59 - Fuga
Fuga: forma musical de estrutura repetitiva que se baseia na imitação de um tema principal em várias vozes, resultando em uma composição complexa e desafiadora.
— Eu realmente acredito que eles estão prontos para caminhar por si, Júlio. Vou me retirar de campo.
— Você sabe que pode gerenciar a banda de longe, Rick. Você fez isso com os caras da Irlanda, certo?
Rick e Júlio tomavam um café no Terraço Itália, um importante ponto turístico da cidade conhecido por sua vista deslumbrante da skyline de São Paulo. Já tinham conversado sobre vários assuntos pendentes e, no momento, falavam a respeito do trabalho com a banda Dropp.
— Não quero, Júlio. Preciso deixar tudo isso para trás.
Júlio o observou, preocupado. Rick sempre foi um cara muito focado em objetivos, um profissional de dar inveja. O homem à sua frente não se parecia em nada com o Rick que ele conhecia há tantos anos. Começando pela postura curvada e derrotada, um fragmento da imponência do músico que arrancava suspiros da plateia durante os shows. Depois, o aspecto cansado, os cabelos oleosos, as olheiras e a barba irregular mostravam a falta de sono e o descaso com a aparência, algo que sempre foi muito importante para o produtor, que se preocupava em frequentar barbearias e academias para manter o visual e a forma. Parecia também mais magro, e Júlio não sabia se de fato ele perdera peso ou se era apenas o vazio que ele tinha por dentro que, de alguma forma, transparecia do lado de fora.
O fato era que Rick não era mais o mesmo, e estava sozinho nessa, porque não permitia que ninguém o ajudasse a encarar a situação. Júlio acreditava que, muito provavelmente, tudo começara a ruir com a fratura da mão, a primeira fissura que acabara por desestruturar todo o resto. Antes, o homem se resumia a uma única coisa: um músico excepcional que apoiava a vida sobre o seu talento singular. A vida dele não se resumia à música, porém a música o resumia muito bem, e ao tirar isso dele, não sobrou muito. Ele era bom em uma única coisa, agora não se sentia bom em nada, e sem poder tocar, ele se mostrava insuficiente, incapaz, inapto e inábil.
E para completar, agora estava isolado e indefeso. Ele não falava do que acontecera entre ele e a Duda, e Júlio sabia o quão importante era ele conversar a respeito, mas não havia nada no mundo que convencesse uma mula a se mover quando ela não queria. Se ele queria continuar sentindo pena de si mesmo, que fosse.
— É você quem sabe, Rick. Acho um puta desperdício, enfim... Toda essa merda foi por causa do vídeo que a mãe da garota te mostrou, eu tô certo? Ou foi porque... — Júlio suspendeu a respiração, depois foi cirúrgico — ela descobriu que você pegava a mãe dela!
— Não quero falar disso — Rick o cortou, brusco.
— Não quer falar, não é? Tá certo, não precisa falar, mas se o teu ouvido funciona melhor que tua boca, escuta o que vou te dizer: você fez uma merda gigantesca! Desde o começo eu te falei o que devia fazer, você fez o contrário. Só que agora, a vida segue, e você tem muito mais aí além do que deixou com ela. O que eu tô dizendo é que você pode ficar aí lambendo as feridas por um tempo, é um direito teu, mas a vida não para, velho! A merda já tá feita, e daqui a um tempo, você vai lamentar por ter ficado estacionado vendo a vida passar.
— Você não sabe como é.
— Não sei o caralho! Você acha que eu nunca caí de quatro por alguém? Por que acha que eu saio por aí pegando todas? Porque não posso ter uma única do meu lado! Cada um tem um jeito de lidar com as coisas, o meu foi esse, mas eu nunca deixei de ser quem eu sou, meus negócios continuam rolando, eu sigo tocando por aí, caçando talentos e dando bola pros amigos. E você? O que vai fazer?
Inquieto, Rick observou o mar de prédios da cidade, assim como fazia do alto do flat até poucos dias atrás. Os olhos buscavam o que não podiam encontrar, porque não estava fora, mas dentro. Duda estava ali, viva, incandescente e aguda, emaranhada em suas lembranças, em seu corpo e subconsciente. A dor da rejeição e a culpa tinham uma nova proporção agora, muito mais reais do que qualquer realidade. Ele a perdera, e com ela, tudo se perdeu no horizonte.
— Não posso tocar, também não posso ficar com ela, então eu vou embora.
Júlio suspirou e se encostou na poltrona. Os olhos acompanharam o horizonte, para onde Rick não parava de olhar.
— Vai fugir outra vez?
— Eu nunca fugi.
— Talvez não antes, mas agora vai.
Rick não respondeu. Júlio tinha razão, mas por mais que o amigo desejasse que ele se abrisse, que tentasse, que se esforçasse, Rick não conseguia. Estava cansado, já tinha feito a escolha e não voltaria atrás.
— Talvez...
— Vai sair do país? — Júlio perguntou, enfim.
— Talvez.
— E o processo, os assuntos com o Enzo, como vai fazer?
— Você é o meu advogado, me diz você.
— Vai tomar no cu, Rick! Vê se vira homem, caralho! — Júlio estava muito chateado.
Rick não reagiu. Ele era um cuzão, sim, um cachorro ferido, fugindo com o rabo entre as pernas. Dali a uns dias, ele iria tirar aquela órtese da mão, depois disso... ele não fazia ideia. Ansioso para ficar sozinho de novo, ergueu-se da poltrona e depositou uma cédula de dinheiro sobre a mesa. O vazio o aguardava em algum canto escuro de bar, era mais fácil se afundar em mágoas em lugares onde você não passava de um ninguém.
— Você tem o meu número — Rick murmurou, antes de sair — se precisar, me liga, no mais, me deixa quieto no meu canto. Não quero saber da Duda, não quero que me fale nada dela, ela merece seguir em frente e ser feliz.
Júlio o encarou e, por mais que fosse um cara firme e irreverente, não conseguia afastar a vontade de chorar que sentia nesse momento. Era como ver o final triste de um dramalhão, porém ele não estava no escuro do cinema onde ninguém o veria derramar uma lágrima ou outra, então ele manteve a postura de "fodão", porque era muito melhor para o seu amigo vê-lo assim neste momento.
— Tranquilo, por mim você não vai saber de nada, fica em paz.
— E, Júlio... não me leva a mal, eu sou grato por tudo, por você, sua amizade e apoio, mas não quero mais nada agora a não ser que me deixem em paz, ok? Fica com Deus, irmão.
Com isso, Rick se despediu de Júlio com um abraço, que o recebeu temendo ser este o último que dariam.
***
Agora está tão longe...
Ver a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos na mesma direção
Aonde está você agora além de aqui dentro de mim?
(Vento no Litoral — Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro