70 - Enarmonia
Enarmonia: relação entre duas notas musicais que possuem nomes diferentes, mas que são sintonizadas com a mesma altura sonora. As notas têm frequências ligeiramente diferentes, mas soam igual.
Duda acordou com o celular chamando. Como costumava ativar o modo "Não Perturbe" durante a madrugada, ela prontamente atendeu, pois sabia que, se estava chamando, era porque alguém realmente precisava falar com ela.
— Alô, Júlio? — ela murmurou, sonolenta. Afastou o aparelho para conferir as horas. 2h46 da madrugada. O horário a preocupou, pois Júlio não telefonava por motivo algum, quanto mais no meio da noite.
— Duda? Duda, desculpa te acordar...
Duda percebeu que ele tinha a voz esquisita, meio trêmula. Seria sono? Ela mesma ainda não estava totalmente desperta.
— Não tem problema, Júlio... aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu.
Ela sentiu uma agitação incômoda. Apenas uma coisa seria motivo de Júlio interromper seu sono: Alex. O pensamento a despertou de uma vez, levando-a a se erguer do colchão.
— Fala logo, Júlio! O que houve?
— Rick...
Duda sentiu os seus membros como gelatina quando ouviu o nome através do aparelho.
Rick? Espera... Rick? Não Alex? Por que Júlio está falando de Rick?
Curiosamente, quando o telefone tocou, Rick foi a primeira pessoa que veio à mente de Duda, por causa da mensagem que ela mandara mais cedo. Só que não era ele, e sim a respeito dele. Duda teve um medo absurdo de perguntar, mas o fez mesmo assim.
— O que tem o Rick?
— Ele recebeu sua mensagem, tava indo até você.
— Como assim, tava vindo até mim? Ele não tá fora do Brasil? — Duda começou a desconfiar que Júlio estava, na verdade, bêbado em alguma balada.
— Não... ele tava no bar... aí ele saiu correndo e...
— Rick... No bar? No Brasil? Desde quando?
— Me escuta, Duda. Presta atenção! Você consegue pegar um táxi ou Uber e vir aqui pro hospital? — Júlio também estava com dificuldade de articular as palavras; parecia confuso e assustado.
A menção da palavra hospital fez a gelatina derreter.
— Que hospital, cacete? Do que você tá falando? — Duda estava agora oficialmente assustada. Rick, Brasil, hospital. Três substantivos aterrorizantes quando juntos, porque todas as vezes em que eles se encontraram na mesma oração, alguma tragédia estava prestes a ocorrer entre eles.
— Te mandei por mensagem. Só vem pra cá. Você chegando aqui, eu te explico tudo.
Duda conferiu a tela do aparelho, um mapa com um local marcado era a única mensagem de Júlio; nenhuma outra explicação. Teria que ir até ele para saber mais. Ela só sabia que algo ocorrera, e fora com Rick. Atemorizada, acionou o App e chamou um Uber.
Demorou 12 minutos até que um motorista surgisse à porta de sua residência, e nesse ínterim, Duda se trocou e, entre os piores cenários possíveis, buscou processar melhor as informações.
Rick no Brasil... no bar... no hospital... como?
O motorista, percebendo a preocupação de Duda e considerando o seu destino, fez o caminho em tempo recorde. A cada segundo que passava, menor era a distância até o hospital e maior era a angústia que ela sentia. Quando, enfim, ela invadiu a sala de espera do pronto-socorro e Júlio foi ao seu encontro, o olhar abatido e preocupado do seu patrão fez um buraco se abrir sob os seus pés, pronto a tragá-la para o ventre do desespero.
— O que aconteceu...?
— Rick... ele sofreu um acidente.
— O quê...? – Duda sentiu os olhos cheios de lágrimas. O peito ardeu, as mãos começaram a tremer, e o ar faltou.
Não podia ter uma crise agora, era inconcebível um negócio desses!
— Rick, Duda! Ele... foi na Marginal... o carro rodou e...
Júlio não conseguia completar a frase. Duda nunca viu Júlio sem poder completar uma frase, sem saber o que dizer e, principalmente, com um aspecto tão assustado como agora. Constatar isso fez Duda começar a entender a seriedade da situação.
Rick havia sofrido um acidente... Um grave acidente.
— Como ele está? — sua voz saiu espremida, quase um sussurro, e a tentativa de manter-se sob controle fez doer ainda mais sua garganta.
— Não sei, nenhum médico veio dar notícias ainda. Só sei que ele tá em cirurgia...
— Cirurgia... meu Deus...
Duda esfregou as mãos uma na outra e respirou de modo acelerado. Fechou os olhos e buscou se concentrar em um ponto dentro de si mesma na busca por equilíbrio. A voz de Júlio chegava aos seu ouvidos cada vez mais distante, e o medo de sofrer uma vertigem a fez abrir os olhos, atenta.
— ... Eu cheguei ao local quando o Resgate tava trabalhando, eu vi quando... – Júlio se calou. Ele estava com muita dificuldade de manter-se calmo, e vendo Duda agora, as lágrimas descendo pelo rosto...
Tudo bem que ele queria a porra de um Plot Twist, mas não desse jeito, caralho!
— Ele se machucou de novo, Júlio... por que ele tem que ficar fazendo isso toda hora? — Duda cobriu o rosto com as mãos trêmulas.
Júlio percebeu como ela buscava manter o controle das emoções. A reação o emocionou de um jeito que ele não conseguia explicar, então ele a abraçou e a consolou, acariciando os cabelos revoltos enquanto sentia o corpo dela, finalmente, chacoalhar com os soluços.
O pranto não durou muito. Determinada a não sucumbir aos sentimentos, Duda se desvencilhou do abraço e foi até um banheiro lavar o rosto. Júlio caminhava de um lado para o outro quando ela retornou e, incentivado por ela, acomodou-se em uma das cadeiras da recepção que, apesar de tratar-se de um hospital público, não estava tão cheia àquela hora da madrugada.
Mais uma hora transcorreu. até que finalmente um médico surgiu na recepção perguntando pelos acompanhantes de Ricardo Moreno. A imagem do homem trajando a indumentária verde e o gorro de cirurgião deu um nó no ventre de Duda, e ela se segurou para não sair correndo, fingindo que tudo não passava de um pesadelo.
— Boa noite. Trago notícias sobre o paciente Ricardo. Eu sou o Dr. Carlos, o médico que está cuidando dele desde que foi admitido aqui no hospital após o acidente de trânsito. Primeiramente, quero expressar minha solidariedade e compreensão por este momento angustiante que vocês estão enfrentando.
Duda deu um passo atrás. Não gostou do médico, nem do jeito que ele falou. Ela não precisava de solidariedade; ela precisava saber que merda estava acontecendo com Rick! Por que o doutor ficava dando voltas?
— Desde a admissão do Ricardo — o cirurgião continuou — nossa equipe médica tem estado empenhada em fornecer o melhor atendimento possível. Ele chegou ao hospital com diversas lesões, algumas fraturas, dores abdominais intensas e sinais de choque, o que nos levou a realizar uma série de exames e avaliações para entender a extensão de seus ferimentos. Os resultados desses exames revelaram que Ricardo tinha uma perfuração no intestino delgado devido ao impacto do acidente. Isso exigiu uma cirurgia de emergência para reparar a perfuração e controlar qualquer hemorragia interna.
— Meu Deus... — Júlio sussurrou. Duda voltou a chorar.
— No momento, Ricardo está na UTI recebendo os cuidados pós-operatórios necessários. Sua recuperação está em curso, e estamos monitorando de perto sua condição. É importante entender que o processo de recuperação pode ser gradual, e estamos fazendo todo o possível para garantir que ele receba o melhor tratamento e apoio durante este período. Vocês são...?
— Amigo.
— Noiva!
Júlio olhou surpreso para Duda. Ela não pareceu perceber o que havia respondido.
— Vamos acompanhar o estado dele durante a madrugada e amanhã cedo traremos alguma atualização — o médico concluiu.
— A gente pode... ver como ele está? — foi Júlio quem perguntou.
— Bem, Ricardo está sedado e inconsciente. Acabou de sair da cirurgia, não é o melhor momento.
— Por favor... apenas uma olhadinha pra ter certeza de que ele está...
Vivo...
A voz lamuriosa de Duda acabou amolecendo a postura do profissional, compadecido da situação.
— Apenas um de vocês, à distância, e por poucos minutos. Uma enfermeira virá para acompanhar; aguardem aqui.
Com um aceno, o médico se retirou. Duda sentiu a cabeça solta com um monte de informações girando. Acidente de trânsito, perfuração intestinal, cirurgia, UTI... Rick não estava do outro lado do mundo? Como ele viera parar aqui, numa UTI, tão perto e tão mais longe do que antes?
— Como isso aconteceu, Júlio? — ela perguntou, com a voz embargada.
— Ele voltou de viagem hoje, Duda. Não tinha avisado ninguém, só apareceu lá no bar, do nada. Ele queria ver você, acabou ficando por lá um tempo, depois recebeu uma mensagem sua e saiu pra te procurar. Algum tempo depois, eu recebi uma ligação... — Júlio engoliu em seco, contendo a emoção. Duda se deu conta de que nunca vira Júlio tão triste antes. — Foi foda porque, quando cheguei, estavam tirando ele das ferragens. Eu achei... eu pensei que...
Que ele estivesse morto.
Nenhum dos dois teve coragem de completar a frase.
— Como você soube? Como chegou até ele?
— Meu nome consta nos contatos de emergência do celular dele. Ainda bem, já pensou se ele tivesse voltado, não fosse até o bar e sofresse o acidente? Nenhum de nós saberia, caso acontecesse algo mais grave...
Duda sentiu um arrepio. O conceito de solidão acabava de subir de nível. O pensamento fez Duda verificar a ficha médica do seu smartphone para averiguar se tinha as opções de contato atualizadas, e só quando ergueu o aparelho, se deu conta.
— A culpa foi minha...
A mensagem... a maldita mensagem que ela rascunhara por meses e meses, quando finalmente teve coragem de enviar, a merda toda aconteceu.
Ok, senhor Destino. Não vou perguntar se pode piorar, certamente deve haver mais alguma piadinha de mau gosto reservada para cada segundo de esperança que eu venha a ter... afinal, sempre dá pra piorar aquilo que já tá ruim!
— Não fala merda, Duda! Tem noção do que a mensagem significou pra ele? Você não viu como ele ficou... cheio de expectativa, de esperança...
— Não tá ajudando muito, Júlio — Duda tombou na cadeira da sala de espera e abraçou os joelhos para esconder o choro.
Se houvesse uma competição de lágrimas, ela teria finalmente encontrado um jeito de ficar rica.
— Duda, ele tinha acabado de passar doze horas num voo! Sei lá se dormiu ou comeu antes disso, dava pra ver que estava exausto! Se alguma coisa aconteceu, não foi por sua causa. Pelo que entendi do acidente, um motorista fechou o carro da frente, a pista estava molhada, ele estava dirigindo um carro alugado. Enfim, foi algo que poderia ter ocorrido com qualquer um, com ou sem mensagem. O negócio agora não é ficar procurando culpado. Ele não precisa disso, o que ele precisa é que você esteja do lado dele quando ele acordar.
Duda sentiu o ventre tremular ao ouvir isso. Estar ao lado dele quando ele acordasse, depois de tanto tempo...
Ela não chegou a pensar nisso. Na verdade, ela não pensara em nada, só saiu correndo atrás dele sem nenhum plano, constrangimento, mágoa ou empecilho.
Quando ele acordasse... e se ele não acordasse? E se... Duda não queria pensar, porém queria achar um culpado. Se não era ela, alguém era! Ela queria culpar o tal senhor Destino. Sabia que ele coordenava tudo, e detestava se sentir uma peça inanimada num tabuleiro. Em meio à confusão de sentimentos que se confundiam em seu interior, uma voz grave e ao mesmo tempo suave perfutou a névoa das lembranças, e as palavras de Rick, pronunciadas no dia do seu primeiro show, voltaram à sua mente como que sopradas por uma entidade:
"Perseverança e tempo... perseverança para aperfeiçoar e não desistir, tempo para aprender e deixar acontecer..."
Seria a tal piada de mau gosto uma forma de chamar a atenção para o que realmente importava? Nenhum dos dois foi perseverante, o tempo acabou passando querendo ou não e, agora, depois de tudo, teriam aprendido algo?
"[...] às vezes... demora muito pras coisas acontecerem num piscar de olhos."
Seria, por acaso, esse acidente o tal "piscar de olhos" deles?
***
Olhei, não via ela há muito tempo
Há quanto tempo faz? Nem me lembro mais
Então, pensei na vida que há algum tempo
Eu deixei pra trás
Não me deixa em paz...
(De Repente - Nando Reis / Samuel Rosa)
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