51 - Lo-fi
Lo-Fi: estilo de música com melodias melancólicas caracterizadas pelas repetições em loop.
A tarde estava úmida e quente, e nuvens carregadas prenunciavam uma tempestade de verão. O vento fazia os cabelos de Duda ondularem para todos os lados, e o momento icônico acabou por divertir Alex, que se sentia num roteiro de suspense.
Alex nunca mais havia passado por aquela rua, e estar ali depois de tantos anos o levou de volta à adolescência. Ficou nostálgico e triste, principalmente porque não queria que sua amiga revivesse o que passara por trás daqueles portões, agora totalmente enferrujados.
A casa, localizada numa pequena vila particular, parecia mais uma caricatura, um rascunho do que fora no passado. A fachada outrora branca, agora exibia rachaduras, como cicatrizes em toda sua extensão, e o branco dera lugar a um marrom desgastado e descascado que mostrava o descaso do seu póstumo ocupante. No espaço entre o portão e o hall de entrada, o mato crescia alto e livre, e pilhas de papéis, correspondências, revistas e jornais se acumulavam nos cantos, envergados e deformados pela ação do tempo.
— Uma hora a gente vai ter que entrar — Alex resolveu quebrar o silêncio soturno.
Rick segurou a mão de Duda tentando decidir se a empurrava rumo à casa ou se saía correndo. Agora que estava ali, questionava se a decisão fora acertada.
O caso era que ele não gostava de deixar pontas soltas, também odiava perder uma boa oportunidade. Quando pensou em incentivá-la, fora para que ela não tivesse arrependimentos, mas talvez não devesse ter projetado nela suas próprias expectativas.
— Você quer fazer isso? Tudo bem se quiser desistir, eu posso vir aqui com o Alex outra hora e resolvemos as coisas para você — ele indagou e esperou. Ela não se moveu nem respondeu, e ele começou a ter certeza de que era melhor ir embora.
— E aí, vai arregar? — Alex, sempre o sem noção, provocou.
— Cala a boca, idiota! — Duda retrucou, nervosa, sem desviar os olhos do portão.
— Decide, então! Ficar parada só vai fazer a gente tomar chuva daqui a pouco.
Rick dirigiu um olhar irritado a Alex, que captou a mensagem e não falou mais nada; afinal, agora Rick era o cão de guarda da ruiva, e Alex não passava de um vira-lata.
— Eu vou entrar — ela decidiu de uma vez. Foi até ali para isso, então quanto antes começasse, mais rápido terminaria. Soltou a mão de Rick e empurrou o portão destrancado, que chiou sinistramente. Cruzou o pavimento encardido, desviando-se dos tufos de mato pelo caminho, e introduziu a chave na fechadura. O coração palpitava enquanto as lembranças assolavam sua mente.
"Deixa a chave... Fecha a porta!"
Rick percebeu o conflito e segurou a mão dela sobre a maçaneta, como se questionando se ela estava segura em ir adiante. Ela, por sua vez, suspirou e girou a alavanca. A porta se abriu com um rangido macabro e uma baforada de vento fétido fez Alex soltar um assobio, arrepiado.
— Caraca... A gente já pode ir embora?
— Para de ser cuzão, Alex! — Duda o repreendeu, e Rick teve vontade de rir da situação, só não o fez por respeito a ela.
A primeira coisa que a atingiu foi o cheiro. Um aroma rançoso de cigarro e gordura impregnava o imóvel mesmo que Henry não estivesse vivendo ali por meses. De acordo com o advogado, seu pai estava internado desde outubro e, mesmo assim, a casa ainda carregava o cheiro dele.
Duda odiava esse cheiro. O mesmo que se prendia em suas roupas e fazia os alunos da escola espalharem que ela não tomava banho. Ela buscou mentalizar que não era mais uma adolescente de cheiro duvidoso, agora era uma mulher que, segundo Rick, cheirava muito bem, por sinal.
— Bom, o plano é o seguinte: vou ver se tem alguma coisa que valha a pena guardar, como algum retrato ou álbum de família, não que eu queira me lembrar, mas pode ser que um dia queira mostrar aos meus filhos.
Rick girou o rosto para ela tão abruptamente que ficou impossível disfarçar a surpresa. Era a primeira vez que o tópico "filhos" surgia numa conversa, não apenas entre eles, mas desde sempre na história de ambos. Alex notou e, como era muito besta, riu da situação.
— Alex, vai procurar algo útil pra fazer! Vê se encontra alguma caixa com documentos ou algo importante — Duda o direcionou, então tomou a mão de Rick e se dirigiu à sala.
Sobre um tapete velho e manchado, em meio a poltronas rasgadas e desalinhadas, cortinas puídas e paredes descascadas, um piano de um quarto de cauda se agigantava empoeirado, ocupando boa parte do espaço.
— Taí uma coisa que vale a pena guardar — Rick murmurou, impressionado. Ainda que tudo em volta estivesse em ruínas, o piano parecia bem conservado, apesar da poeira.
— Tanto faz... — ela respondeu, indiferente. Passou tantos anos olhando para o instrumento construído em mogno que diminuía de tamanho na medida em que ela crescia, que o seu valor se resumia a uma lembrança distante dos cabelos de Isadora e das melodias melancólicas de Henry entre um rompante psicótico e outro.
— Você tava mesmo pensando em vender o imóvel com isso aqui dentro? Você tem noção do quanto isso vale? — ele inquiriu, inconformado.
Ela não respondeu de pronto. Para ela era impossível enxergar o instrumento como um simples piano ou algo de valor. Ela só via um objeto de contenda, de separação e ódio.
— Vamos vendê-lo e, com o dinheiro, você pode pagar as contas do hospital e guardar o que sobrar.
— Nem fodendo, Duda! Se quiser vender, ok, mas não mistura as coisas! — Ele ficou ainda mais indignado com a proposta.
— A gente tá misturado ou não tá, Rick? Decide de uma vez!
— Duda, não fala isso. Olha, vamos fazer o seguinte: se insistir mesmo que quer vender, a gente faz uma aplicação para você, pega o que conseguir com a casa e com a venda dos bens e eu te ajudo a escolher alguns investimentos, mas o dinheiro é e sempre será seu.
— Quer dizer que o seu dinheiro serve pra me financiar, mas o meu não serve pra ajudar você? É isso?
Ele suspirou. Ela tinha um ponto, mas ele era orgulhoso e não fazia ideia de como lidar com a questão. Para ele, cuidar dela era um dos elementos que o tornava essencial. Era um pensamento machista e retrógrado, mas fazer o quê? Mesmo sem um pai para ensiná-lo a ser assim ou de outro jeito, quando a conheceu, teve certeza de que queria cuidar dela. Estaria, portanto, preparado para "misturar" tudo, como ela sugeria?
— Vamos nos concentrar no que viemos fazer aqui. Piano: vender. Check. Agora, o próximo passo.
Alex apareceu com uma caixa embolorada e a colocou sobre a mesa suja, desalojando algumas baratas ocultas sob o tampo. A cada minuto que passava, mais insuportável se tornava permanecer na casa; o cheiro, a sujeira no piso de madeira desgastado, o aspecto opressor das paredes manchadas, o lixo antigo acumulado nos cantos, tudo isso assustava e constrangia o grupo a interromper a incursão.
— Encontrei isso aqui no guarda-roupas do velho. Parecem documentos e fotos. Não achei mais nada e, vão por mim, melhor não subir lá — ele alertou, parecendo aflito —, tá nojento!
Rick olhou em volta, entristecido. Então sua fada vivera ali, naquele caos, por tantos anos. Talvez não estivesse tão decadente quando ela deixou a casa, ele torcia para que tivesse sido assim; de qualquer maneira, se Henry teve um décimo do descaso com ela como o que tivera com a casa, ainda assim seria muita coisa para aguentar.
— O que mais você quer ver, Duda? — ele consultou, desejando interromper a visita incômoda o quanto antes.
Duda não prestou atenção. Seus olhos estavam fixos num canto da sala cheio de garrafas de bebida e lixo por cima de alguns instrumentos enfileirados. Naquele canto, Henry costumava guardar os livros e as partituras, e ao lado, três violões e duas flautas.
Um dos violões Duda levou consigo quando deixou a casa, bem como as partituras e vários dos livros. O outro violão estava agora tombado fora do case, completamente cheio de pó, e... por trás de tudo, o terceiro violão jazia, estraçalhado, sob papéis velhos e partituras borradas.
Ela não imaginava que aquela a peça destruída ainda pudesse estar ali. Na época, Henry juntara o instrumento aos demais alegando que procuraria um luthier* para tentar salvar o braço do violão, mas ele nunca o fez, então deixou-o ali, como um memorial macabro.
Duda sentiu as mãos tremerem. Alex acompanhou o olhar dela e empalideceu também, então Rick observou os dois, tentando compreender o que estava ocorrendo ali.
— Duda? O que foi? — Ele ficou preocupado ao vê-la paralisada, quase em pânico.
Alex se aproximou de onde repousavam os olhos dela e ergueu do meio dos escombros o braço partido do violão, que ainda sustentava parte do bojo quebrado através das cordas ligadas à ponte. Rick olhou atentamente para os restos do instrumento e, quando seus olhos identificaram o dano e as manchas escuras nas bordas lascadas, um lapso de compreensão o fez dar um passo para trás.
— Deixa isso aí, Alex. Vamos embora. — Ele agarrou o braço de Duda, tentando puxá-la para fora da casa, mas ela resistiu e travou os pés, sem desviar os olhos do instrumento quebrado.
— Ele deixou isso aí pra me lembrar... — a voz dela era um sopro, Rick se arrepiou inteiro.
— Foi uma péssima ideia vir aqui, Duda. Me perdoa por sugerir, agora, por favor, vamos embora — ele insistiu.
Alex se aproximou dela e a virou em direção a si. Olhou-a profundamente, depois a abraçou, murmurando palavras de conforto.
— Esse cara era doente, Duda. Mas ele não pode mais te ferir, ok? Olha aqui: ele tá morto, acabou! — o rapaz falava baixo no ouvido dela, sem soltá-la.
Duda, então, fixou o olhar em Alex, e Rick percebeu a força da conexão que eles tinham por causa do passado. Nesse momento, ele se sentiu completamente excluído porque, aparentemente, só ele não sabia o que ocorrera; qual era a história do violão quebrado. Ele precisou deduzir, e a imaginação pintou os piores quadros possíveis.
Uma parte dele ficou agradecida porque Alex esteve ali com Duda, tempos atrás; outra parte queria esmurrar o rapaz e feri-lo como fizera com Enzo, pois, de repente, ele mesmo tinha se tornado desnecessário, descartável e inútil. O sentimento foi tão alarmante que ele abandonou rapidamente a sala e se refugiou na cozinha, longe dos dois.
O que tá acontecendo com você? Ficou louco? Isso não é uma competição, porra!
Rick ficou se remoendo ali no meio da sujeira, ainda enraivecido pelo ciúme, e decidiu tornar a incursão mais prática. Deu um giro na residência, recolheu o violão, alguns estojos de instrumento que ele concluiu serem flautas, LPs e alguns livros.
Ficou impressionado com a situação caótica do imóvel; imaginava como Duda fazia para se alimentar, se vestir, se ela tivera o mínimo de infraestrutura para crescer com saúde, pelo menos física, já que no quesito saúde emocional ela passara longe.
Difícil saber, e ele não podia perguntar, porque agora ela estava lá, enroscada em Alex e deixando-o de fora.
Que vão à merda, é isso. Foda-se!
Ele foi até o segundo andar e constatou que Alex tinha razão, o local estava nojento a ponto de causar ânsia de vômito. O mofo impregnava tudo devido a infiltrações no telhado; o quarto principal era um amontoado de roupas sujas, bitucas de cigarro e garrafas de bebida; o banheiro era puro limbo; e o segundo quarto, o menos sujo, estava ocupado por uma única cama, uma cadeira e uma cômoda antiga e, por estar mais vazio, era possível detectar fezes de roedores pelos cantos. Esse devia ser o quarto de Duda. Ao menos ela tinha um espaço só para si, se é que isso contava como vantagem em meio a tanta nojeira.
De volta ao térreo, olhou em volta e concluiu que a casa seria um excelente espaço se não estivesse tão decadente. Certamente venderia mais rapidamente depois de uma boa reforma. De qualquer maneira, ele providenciaria a venda do piano antes de qualquer coisa. Chateado, enquanto observava de esguelha Alex e Duda abraçados, foi até o piano e abriu a tampa das teclas.
— É a porra de um Steinway!... — ele sussurrou, fascinado quando identificou o brasão e a tipografia serifada estampada em dourado. Correu os dedos sobre as teclas do modelo S Baby Grand, o mais compacto dos pianos de cauda da Steinway & Sons, desacreditando que havia um instrumento de no mínimo 60 mil dólares esquecido naquela casa.
Sem conseguir se conter, montou um acorde com a mão esquerda e pressionou as teclas amareladas pelo tempo. Para sua completa surpresa, o piano estava afinado.
— O que está fazendo? — Duda se aproximou. Ela tinha acabado de se lembrar que Rick ainda estava ali, e se chateou consigo mesma por tê-lo esquecido por um tempo.
— Experimentando... tem certeza de que quer vender? Um piano desses é algo raro, você nem encontra no Brasil!
Duda olhou para o piano. Era só um amontoado de madeira, ferragens e fibras... por que tinha que carregar tanto significado?
— A gente vê isso depois. Agora só quero ir embora daqui.
— Certo. Eu volto aqui para resolver a venda da casa. Vou contratar uma empresa de limpeza para esvaziar e preparar o lugar, talvez faça alguma reforma. Sobre o piano, pensa bem, ok? Não toma nenhuma decisão com base na emoção, você pode se arrepender mais tarde.
Ele se controlou muito para não insistir, quase implorar que ela mudasse de ideia e ficasse com o piano. Não era assunto dele mas, caraca...
Era um Steinway!
***
A minha casa é assombrada,
são meus esses fantasmas.
Por onde quer que eu vá comigo sempre vou levar.
Prometo que não vão te atacar.
(Casa Assombrada — Lucas Silveira / Fresno)
________________
* Luthier: é um profissional especializado na construção e no reparo de instrumentos de cordas, com caixa de ressonância. Isso inclui o violão, violinos, violas, violoncelos, contrabaixos e todo tipo de guitarras.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro