57 - Pausa
Pausa: silêncio que pode durar mais ou menos tempo e é representado por um símbolo numa partitura.
Desolado e em completo silêncio, Rick aguardava na sala de espera do hospital. Ao seu lado, Alex, quase fora de si, também ansiava por notícias.
Horas antes, quando Rick voltara ao apartamento após deixar a lavanderia, encontrara Duda encolhida no chão, catatônica. O celular transmitia o vídeo enviado por Henry para Isadora anos atrás e, naquele momento, Rick entendeu tudo. Duda não respondia, não se movia, respirava mal e tremia incontrolavelmente. A situação fora diferente de antes, quando ela tivera uma crise de pânico após o pesadelo, pois não havia contato visual, choro ou emoções evidentes, apenas uma paralisia trêmula, como um transe.
Sem saber o que fazer, Rick telefonara para o terapeuta, que não atendeu a ligação. Não podia culpá-lo, era o primeiro dia do ano, as pessoas estavam descansando ou comemorando. Sem escolha, resolveu levar Duda ao pronto-socorro. No caminho, ligou para Alex, talvez ele já tivesse testemunhado algo assim já que conhecia Duda melhor do que ninguém. Agora ambos aguardavam por notícias e a tensão entre eles se ampliava a cada minuto.
— Quem é o acompanhante de Eduarda Ferri? — Uma médica do hospital anunciou na recepção. Rick e Alex se ergueram ao mesmo tempo.
— Eu! — ambos responderam, simultaneamente.
A médica olhou curiosa para os dois homens, notou de cara a rivalidade.
— Os senhores são...?
— Noivo!
— Irmão!
— Certo, certo. Sou a Drª. Soraia, responsável pelo atendimento da Eduarda. Ela deu entrada no hospital com um quadro simples de colapso nervoso. Quando digo que é simples é para que não se preocupem, não é algo que coloque a vida dela em risco, mas não deixa de ser preocupante já que, para chegar a esse ponto, ela provavelmente tem passado, ou passou, por um estresse extremo. Ela está sob efeito de tranquilizantes e será encaminhada para avaliação de um psiquiatra. Eduarda se recusa a falar com qualquer pessoa da equipe médica, e minha esperança é a de que fale com um de vocês.
Rick e Alex se entreolharam, nervosos. A médica confirmou a própria suspeita e continuou, cautelosa:
— Eu vou pedir que a enfermeira escolte apenas um de vocês até o quarto. Decidam quem vai visitá-la tendo em mente que é melhor que ela não se altere ainda mais.
A médica se afastou e Rick olhou para Alex, que o encarou, ameaçador. Resignado, decidiu por ambos.
— Fica tranquilo, eu não vou entrar. Vá você, talvez ela fale contigo. O que quer que ela diga, não é assunto seu, ok? — Rick manteve a postura dominante, mesmo sabendo que já havia perdido tudo.
— O que aconteceu, Rick? Me fala você, porra! Que merda você fez pra ferrar com ela desse jeito? Espancou mais alguém? Qual é o teu problema?
— Não piora as coisas, Alex! Se você se comportar como adulto, talvez eu fale com você como um.
Alex se afastou, irado. A enfermeira o aguardava no corredor e o levou até no quarto. Quando entrou, notou imediatamente que Duda estava em outro lugar, algum refúgio dentro da própria mente onde ela encontrava conforto, onde a dor não a atingia. Ela já estivera assim antes, uma única vez, quando sua vida quase se esvaiu no piso de madeira do próprio quarto.
Na ocasião, Alex tinha ido até a casa de Duda porque era aniversário dela, e de cara notara algo errado ao encontrar Henry com a postura alucinada de quem acabara de ter surto psicótico. Alex invadira a casa sem pedir permissão e encontrara Duda ferida e ensanguentada. Era muito sangue que saía da cabeça e do pulso, que ele tentara estancar enquanto gritava para Henry chamar o Resgate, caso contrário, chamaria a Polícia.
Um torniquete improvisado com uma meia suja ajudara a conter o fluxo enquanto a ambulância costurava o trânsito para chegar a tempo de socorrê-la. Eles tiveram sorte, o socorro chegara em cinco minutos, alertados pelo quadro de tentativa de suicídio. O fato de apenas o primeiro golpe do compasso ter perfurado a artéria fora determinante para que Duda suportasse a espera, pois a vazão fora lenta. Contudo a longa cicatriz feita pela ponta de metal que rasgara a carne do braço tornara o cenário ainda mais alarmante. Isso e o sangue que encharcava ainda mais os cabelos já vermelhos da adolescente.
Quando Alex pensou que finalmente Henry seria preso, dias depois, uma Duda consciente inventava uma história sobre tentativa de assalto e que Henry nem estava na casa no momento, e a culpa recaíra sobre um desconhecido com uma descrição falsa. A tentativa de suicídio fora atribuída a um garoto qualquer da escola, e Henry corroborara a versão mesmo sob olhares suspeitos dos policiais, que não podiam fazer nada se Duda não denunciasse o pai. Ela sabia mentir, sabia fingir que o pai era um bom pai, o que tornava infrutífera qualquer tentativa de ajuda.
Alex esbravejara e tentara convencer os policiais, porém ele não passava de um moleque de catorze anos, sem credibilidade porque já andava dando problemas por causa de drogas e, o pior, Henry mentira aos policiais dizendo que Alex era o motivo de Duda tentar o suicídio e por isso o garoto tentava acusá-lo. Depois disso, Alex não pôde mais ver Duda no hospital.
Duda dera o depoimento e se calara. Passara semanas sem falar com ninguém. Quando voltara para casa, tinha parte do cabelo raspado, vários pontos num corte na cabeça, muitas marcas roxas e escoriações e o braço enfaixado escondendo sua maior vergonha.
Não dava para entender como nenhuma autoridade interviera na história, nem ao menos para investigar. O descaso fora tanto que eles nem chegaram a visitar a casa.
Alex fora visitá-la quando ela retornara do hospital. O violão partido estava jogado no canto da sala como um memorial de extremo mau gosto. Se houve uma coisa boa depois do evento foi que, depois daquele dia, Henry não bateu mais em Duda. As agressões cessaram, ao menos as físicas. As verbais continuaram até o último dia, porém isso não a levaria para o hospital.
Ao menos era o que Alex pensava, até esse exato momento.
— Duda... não vou perguntar se tá tudo bem, porque é óbvio que não tá. Só preciso saber uma coisa: o Rick fez alguma coisa contra você?
Duda o olhou com um vinco entre os olhos, tentando entender que tipo de pergunta era aquela. Se Rick fez alguma coisa? Ele fez tudo! Ela apenas negou com a cabeça.
— Você não tá escondendo a verdade, como fez anos atrás, não é? Ele agrediu você também? — Alex insistiu.
Ela negou firmemente e Alex se sentiu angustiado. O produtor sairia impune? Seria assim? Aturdido, foi até o corredor e chamou a enfermeira.
— Preciso saber uma coisa. Por acaso a Eduarda chegou aqui com algum sinal... como posso dizer... alguma evidência de maus-tratos? Alguma lesão ou marca, não sei se me entende...
— Não há nada no prontuário da paciente. Mas por que você está fazendo esse tipo de pergunta? Existe algo que queira denunciar?
— Não... é porque ela já foi vítima de abuso no passado.
A enfermeira o encarou, preocupada.
— Existe alguma razão para o senhor achar que ela esteja passando por isso novamente?
— Não exatamente, é que... o noivo dela, ele parece meio nervoso — Alex jogou a informação, e logo se arrependeu. Ele se sentiu aquele personagem de novela que ficava criando intriga, fodendo com a vida dos outros por nada. Mas agora a merda já estava feita.
— É uma acusação grave. Eu vou levar o caso para a médica responsável, talvez Eduarda tenha que passar por outros tipos de exame, provavelmente teremos que acionar a polícia...
— Não... não! Não vai submeter ela a esse tipo de exame, ela não vai aguentar isso. Veja, eu falei porque gosto dela e porque eu tô com raiva do noivo. É puro ciúme... esquece tudo que eu falei.
A enfermeira não ficou muito convencida, mas deixou que Alex voltasse ao quarto.
— Duda, se Rick não fez nada, posso pedir pra ele entrar?
Duda fechou os olhos. Como queria que tudo desaparecesse do mesmo jeito que o mundo escurecia ao cair das pálpebras, mas não podia ser tão fácil assim. Ao invés do breu indiferente e esperado, ela só via os olhos dourados como faróis brilhando sobre suas mazelas, queimando sua alma, roubando seu ar e assassinando seus sonhos. Após um longo suspiro, ela pronunciou as primeiras palavras da noite.
— Eu não quero ver o Rick. Nunca mais.
Alex levou um baque com as palavras. Foi como um chute no peito capaz de levar lágrimas aos olhos. Angustiado, deixou o quarto e foi ter com Rick na recepção.
— Como ela está? — Rick questionou assim que o viu se aproximar.
— Ela não tá falando muito. Tá meio grogue por causa do calmante. Acho que quando passar o efeito, ela vai falar mais, já passou por isso antes.
— Quando? — Rick não suportava mais desconhecer o que acontecera com Duda no passado. — Você vai me contar agora, Alex; e, depois disso, eu prometo que deixo vocês em paz.
Alex analisou as alternativas. Talvez fosse a hora de falar; Duda não parecia disposta a ter uma conversa e, se não contara até hoje, não contaria mais. Sem se preocupar se era certo ou errado, ele contou a Rick a história do dia do aniversário de Duda, quando Henry a espancou com o violão de modo tão intenso que ela teve as costelas quebradas e um corte grande na cabeça. Narrou também sobre como ela quisera acabar com a vida naquele dia e, se ele não tivesse chegado a tempo, eles não estariam ali na recepção do hospital conversando sobre ela.
Rick concluiu que, de fato, se Duda estivesse morta, seu vídeo não o faria cruzar o mar para procurá-la, ele nunca teria conhecido Alex, a banda Dropp provavelmente nunca teria feito um show no João Rock, Alex talvez nunca tivesse saído das drogas, dificilmente ainda estaria vivo. Que constatação bizarra: das sombras da tragédia, era possível brotarem coisas boas.
Foi fácil para Rick fazer as conexões ao final do relato. O vídeo, gravado momentos antes da tragédia ocasionada pelo descaso de Isadora, desencadeara tudo. Duda vira o vídeo, descobrira a conexão entre o noivo e a mãe por meio das mensagens trocadas e, compreensivelmente, surtara.
Por que nunca apagara as mensagens? Nem quando Isa o contatara dias antes? Poderia ter deletado o histórico, escondido o vídeo, feito qualquer coisa, mas não. Ele deixara na mão do destino, como um covarde, ele pavimentara o terreno para não ter que dar um passo a fim de resolver a questão. Quando ele se deu conta disso, algo se partiu dentro de si. Não havia nada no mundo que pudesse desfazer o que tudo aquilo causara em Duda, a forma cruel como ela descobrira, fora desumano, bárbaro e ele fora o responsável por tudo.
— Você perguntou se eu posso vê-la? — Pura retórica, ele sabia a resposta, soubera assim que entrara no flat e a encontrara no chão.
— Não, cara. Ela não quer te ver tão cedo.
Rick engoliu em seco, e a sensação foi como se uma faca de pão o serrasse a garganta. Duda nunca mais ia querer vê-lo. Esse era o único desfecho possível e esperado, era a única punição minimamente aceitável para o mal que ele causara. Imaginou que doeria mais, pensou que seria pior, mas aparentemente uma parte dele morrera naquela tarde, restando apenas o vazio, o eco, o vácuo que a falta dela causaria dali por diante.
— O que aconteceu, cara? Você não vai falar? — Alex o encarava, ainda confuso.
Rick desviou os olhos do guitarrista e mirou as paredes brancas da recepção, sem, contudo, enxergar qualquer coisa. Como responder a isso?
— Diga a ela que ela não precisa se preocupar em sair do flat, vou deixar pago por alguns meses, depois ela decide se fica ou se sai. As chaves estão na bolsa dela, vou te mandar por mensagem o código do elevador para acessar o apartamento e pegar o Gato, por favor, leve-o para o seu apartamento até ela estar em casa.
— O que você pretende fazer?
Foi nesse momento que Alex sentiu o nó na garganta começar a doer. Olhando para Rick agora, o cara mais foda que já conhecera, o contraste era alarmante. Este Rick estava tão destruído quanto Duda, e Alex se sentiu mal pelas intrigas, disputas e julgamentos; pois, aparentemente, não veria mais o produtor. Este homem à sua frente, que fizera tanto pela banda, por ele e, como não dizer, pela Duda, que agora era uma nova mulher, linda, livre e sorridente, uma mulher que tocava e cantava fora do quarto, que não tinha mais vergonha de ser quem era, que usava branco no lugar do preto e vestia a luz no lugar da escuridão. Fora Rick o responsável por tudo isso, esse mesmo homem que, aparentemente, partira o coração dela de modo tão cruel. Alex não conseguia entender e sentiu lágrimas nos olhos.
— O que eu vou fazer não importa. Importa que você explique isso a ela, e diga que eu sinto muito, e nem me adiantaria pedir perdão, pois não mereço ser perdoado. Quanto a você, me prometa que vai cuidar dela como sempre cuidou, mais ainda agora, e me garanta que você vai tentar impedir que ela venda aquele piano. Aquilo vale muito mais do que ela imagina e algo me diz que ela vai se arrepender se o fizer.
— Eu prometo. Vou tentar te manter informado sobre ela, pode me ligar a hora que você quiser...
— Eu não vou ligar, e por favor, não me ligue. Eu não quero saber o que vai ser daqui para frente, ok? Essa história acaba aqui.
Deu as costas e foi deixando um Alex profundamente angustiado para trás. Antes de cruzar a porta, ele se virou e encarou o rapaz uma última vez.
— Você tem talento, Alex. Muito mais do que muitos guitarristas que eu conheci, e olha que eu conheci muitos. Não deixa ninguém te dizer o contrário, ok? Eu tô bem orgulhoso do trabalho que fizemos juntos. Diga isso pra banda também, que sigam em frente, vocês vão longe, eu tenho certeza. Feliz Ano Novo, amigo.
— Feliz Ano Novo, Rick... E obrigado. Por tudo.
Com isso, Rick deixou o hospital, Duda, Alex, a banda e tudo o que os conectava para trás.
***
Pra que mentir, fingir que perdoou?
Tentar ficar amigos sem rancor?
A emoção acabou, que coincidência é o amor
A nossa música nunca mais tocou
(Codinome Beija Flor — Cazuza)
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro