58 - Lócrio
Modo Lócrio: escala musical com alteração nos graus a fim de imprimir uma sensação harmônica. O modo lócrio soa obscuro, tenso, instável e conflituoso.
Duda esperava ansiosa que as portas do elevador se abrissem. Não entendia por que estava tão apreensiva, já que sabia que Rick não estaria aguardando por ela, mas isso em nada diminuía sua angústia.
Uma semana se passou desde que pisara no flat pela última vez. Uma semana sem contato com Rick ou qualquer informação sobre ele. Do período de dias separados, dois deles ela passou no hospital, os demais, ficou com Alex em seu antigo apartamento.
Diferente da última vez que passara por uma crise nervosa, ela reagiu mais rapidamente dessa vez, já que a vida e os compromissos a empurraram nessa direção. Agora ela tinha dois empregos, um animal de estimação, um terapeuta e as sessões do musical O Rei Leão, que retornaram logo após os feriados, e isso veio em muito boa hora, pois não dava tempo de pensar ou conversar sobre seus reais problemas.
Assim que ela entrou no flat, uma avalanche de sentimentos a empurrou em direção às portas abertas às suas costas, como uma golfada de ar frio. Ela se sentiu mal, uma leve tontura seguida de um breve tremor, então regulou a respiração e se concentrou.
Tá tudo bem... vai ficar tudo bem.
Automaticamente, o polegar buscou a aliança no anelar direito, mas só encontrou ali o vazio da carne úmida. Ignorando as emoções, ela se encaminhou para as caixas apoiadas contra a parede sob a escada. Algumas delas, ela nem chegara a abrir, outras estavam reviradas e abertas, do mesmo jeitinho que ela deixara quando Rick a levara do apartamento para o hospital.
Deu um giro com o olhar. O lugar parecia muito maior agora, amplo e cheio de luz que entrava pelas janelas da manhã ensolarada da quarta-feira. A temperatura do lado de fora beirava os 30ºC, mas, ali dentro, era como se ela estivesse caminhando sobre o gelo.
Interessante como é muito mais fácil sentir frio quanto tudo estava em chamas, e a escuridão é muito mais densa quando se sai de um local banhado em luz. Diante desse paralelo, seu coração se assemelhava a um túmulo fechado, frio e escuro.
Especulou em que mundo Rick imaginou que ela poderia morar ali. Ainda que ele tenha deixado o espaço pago e prometido não retornar, ela nunca poderia, jamais conseguiria chegar e sair desse lugar como se nada tivesse acontecido. O cheiro dele ainda estava nas almofadas do sofá, provavelmente nos lençóis da cama, um cheiro que entrava pelas narinas e fazia o caminho direto até o seu coração partido, que sangrava e sangrava, alimentando e engordando os vampiros de plantão.
No canto da sala, um pinheiro penso sustentava apenas metade dos ornamentos de Natal. A outra parte deles estava espalhada pelo apartamento, obra de redecoração com a assinatura de Gato, que considerara o pinheiro seu mais novo arqui-inimigo. Não dera tempo de ele terminar o trabalho; pois, um dia após Duda deixar o flat, Alex fora buscá-lo e o levara de volta ao apartamento no Centro, sua antiga habitação. Gato não pareceu se importar, o sofá vermelho ainda estava lá para servir de consolo e arrimo para suas unhas carentes.
Duda dirigiu o olhar para o espaço entre o rack e a parede cortada pelas janelas, as mesmas janelas que a faziam se sentir no topo do mundo. Ali, onde antes um amontoado de equipamentos e instrumentos imprimia uma identidade singular ao lugar, agora uma fina camada de poeira se depositava sobre apenas dois violões e um case. Ao lado, sobre a superfície antes repleta de bugigangas, livros, discos e acessórios de música, um único caderno de capa vermelha repousava, solitário. Duda o recuperou e notou que a última página fora arrancada. De fato, Rick levara tudo embora quando partiu, inclusive esse pequeno pedaço dela.
Não era de todo verdade, nem tudo ele levara embora. De um pedestal, o Taylor a encarava, acusador, lembrando-a de tudo o que ela perdera. Ela encarava de volta o violão, seu prêmio de consolação, sentindo o gosto amargo do rancor. Bom, começaria por ele, afinal, ela fora até ali para levar os próprios pertences embora.
Ela colocou o violão no case e o levou até perto das portas do elevador, depois voltou e reuniu as caixas todas juntas para facilitar o transporte numa única viagem. Não eram tantas coisas, como sempre, apenas cinco caixas com livros e discos, dois instrumentos, e antes disso, uma mala de roupas e sapatos que Alex fora buscar enquanto ela ainda estava no hospital.
A fim de conferir se não estaria se esquecendo de algo, ela subiu até o mezanino e foi quando viu, dobrado sobre a cama, o vestido branco que usara na festa de Réveillon. Imediatamente ela se lembrou da peça colada à pele, sob o chuveiro, enquanto Rick aquecia suas costas com o calor do próprio corpo. Ela quase pôde sentir o peso da veste, quase pôde sentir o cheiro da pele dourada às suas costas, molhada pela água morna que escorria e encharcava a roupa e os cabelos escuros, quase pôde sentir o leve pinicar da barba em sua nuca. Com lágrimas nos olhos, ela se aproximou para recuperar o vestido, então notou, repousando sobre a roupa, a corrente de prata com uma palheta e uma aliança.
Não havia uma mensagem ou um recado de despedida. Não seria necessária nenhuma palavra, pois a corrente por si só já carrega todas as palavras do mundo. A aliança, o elo entre eles, e a palheta, o elo entre Rick e sua paixão. Repousando sobre a peça estava tudo o que ele era, ou o que fora, e o significado implícito e inclemente era que ele se perdera, completamente.
Duda ergueu a corrente entre os dedos no instante em que as lágrimas correram no sentido contrário. Ninguém estava ali para vê-la chorar, então ela permitiu que o fluido salgado dos seus sonhos massacrados vertesse livremente. A imagem do peito nu e tatuado de Rick sustentando o acessório que ele jamais removera desde que o conhecera, voltou à sua mente, engrossando ainda mais as lágrimas. Duda não queria entrar nessa onda de tristeza, ela precisava focar em se desviar do drama depressivo, caso contrário, sua vida certamente pararia debaixo de algum lençol no escuro, sem previsão de recuperação.
Rick tinha desaparecido. Por mais que estivesse magoada, ela chegou a perguntar a Júlio se tinha notícias do ex-noivo. Júlio respondeu que chegara a falar com ele sobre a antiga casa de Henry, já que o produtor contratara uma empreiteira para cuidar do imóvel e a reforma duraria no mínimo dois meses, mas que não fazia ideia de onde ele tinha se enfiado. Duda não perdeu tempo com a questão, quando vendesse a casa, o ressarciria pelas despesas.
Voltou a observar a corrente em sua mão. Passou um longo tempo fitando a palheta e o anel com seu próprio nome gravado. Foi o noivado mais curto da história. Eles chegaram a morar juntos por cinco dias e então tudo veio abaixo. Se pudesse prever que as coisas chegariam a esse ponto, ela teria dito "não" quando ele a pedira em casamento, ao menos o constrangimento pelo rompimento seria menor.
Como não tinha bolsos, ela encaixou a corrente no próprio pescoço e a escondeu sob a blusa, depois decidiria o que fazer com o acessório. O metal da palheta e do anel escorregou na sua pele e o frio penetrou seu peito, onde emoções conflituosas se digladiavam tentando decidir quem era mais forte: ódio ou amor.
Duda se irritou consigo mesma. Amor estava fora de questão. Como poderia ainda amar alguém que mentira por meses a fio, e não foi uma mentirinha, ele tivera um caso com a sua mãe, isso era uma "senhora" mentira, um descaramento sem limites, uma atitude maldosa de alguém a quem ela confiara seu coração, seus sentimentos e seus sonhos.
No fim, não importavam os motivos. O mal estava feito, e uma hora ela precisaria parar de chorar, parar de esperar que ele ressurgisse como um feiticeiro moreno de olhos de mel e sorriso cativante, renascido num mundo onde não havia um passado de merda entre eles. Isso não ia acontecer.
Duda tentou conter as lágrimas. De todas as surras do passado, a dor do coração partido era a pior de todas. E não era uma dor por ter sido deixada ou pelo fim de um romance, era a dor da traição, do engano, a dor por aqueles olhos amendoados terem a encarado por meses, dizendo que a amavam enquanto mentiam o tempo todo.
Ela recolheu os pertences e entrou no elevador. Quando as portas se fecharam, seus anelos, desígnios, intentos e tudo o que almejara ao lado de Rick foram separados dela, tal qual a esteira que levara os restos mortais de Henry, transformando tudo nas cinzas que ela jogara no lixo com a ânfora assim que chegara em casa.
***
É que a gente quer crescer
E quando cresce, quer voltar do início
Porque um joelho ralado
Dói bem menos que um coração partido
(Era Uma Vez — Kell Smith)
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