50 - Intermezzo
Intermezzo (ital.): peça pequena executada entre dois atos de uma ópera.
A semana passou voando e, sem que Duda e Rick percebessem, já era véspera de ano novo. Eles passaram os últimos dias organizando a mudança, separando o que Duda gostaria de levar ou deixar para trás.
Alex resolveu ficar com o apartamento dela. Ele estava mesmo à procura de um local, pois tinha finalmente decidido sair da casa do pastor Pedro. A decisão ocorreu de forma amigável, ele estava limpo há mais de seis meses e agora precisava se desvencilhar das muletas e tomar as próprias decisões.
Embora o pastor achasse que Alex estava pronto para o próximo passo, Duda ainda se sentia insegura em relação ao amigo, mas não se intrometeu no assunto, afinal, ela tinha os próprios dilemas para resolver.
Entre as questões estavam a própria mudança, as pendências relacionadas à herança deixada por Henry, e Rick, cujo humor oscilava constantemente por causa da mão lesada e por outras razões que ela desconhecia. Embora ele parecesse feliz com a mudança dela para o flat, os altos e baixos emocionais dele eram tão intensos que ela tinha dificuldades em interpretar suas reações. Foram momentos desafiadores para ela que, pela primeira vez, estava mais equilibrada emocionalmente em relação ao parceiro.
Em contrapartida, embora fosse totalmente compreensível que Rick estivesse em conflito, ele se esforçava para não virar um resmungão ou não se deixar abater pelo desânimo. Até para ajudar na mudança ele se sentia um imprestável; mesmo assim, fez o que pôde, muitas vezes passando por cima da coerência.
— Acho que eu deveria ter esperado para me mudar. Se você não parar com essa mão, vai acabar tendo algum problema mais sério! — Duda chamou a atenção dele ao vê-lo carregando uma caixa pesada cheia de discos de vinil.
— A força está aplicada no braço, não na mão. E você acha mesmo que eu estaria melhor se não estivesse fazendo sua mudança para cá?
Duda suspirou. De fato, ela imaginava que ele estaria bem mais chateado sem uma boa notícia no meio de tudo o que andava ocorrendo. No dia anterior, ele tinha recebido a fatura do hospital com os custos da internação, cirurgia e tratamento de Enzo, e quando ela viu a soma, ficou espantada. O valor era altíssimo, ela nem imaginava que ele poderia ter todo aquele dinheiro guardado, também não fazia ideia de que contas médicas podiam ser tão absurdamente caras.
Na parte da tarde, Rick se reuniu com Júlio, que propôs um acordo de parcelamento com o hospital. Ainda que ele tivesse o montante para pagar de uma vez, o amigo achara prudente manter uma reserva pois Rick estava sem poder trabalhar, e eles ainda nem sabiam qual seria o valor da indenização pelos danos ao Enzo. Nesse quesito, Júlio ainda não tinha chegado num consenso com o advogado do rapaz, e Rick aceitou o acordo de parcelamento sem reclamar, mas ela notou que ele ficou bem preocupado.
Ela queria ajudar, mas falar de dinheiro com ele também era um assunto delicado porque ele não dava abertura. Ela discordava da posição dele, afinal, agora que iam morar juntos, não tinham mais como manter as coisas separadas.
Rick perdera vários trabalhos nos últimos dias, alguns ele conseguiu adiar, outros acabou passando para outros profissionais porque não podiam esperar que ele melhorasse. Ele manteve os jobs de produção, porém tudo o irritava; acostumado a usar o trackpad do MacBook, ele resmungava na hora de usar o mouse; e sempre que queria testar alguma ideia e se lembrava de que não podia executar, ele desistia do que estava fazendo e acendia um cigarro. Ela não ficava por perto porque era claro que ele se sentia humilhado com a situação.
No fim, eles acabaram percebendo que morar junto era muito mais do que juntar escovas de dente no banheiro.
Por causa de toda essa situação, Duda decidiu se apressar para resolver a questão da casa do pai. Por meio do advogado que fora contratado para fazer o inventário, ela descobriu que Isadora abrira mão da casa e de tudo o que fora deixado dentro dela, e lhe destinou a herança. Também soube que Henry não tinha nada além da casa. Nenhum outro bem, dinheiro guardado ou seguro. Ele acumulara contas no hospital e Isadora resolvera a questão da mesma forma: à distância.
Mais uma vez, o fato de Isadora fazer isso por intermédio de um profissional magoou Duda ainda mais. Não que ela tivesse alguma ilusão de ter contato com sua progenitora depois de tanto tempo, mas sempre houve uma certa curiosidade. Isadora se moveu para fazer algo por Henry, contudo não fez nenhum esforço para ter qualquer contato com a filha. Duda gostaria de não se importar com isso, mas era impossível ignorar o descaso.
No fim, melhor que fosse assim. Quanto menos motivos ela tivesse para se deprimir, melhor.
Ela cogitou vender o famigerado lugar com tudo o que havia dentro para não ter que voltar mais àquela casa, mas por insistência de Rick, que não gostava de perder uma boa oportunidade, ela acabou aceitando retornar ao imóvel situado no bairro da Mooca. Estava tão insegura acerca disso que decidiu carregar Alex junto. Ao menos o amigo compreendia todo o contexto, vivera com ela boa parte do drama e seria o suporte adequado para a carga emocional que a visita reservava.
— Daqui a pouco o Alex vai chegar, melhor parar de mexer com essas caixas — Rick alertou.
— Vou tomar um banho e ficar pronta — ela se aproximou, abraçou-o pela cintura e aspirou o aroma que se desprendia dele como um elixir. Mesmo suado, ele continuava cheiroso.
— Tem certeza de que quer fazer isso hoje? — ele murmurou, com o rosto afundado nos cabelos dela. A manhã já estava no fim, não haviam se alimentado direito e ele lutava para se manter disposto. Tudo o que precisava agora era entrar no banho com ela, depois almoçar, deitar-se no sofá, amá-la e tê-la só para si pelas próximas horas, sem problemas familiares, de saúde, financeiros ou de qualquer outra ordem.
— Quero começar o ano sem nenhuma pendência com o passado, Rick. Quero me livrar de tudo o que é velho.
— Feliz Ano Novo, fada! — Ele sabia que não adiantava argumentar porque, quando ela punha uma coisa na cabeça, parecia uma mula empacada. Melhor mesmo resolver isso de vez.
— Você vai querer ir pra casa da Hannah depois de lá?
— Ainda não sei. Vamos ver.
Claramente ele declinaria do convite. Ele se mantinha taciturno e isolado, igual a esses cães que usam um cone na cabeça.
— Rick, o que tá acontecendo? Você tá conseguindo ser mais chato do que eu! — Ela brincou, tentando trazer um pouco de bom humor à conversa. Mesmo assim, ele continuou sério.
Paciência, uma coisa de cada vez.
Ela não sabia que, entre tudo o que o incomodava, estava a apreensão pelo dia seguinte, quando ele finalmente decidira ter aquela conversa com ela. A conversa que provavelmente mudaria tudo, definitivamente.
***
Quando quebro, eu conserto
Espero de você o mesmo
Quando me machuca
(Instalação — Danilo Souza e Fernando Anitelli, O Teatro Mágico)
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