7 - Contraponto
Contraponto: técnica usada na composição em que duas melodias trilham caminhos diferentes e ao mesmo tempo, ora se encontrando, ora se afastando.
Rick conversava com a banda, mas não conseguia tirar os olhos da ruiva que trabalhava atrás do balcão. Queria estar focado na conversa, mas contrário a isso, estava distraído e isso o irritava. Sentia-se logrando Júlio por dividir a atenção entre o grupo e alguém que sequer se dava conta de seu interesse.
— Mas você não acha que a letra da música tem que ter alguma mensagem forte? Algo que faça pensar? — Dani perguntou, alheio ao avoamento de Rick que, por sua vez, se esforçava para se lembrar em que momento tinham começado a falar sobre letras de música.
— Não — Rick respondeu, absorto. —Na maior parte do tempo ninguém liga pro que você quer dizer, desde que o som seja legal.
— Tá de zoeira! Posso cantar qualquer merda que tá tudo bem?
— Não "qualquer merda"... — Rick retrucou e, após um suspiro, resolveu finalmente prestar atenção às perguntas. — Se querem falar algo forte e passar uma mensagem, precisam entender que dois terços de quem escuta a música não liga. Se querem que se importem, vão ter que compor músicas que digam o que elas querem cantar, não o que precisam ouvir.
— Como assim? — Hannah tentava entender.
— Se querem que cantem junto, vão ter que fazer letras que eles querem cantar... — Rick procurou uma forma de se fazer compreender, então continuou: — nada de assuntos que ninguém quer saber a não ser que configure um desabafo da alma, tipo, algo que te coloque do lado de quem sofre ou que jogue o público acima disso. Nunca abaixo. Outro caminho é contar sua história ou uma história que deixe tudo interessante, que emocione ou divirta.
— E se na minha história ou de alguém a pessoa está pra baixo? Ou se for uma história triste, como a desilusão, por exemplo? — Dani questionou.
— A música é pra elevar, emocionar e entreter, não pra piorar as coisas — Rick continuou —, ela serve pra dar voz ao que vai no coração das pessoas, e não pra deprimir, a não ser que essa seja a sua proposta, mas aí é outro som, não é o que vocês fazem. Existe uma diferença entre cantar sobre a desilusão ou estimular e alimentar a desilusão.
— Quer dizer que, se eu estiver depressivo, não posso cantar sobre isso? — Alex perguntou, intrigado.
— Pode, claro que pode e até deve, mas como você vai fazer isso é que conta. Pense na música "Pais e Filhos", do Renato Russo. É sobre depressão, sobre suicídio, é pesado apesar de na época todo mundo cantar de um jeito feliz e descontraído em rodas de amigos.
— O pessoal nem se ligava que a música falava disso — Dani comentou, interessado.
— Exato! — Rick confirmou. — Quando digo que quase ninguém liga pra letra, é disso que eu tô falando. O refrão dessa música diz: "é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...", a mensagem é de que o amanhã é só uma ilusão que pode nunca chegar. O compositor concentra a ideia central da música numa ação imediata. Dá certo porque qualquer um pode cantar isso de peito aberto. Mas se ele cantasse: "É preciso se jogar da janela como fez aquela filha depressiva de um pai ausente...", boa parte das pessoas não ia cantar, porque nem todo mundo quer ser depressivo, por mais "romântico" ou "atraente" que o assunto pareça para alguns.
— É estranho dizer que isso pode ser romântico ou atraente — Hannah argumentou.
— Pois é — Rick suspirou —, ainda que muitos se coloquem nessa posição só para chamar a atenção, isso não é uma escolha de quem realmente sofre com isso. Pra quem tem esse tipo de problema não é gostoso, não é legal, então essa pessoa quer superar isso cantando sobre o amor, imaginando que alguém vai entender o que ela sente. Ela busca no meio da mensagem um alívio e um pouco de compreensão. Se querem cantar sobre dor, escolham as dores que as pessoas têm em comum, deem a elas uma forma de se expressar, falem do que é real pra vocês e, então, a música pode dar certo.
— É por isso que música de corno sempre pega — Nico brincou, divertido.
— E você tem bastante experiência com isso, não? — Alex provocou, puxando uma das tiras do rastafari do baterista.
— Vai à merda, Alex! — Nico ralhou, ainda que de brincadeira. Sem graça, ele olhou para Rick. — Ele tá me zoando porque eu acabei de me separar. Mas não teve nada a ver com traição. Enfim, às vezes, simplesmente não dá certo.
— Complicado... — Rick comentou, compreensivo e um tanto irritado com Alex por brincar com um assunto tão sensível. — Essas coisas machucam, não importa o contexto. Mas como você tá com isso?
O baterista ficou surpreso e admirou o interesse de Rick.
— A gente nunca fica bem, cara. Mas é a vida, né? Já estive pior, muita mágoa envolvida, nem sempre é possível perdoar.
— É, cara. Mulher é complicado... — Dani soltou no meio da conversa.
— E o que você sabe sobre isso se você nem gosta de mulher? — Hannah entrou no assunto. — E por que sempre tem que ser culpa da mulher?
— Ninguém falou isso... mas, também, ninguém precisa falar — Dani respondeu, rindo.
— Idiota...
— Calma, garota! — Dani ergueu as duas mãos em rendição. — Relaxa, ok? As mulheres são os seres mais inteligentes e evoluídos que há. Por isso dá pau, os homens nunca vão alcançar tamanha complexidade.
— Ok, ok... todo mundo já entendeu, Dani — Rick interrompeu, sentindo-se num parquinho —, e Nico, respondendo ao seu comentário, é um fato que músicas sobre traição pegam mesmo, mas acho que hoje as pessoas estão tentando passar por cima disso. Elas não querem mostrar que aceitam a dor como uma amiga, então declaram que não estão nem aí, que não precisam de ninguém, que podem ser bem melhores, e por aí vai. Pode até ser um caminho promissor desde que não minimize a dor das pessoas — concluiu e, como não conseguia se conter, ergueu novamente os olhos para o bar à procura de Duda. Era algo quase involuntário, como uma coceira que encontrava seu alívio além do balcão.
[...]
Duda se esforçava para ignorar o efeito que Rick causava naquela mesa cheia de gente linda, onde sugava a luz e o fascínio dos demais para si, como um Dementador*. Ela também fazia todo o esforço do mundo para não olhar para ele toda vez que se lembrava da voz rouca arranhando suas entranhas como uma carícia de unhas de gato.
Mais cedo, quando chegaram ao bar, ela se desvencilhou da companhia dele como quem tira um casaco num dia de sol. Sentia-se ofegante, sufocada e acalorada pela proximidade do homem. Ele não trocara sequer uma palavra com ela depois que saíram do flat, nem depois que chegaram. Parecia aborrecido.
Seria com ela?
Certamente. Sempre estragada demais para passar cinco minutos sendo agradável, era surpreendente como conseguira manter um relacionamento com Enzo por seis meses.
Não que ela lamentasse o término com o ex-namorado.
Duda conheceu Enzo na galeria enquanto ele procurava um álbum de blues para presentear o próprio pai. Na ocasião, conversaram bastante. Mesmo um tanto quanto indie demais para o gosto dela, ele era bem atraende e muito simpático.
Depois desse dia, Enzo passava quase sempre na galeria só para bater papo, e ela acabara topando sair com ele. Eles acabaram ficando juntos algumas vezes, e um mês depois ele a pediu em namoro.
Ela chegara a rir da situação: "Quem pede alguém em namoro hoje em dia? A gente só vai ficando e pronto..." Entretanto Enzo se dizia um rapaz convencional, dos que davam flores, planejavam encontros, queriam se casar e ter filhos.
Duda acabara atraída pela forma como Enzo a cercava de cuidados, sempre atento aos detalhes. Ele gostava de presentear e, a cada mês, arrumava um jeito de comemorarem o tempo que estavam juntos. Ele sempre deixava claro o quanto gostava dela, mesmo que ela não expressasse muito bem os próprios sentimentos.
Todavia, não demorou até que ele começasse a problematizar sua relação com Alex. Movido por ciúmes, Enzo passara a acusá-la de usar Alex como desculpa para não passar mais tempo com ele, culpando seu amigo inclusive pelos seus problemas emocionais. Enzo se tornara possessivo e controlador, passara a persegui-la no trabalho, reclamava de tudo, até das roupas que ela usava.
Duda não tinha dúvidas de que ele gostava muito dela, mas seu comportamento intenso a assustava. Ele tendia a ser incisivo demais, gesticulava muito e, sempre que queria provar um ponto, costumava tocá-la com mais firmeza e, muitas vezes, erguia a voz.
Ela detestava isso nele, porque o toque sempre fora um problema para ela, principalmente o tipo de toque que forçava a atenção.
Um dia, Enzo deu um ultimato: ela teria que escolher entre ele e Alex. Ela estava cansada de tentar manter aquela relação regada a ciúmes e cobranças sem fim, então dissera que não faria tal escolha.
Enzo ficou tão irado que, num rompante de fúria, agarrou-a pelos braços e depois soltou-a bruscamente. Ela se desequilibrou e bateu com a cabeça na parede. Apesar do susto, ela controlou os nervos e o expulsou. Enzo ficou desesperado.
"Duda, foi sem querer, eu fiquei fora de mim, isso nunca mais vai acontecer, eu te amo..."
Contudo, ela o empurrou para fora do apartamento. As últimas palavras dele enquanto ela fechava a porta ficaram gravadas em sua memória:
"Você não passa de uma doente depressiva! Acha que alguém vai querer você? Ninguém quer uma pessoa que gosta de ser infeliz!"
Existem muitas maneiras de ferir uma pessoa, e tem gente que sabe fazer isso de todas as formas possíveis.
No fim, ele não estava de todo errado. Ela não conseguia mudar. Seus vampiros eram velhos amigos, estavam muito bem guardados, e ninguém tinha o direito de dizer o que ela precisava fazer para mandá-los embora; porque, no fim das contas, eles eram tudo o que ela possuía.
Buscando se distrair das lembranças amargas, ela ergueu novamente o olhar para a mesa onde o bruxo lindo de coque samurai sugava a atenção de todos e, acidentalmente, os olhos de mel capturam os seus. Seu ventre reagiu e se encolheu, espargindo calor por suas pernas.
Merda...
Ela lhe deu as costas e se enfiou na cozinha. Sabia que tinha o rosto vermelho como um pimentão e se odiava por isso. Parecia uma criança que não queria subir no colo do Papai Noel por vergonha.
Ela não queria subir no colo de ninguém.
Ao menos, não do Papai Noel.
***
Ao menos, não do Papai Noel.
Todos querem a menina
Doce, comportada, bem-educada
O mundo te fez mais forte
Conheceu os pecados quase que até a morte
(Cara Menina - Lorena Vyctoria)
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* Entidade punitiva das histórias de Harry Potter que tinha o poder de sugar a essência vital de suas vítimas.
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