um sentimento muito mais poderoso a sobrepujou. Ele poderia sentir dor para sempre, pois Duda estivera ali, e se a aliança estava em seu dedo, era porque ela finalmente conseguira perdoá-lo. Com isso em mente, ele fechou os olhos, voltando ao deleitável estado de inconsciência proporcionado pela medicação que a enfermeira administrava através do acesso em sua mão.
Nada mais importava agora.
***
Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes acesas agora
O que foi escondido é o que se escondeu
E o que foi prometido, ninguém prometeu
Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens...
(Tempo Perdido - Renato Russo)
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